Entrevista: Klévisson Viana — Cordel para os intelectuais e folheto para o povo

Entrevista: Klévisson Viana — Cordel para os intelectuais e folheto para o povo

A literatura de cordel há muito está incorporada a nossa cultura. É difícil precisar a data e o lugar onde surgiu, porque, onde quer que exista um poeta do povo, um poeta popular, certamente, essa literatura está presente. Podemos considerar, ao longo da história, que Davi tenha sido um cordelista. Ele escrevia boa parte de suas obras em versos. Assim como Homero, porque era um cego que andava de porta em porta fazendo versos de improviso, e os trovadores medievais. Acredito que esta cultura tenha sido mais presente na Europa, principalmente na França, Inglaterra, Portugal e alguma coisa na Alemanha. No entanto, as raízes da literatura de cordel brasileira estão principalmente na Espanha, em Portugal e um pouco na França. Trouxeram-na em forma de quadras, trovas que eram as formas mais comuns de escrever essas poesias na Europa.

Esse termo de literatura de cordel veio de Portugal, onde os folhetos eram vendidos em feiras pendurados em barbantes, em cordões que se chamavam cordéis. Para outros estudiosos, o cordel era assim chamado porque as brochuras eram encadernados com barbantes. No Brasil, porém, não existia a denominação de literatura de cordel. Somente a partir dos anos 60, com a insistência dos pesquisadores europeus em chamá-la por este nome, os poetas passaram a ser chamados de cordelistas. No meio do povo ainda é o velho romance, o velho folheto, que prevalece.

Nordestina e universal

Todos os temas, dos mais sofisticados aos mais rudimentares, já foram abordados nesta literatura. Ela é nordestina, na medida em que se desenvolveu com força no Nordeste, como a quadra se desenrolou em mais de cem estilos, cem formas diferentes de escrever e contar esta literatura. Mas, é imensamente universal, porque aborda qualquer temática, desde as lendas européias até as coisas mais folclóricas da cultura brasileira — não há um limite de tema ou de tempo. Vai desde um folheto educativo, que aborda saúde, até outro que aborda o gracejo, mais para o lado humorístico. Da mesma forma que a literatura clássica, a literatura acadêmica aborda todos os temas, a literatura de cordel segue os mesmos caminhos.

Apesar dessa literatura ter vindo de Portugal ou Espanha em alguns impressos, a tipografia só chegou ao Brasil no Império, e não era acessível a todos. Assim, essa literatura começou a ser recriada há 250 anos, ou mais, porque encontramos estrofes de Gregório de Matos com a mesma estrutura da literatura de cordel, já fugindo um pouco daquele padrão de Camões, em Lusíadas. Assim, uma nova estrutura foi sendo criada, novas estrofes com intercalações das rimas diferenciadas. Uma tendência diferente. Então o pesquisador Sílvio Romero documentou alguma coisa desta fase primitiva da literatura de cordel no Brasil. Juvenal Galeno, em Cantigas ou lendas documenta quase tudo dos primórdios desta literatura, num livro escrito há mais de 150 anos. Por aí se conclui que a literatura de cordel não tem 100 anos, apenas. Quando não era possível imprimir este material, o folheto era passado de mão em mão, e quando uma pessoa achava o poema interessante ela transcrevia e já passava para outra pessoa — caso de contadores do passado, como Inácio do Catingueiro, que era escravo. Isso foi acontecendo até o século XIX, quando as tipografias começaram a se popularizar na capital pernambucana.

De cantadores e repentistas aos literatos

Os poetas populares começaram a perceber que esse material poderia ser impresso e comercializado. Foi o período de pioneirismo do paraibano Leandro Gomes de Barros, nascido em Pombal, na Paraíba. A literatura de cordel no Ceará remonta desde o círculo do couro, onde podemos encontrar folhetos de romance como O Rabicho da Geralda, de Antônio Bezerra de Menezes. É a história de um boi mandingueiro que precisou de inúmeros vaqueiros para tentar prendê-lo, mas se escondeu no mato e não conseguiram detê-lo. O nome do boi era Rabicho e a sua proprietária era Geralda, daí o título desse que foi um dos mais antigos folhetos de que se tem registro, e que, segundo José de Alencar, foi um dos livros que influenciou sua vida. Essa história passava de mão em mão, escrita, manuscrita, e de casa em casa.

