O grupo Corisco é uma iniciativa de militantes de movimentos populares do Rio de Janeiro que veem na música e na cultura popular uma forma de propaganda e apoio às lutas dos trabalhadores do campo e da cidade. AND esteve com os integrantes Filipe Proença (vocal e violão), Ana Paula Morel ‘Aninha’ (vocal) e Matheus (percussão), que nos contaram um pouco sobre a formação e os objetivos do grupo.
AND: Como surgiu o Corisco?
— A maioria dos integrantes são membros de movimentos populares, atuam principalmente em ocupações urbanas e grupos de educação popular. Começamos em 2010 numa atividade da ocupação Quilombo das Guerreiras. Até então não existia o Corisco formalmente. Nesse primeiro evento que fizemos, chamamos a Ângela Morais, da ocupação Quilombo, para percussão, e a Aninha para o vocal. A partir daí o grupo foi crescendo e outras pessoas foram aderindo à proposta do Corisco — contaFilipe Proença.
— A primeira música, Guerreiros Urbanos, foi a que começou a juntar pessoas ao redor desse projeto que depois se transformou no grupo. Depois surgiram outras músicas e fomos resgatando algumas outras que já tínhamos feito. Também começamos a realizar shows em ocupações — afirmaMatheus.
— O objetivo era reunir ativistas de movimentos populares que já tinham alguma ligação com a música, seja amador ou profissional, mas com a vontade de criar um grupo de música que tocasse em questões de problemas sociais, sobre as opressões, o racismo, ocupações sem-teto, etc. Ajudar a divulgar e apoiar as lutas. Também participam do grupo a Luiza Colombo e o Carlos Caitanya, na percussão — dizAninha
AND: Qual a importância da música tem para a luta popular?
— Tem duas questões. A música é um instrumento, uma expressão, para colocar através das letras alguns de nossos anseios em relação à transformação radical da sociedade. É um canal de expressão e de participação política através da arte, pois ela engloba não só a política, mas também a sedução, o afeto, etc. E tem outra coisa que é a questão da importância da cultura popular e tem a ver não só com o conteúdo das letras, mas com a forma. Nós tentamos resgatar musicalidades como o baião, o forró, o samba, que para nós tem uma origem de resistência, uma origem contra-hegemônica, contra essa ‘cultura de massa’ que está aí. Foram ritmos que, por sua forma e origem popular, foram ao longo da história perseguidos pelo Estado e pelas classes dominantes — constata Filipe.
AND: A autêntica cultura popular sofre algum tipo de boicote?
— Depende do que se entende por cultura popular, pois tem muita “cultura popular” que é construída como tipo de cultura de venda, comercial. O mercado também se apropria da cultura popular. A gente vê muitos grupos que tinham uma origem de crítica social direta contra a sociedade na qual vivemos e que acabaram, de alguma forma, sendo deturpados. Tem uma cultura que vai servir ao mercado e ao Estado. A gente vê aí eventos de cultura que são políticas públicas de Estado para teoricamente fomentar a cultura popular, mas acabam transformando tudo em mercadoria, inserindo no mercado. Agora, por outro lado, tem uma série de manifestações de cultura no seio dos movimentos populares e essas aí, quando não vão buscar financiamentos no Estado, fogem um pouco a essa regra — diz Matheus.
AND: E as letras?
— Temos músicas como o Baião do Seu Doutor, que diz no refrão: ‘Ó Seu Doutor, o racismo não acabou, só mudou de adereço. Se antes era na chibata, hoje é no terno e na gravata, mas resiste o povo negro’. Essa música vai discutir esse mito da democracia racial que existe no Brasil. Quem é o ‘Seu Doutor’? É aquele sujeito de classe média alta que acha que não é racista, mas, ao mesmo tempo, tem em sua mansão uma empregada doméstica que ele acha que paga muito bem. Só que ele não percebe que está reproduzindo uma prática muitas vezes senhorial em seu convívio. Essa música diz que o racismo está para além das questões que esse ‘Seu Doutor’ pode perceber. O racismo está entranhado na estrutura da sociedade brasileira, no mercado de trabalho, na própria escola. Temos que analisar as bases desse problema. A Princesa Isabel é outro mito. Eu como professor de história trabalho isso na sala de aula. Se existe alguém que redimiu os negros foi Zumbi dos Palmares, foi a resistência dos próprios negros organizados nos quilombos. O Estado que diz ter abolido a escravidão é o mesmo Estado que não tem nenhuma política pública para os pobres e negros, que os exclui, ou usa como mão-de-obra barata e precarizada. Só a política da segregação e da repressão. Desde então, os negros são marginalizados, sem saúde, sem educação, e daí vem a formação das favelas. E nós tentamos abordar isso tudo. O racismo é fruto do sistema social em que vivemos — afirma Filipe.
AND: Além de músicas próprias, como é formado o repertório do grupo?
— Além de tentar valorizar músicas da cultura popular conhecidas, recuperamos outras não tão conhecidas, mas importantes. Tocamos Cantos das três raças, Nome das favelas, do Paulo César Pinheiro. Tocamos outras canções históricas como A las Barricadas, da Guerra Civil espanhola — diz Aninha.
AND: E o nome Corisco, como surgiu?
— Corisco é a fagulha do trovão e é o último cangaceiro de Lampião, aquele que preferiu morrer a se entregar para seus carrascos, como diz o ditado ‘é melhor morrer em pé do que viver de joelhos’— conclui Filipe.