Não há um só conhecimento local,
nacional ou mundial que não tenha
sido trazido pela literatura de cordel

Vivemos um momento muito fértil, em que várias portas estão surgindo. Nunca tivemos tantas portas como temos na atualidade. Esse papo de dizer que a poesia feita no computador não é cordel, é furado. Só por que, antes, era manuscrita e depois passou a ser impressa deixou de ser literatura de cordel? Não! O fato de utilizar um recurso como a Internet para veicular este tipo de literatura não faz com que ela deixe de ser popular. Porque, hoje, a Internet está se tornando um veículo popular. É apenas mais um meio que não descaracteriza esta literatura. O que descaracteriza o cordel é escrever errado e não obedecer às regras da métrica, rima e oração. O cordel pode estar em CD, rádio, televisão, e continuar cordel, assim como pode virar peça de teatro ou cinema. Boa parte desta literatura produzida na Europa, durante a Idade Média, era para ser ensinada nas ruas — os teatros de rua, mesmo. A literatura popular sempre utilizou esses meios, ou novos meios para se divulgar. Utilizar a modernidade para veiculá-la, não significa amoldar-se aos novos meios, mas que os novos meios estão se utilizando dela, porque ela veio antes deles.

Temos tantos poetas bons, como Gonçalo Ferreira, presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel no Rio de Janeiro, cearense de Ipú; Vidal Santos, presidente da Academia Brasileira de Cordel; Arievaldo Viana, um dos grandes mestres desta nova safra de poetas; Rouxinol do Rinaré; José Mapurunga; Francisco Leite Quental, e por aí vai. Temos José Maria de Fortaleza, conhecido nacionalmente. Também os trabalhos de Rouxinol, Arievaldo e o meu, têm reconhecimento nacional, porque já temos trabalhos adaptados para a televisão, rádio. Todos os grandes veículos de comunicação já fizeram matérias sobre os nossos trabalhos.

As proezas de João Grilo, O pavão misterioso e A chegada de Lampião no Inferno, são três romances de cordéis imbatíveis nas tiragens, assim como o cordel O professor sabe-tudo e as respostas de João Grilo, Seu Lunga e O rei do mau humor, que são temas de grande aceitação popular. O folheto A Quenga e o Delegado foi adaptado para a televisão e, com este tema, já vendemos mais de 10 mil exemplares. Outro livreto com grande número de tiragens foi A história completa de Lampião e Maria Bonita, que virou um best-seller da literatura de cordel. A média de tiragem é de, no mínimo, dois mil exemplares.

Há mulheres poetas geniais, como Mocinha da Passira, a repentista Maria Assunção do Senhor, poetisas novas, como Luzivan Matias, que tem apenas 26 anos. Manuel Monteiro publicou uma série de cordéis onde haviam somente poetisas com mais de 10 folhetos publicados.

E bem vivo

Não há um só grande acontecimento local, nacional, ou mesmo mundial que não tenha sido tratado pela literatura de cordel. O folheto mostra a realidade, mais do que os grandes meios de comunicação, porque não é atrelado a coisa alguma. É independente e é a opinião do autor. Não tem interesse em grupos econômicos, nem tem patrocinadores. Por isso, critica e aborda, como nenhum outro meio. Sendo honesto em suas abordagens, é natural que o cordel se sinta ameaçado — da mesma forma que a televisão e o rádio ameaçaram o jornal impresso. E, sempre que surge um novo meio, vai haver aquele receio de que outro desapareça. Porém, o tempo acaba provando que o novo meio vai continuar vivendo paralelamente com os outros.

Há pessoas que se dizem estudiosas, pesquisadoras do cordel, mas quando o cordel enfrentou uma fase crítica nos anos 90, foram as primeiras a dizer que ele havia morrido, estava morto e enterrado — e não é bem por aí. O cordel nunca morreu porque poetas como José Costa Leite, Manuel Monteiro, Gonçalo Ferreira, jamais deixaram a boa literatura morrer. Estiveram sempre na ativa. A literatura de cordel não se acaba nunca. Não tem quem acabe com a literatura de cordel. Mestre Azulão, um poeta paraibano com mais de 70 anos que mora no Rio de Janeiro, enfatizaria a credibilidade do cordel da seguinte forma: quando o homem foi à Lua, as camadas mais humildes da população zombaram dos meios de comunicação. Bastou os cordelistas abordarem o tema para as pessoas passarem a acreditar. As pessoas confiam e acreditam plenamente no folheto. Também os assuntos são os mais diversos. Muitas vezes, quem determina o assunto é o próprio publico leitor. O público está interessado em um folheto sobre o Lula? A gente faz. No caso, esse folheto é jornalístico. Folheto de notícias, como o ataque às Torres Gêmeas, a violência frequente nos grandes noticiários, também são comuns. O cordel não perde a validade por existir outros meios. Ao contrário, as pessoas lêem a notícia no jornal e querem saber o que o poeta de cordel pensa a respeito daquilo. Porém, a literatura de cordel não se restringe aos fatos jornalísticos. Há também o romance, com temas atemporais, que podem ser lidos daqui a 20, 30 ou 100 anos, com a mesma atualidade. As histórias de amor, gracejos, lendas e príncipes são eternas. A literatura de cordel se eterniza por este meio. O folheto de notícias vem, normalmente, com poucas páginas, mas o romance vem com 16, 24, 46 páginas. Temos, até, folhetos escritos com mais de mil estrofes.

O folheto mostra a realidade mais do que
os grandes meios de comunicação,
porque não está atrelado a nada

O leitor tradicional é aquele cidadão que cresceu ouvindo os pais e os avós, que já gostavam desta literatura, que nasceu na roça ou em pequenas cidades, ou mora na grande cidade mas tem raízes rurais. Temos um grande público em universidades e escolas. Existem pesquisadores de folhetos, pessoas ligadas aos meios de comunicação, turistas do mundo inteiro porque esta não é mais uma literatura nordestina. É uma literatura brasileira e, por extensão, mundial. Grandes colecionadores de literatura de cordel são encontrados no Japão, Holanda, EUA e no mundo inteiro.


Antônio Klévisson Viana Lima, nascido em Quixeramobim/CE, é poeta popular. Assina diversos livretos de cordel, obras divulgadas em rádio e televisão como O romance da quenga que matou o delegado. Tem seu trabalho reconhecido em países como Turquia, Bélgica, Itália, Holanda, Japão e muitos outros. Hoje, tenta implantar no Nordeste e, futuramente, em todo o Brasil, a tradição da cultura oral popular nas salas de aula, junto com outros cordelistas.

O poeta popular descobre a xilogravura

A xilogravura não nasce com a literatura de cordel. Ela começou a fazer parte dos folhetos à partir dos anos 50. Porém, foi à partir da década de 20, com o trabalho de edição do poeta João Martins de Athayde, que o cordel começou a ter uma feição comercial mais forte. Athayde contratou os melhores caricaturistas e chargistas do Diário de Pernambuco para fazer as capas de seus folhetos. O povo teve uma identificação muito grande com a feição do folheto. Tanto é que, já no final da década de 40, quando o acervo da editora foi vendido para o alagoano Zé Bernardo da Silva, ele continuou publicando as mesmas obras, em Juazeiro do Norte, utilizando as mesmas capas.

Paralelamente, aqueles autores independentes que não podiam pagar um clichê, comprar uma ilustração, começaram a cortar umas matrizes, estacas de Umburana para servir como clichê, na substituição da figura ou do desenho.

A xilografia é uma matriz de madeira que imita um clichê de chumbo. Na verdade, o clichê já é uma imitação da xilogravura, que é uma técnica milenar dos chineses e egípcios: uma figura recortada na madeira, em relevo. A parte que fica em relevo imprime como um carimbo num papel e a que você corta são sulcos, onde a tinta não penetra e não consegue imprimir. O que dá o formato do desenho são os sulcos cavados na madeira.

A xilogravura entrou na vida da literatura de cordel, como uma alternativa do poeta pobre, do poeta mais humilde, de ilustrar uma capa de um folheto. Ela entrou na vida do folheto, meio à revelia, e o público não se identificou de imediato. Hoje, se por um lado o intelectual que gosta de folheto, o estudioso ou o turista que compra o folheto como uma curiosidade, prefere a capa com a xilogravura, o público mais tradicional prefere a capa com desenhos, fotografias. Os autores e editores tentam sempre agradar a todos, trabalhando tanto com a xilogravura como com desenhos, figuras, etc..

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