Entrevista: Tarcísio Leitão – A tortura é um ato de extrema covardia

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Entrevista: Tarcísio Leitão – A tortura é um ato de extrema covardia

http://jornalzo.com.br/and/wp-content/uploads/75/09-098.jpgTarcísio Leitão é um dos maiores agitadores que o Ceará já produziu. Hoje, com 75 anos de idade, comemora 60 anos de seu ingressos nas fileiras do PCB. Aos 15 anos ele já trabalhava na imprensa do partido. Tarcísio nunca saiu do PCB e, embora mantivesse sua fidelidade à linha eleitoral da direção partidária, sempre apoiou as organizações que tinham divergência com o PCB e aderiram à luta armada, tanto assim que foi indiciado pelo regime militar fascista nos inquéritos da ALN, do PCBR, do PCdoB, da AP-ML, além do próprio PCB. Preso dezenas de vezes, foi em 1972 que sofreu o maior suplício ao ser torturado durante 45 dias nas dependências do exército. Ao contrário de muitos que renegaram a causa revolucionária, Tarcísio continua lutando pelo socialismo e pelo comunismo. O AND foi até o seu escritório de advocacia de causas trabalhistas e conversou com Tarcísio Leitão sobre a sua militância e, particularmente sobre a tortura que ele qualificou como crime contra a humanidade.

AND: Quando foi que você entrou para o Partido Comunista?

TL: Na Campanha do Petróleo, 1947 mais ou menos.

AND: E como foi o começo de sua militância política?

TL: Eu tinha ligações com o deputado cassado do Parido Comunista, José Marinho de Vasconcelos. Eu conversava muito com ele e ele colocava a mão na cabeça e dizia: “Pô, você está com uma capacidade para pensar que poucos têm dentro do partido”.

E disse mais. Disse que a gente joga com várias hipóteses, várias soluções sobre esse negócio de botar o partido na ilegalidade. “Eles não fecharam todos os partidos, é uma porta pra gente quebrar, influir num partido mais próximo”. Eu dizia pra ele que eu achava interessante, mas eu era reticente, mas depois houve uma repressão muito grande em cima dos jovens que faziam pichação na cidade, muita prisão. O Brito, um jovem da juventude comunista lá do Crato, levou um tiro no olho, perdeu a vista fazendo uma pichação. Aí o Marinho disse que se a gente conseguisse uma associação de estudantes que assumisse a paternidade da Campanha do Petróleo dava pra mascarar a presença dos comunistas e eu respondi: só se for o movimento cívico político Eduardo Gomes, da UDN. Ele disse que podia ser o diabo. Eu fui lá pedir para eles darem uma nota contra as prisões políticas e assumindo a Campanha do Petróleo. Então, em vez de jornais, nós fomos catar dinheiro. Eu cresci diante do Marinho. Quando eu comecei a defender a tese de outro partido, ele disse: “se você conseguisse uma legenda, pra gente ter candidatos”, o Partido Socialista é uma possibilidade, respondi. E ele disse: “Eu não acredito. Mas nunca estamos impedidos de tentar”. Pouco tempo depois eu era Secretário Geral do Partido Socialista Brasileiro. Houve um problema danado porque eu tinha quinze anos nesse tempo, não tinha dezoito. Foi uma dificuldade para registrar a direção porque eu não tinha documento militar. Eu fui empurrando um tempo com a barriga, consegui uma legenda e o partido elegeu nove, nove não, dez, o Paulo Mamede, o Waldemar Pedro dos Santos e outros…

AND: Mas houve processo de formalização da sua entrada no partido?

TL: Houve. Com quinze anos eu passei a trabalhar no Democrata, o jornal do Partido Comunista.

AND: Era diário?

TL: Era diário.

AND: Mas não estava proibido?

TL: Não. Não fecharam o jornal não. O jornal era pra dar a aparência de democracia, de liberdade de imprensa, etc. Fui convidado a assistir uma reunião da base do Democrata como convidado e eu mesmo propus, de enxerido mesmo. Aí eu entrei pro partido.

AND: Antes de entrar pra juventude?

TL: Eu entrei pro Partido e, só quando já tinha uns dezoito anos, fui convidado para ir para a juventude.

AND: E no caso dessa campanha de pichação, nesse período, antes de 1964, você chegou a ter alguma prisão?

TL: Muitas. Na Campanha do Petróleo, eu recebi uma orientação do Partido para denunciar a prisão do Cartaxo, do Luiz Edgar Cartaxo de Arruda e o Euzébio Oliveira. E a orientação era pra gente fazer nas saídas das novenas. Não me lembro se era novena de São Francisco, ou outro santo desses. Juntava muita gente, muitos jovens. Eu estava denunciando, quando passou uma patrulhinha e eu lá fazendo o discurso. Me pegaram e me levaram.

AND: A prisão era feita pelo DOPS?

TL: Sim. Como eu tinha treze anos, tratavam de me soltar. Às vezes o próprio juiz de menores mandava soltar dizendo que não era crime um menino estar participando da Campanha de Petróleo.

AND: E na década de 50, antes de você fazer dezoito anos, já entrando na época da renuncia do Jânio, do governo Jango?

TL: Era a época da faculdade. Eu fazia política universitária e a coisa era braba. Tinha um pessoal radical dentro da faculdade e os comunistas participavam do grupo radical, mas a participação maior não era dos comunistas, era de estudantes comunistas atuantes na UDN.

AND: A UDN no Ceará tinha essa característica?

TL: Tinha. Era o grupo dos 8Ts – topo tudo, todo tempo, tanto tempo, tô tinindo! Não tinham personalidade jurídica. Era um grupo de pessoas que se conheciam e tinham um ânimo.

AND: Quais eram as palavras de ordem no início dos anos 60, além da Campanha do Petróleo?

TL: Eram as reformas de base e a denúncia do reacionarismo da UDN e principalmente do Carlos Lacerda. Ele era um gênio, foi do Partido Comunista e renegou o comunismo se tornando um reacionário de quatro costados.

AND: Como era o comportamento dos militares naquele período?

No Ceará tinha a 10ª Região Militar. Aqui, eles exerciam, de fato, um poder de polícia, faziam rondas, prendiam para averiguação e entregavam os prisioneiros no DOPS. Uma vez eu e o Manoel Coelho Raposo estávamos fazendo uma pichação no muro do cemitério e eles chegaram de repente. De imediato pulei para dentro do cemitério. O meganha subiu no muro e ficou gritando: “o cão te pega comunista”, mas ele não teve coragem de me pegar (risos). Lembro também do dia da morte do Getúlio. Quando eu soube da notícia, fui para o colégio São José. Reunimos a base do partido e concluímos que a sua morte inçava um golpe contra os seus acertos e não contra os seus erros. Decidimos então parar as aulas e conclamar os alunos a saírem em passeata até o abrigo central da Praça do Ferreira, onde iniciamos uma grande agitação. Por volta das 16h um capitão do exército me deu voz de prisão. Eu resisti e a massa saiu em passeata até o DOPS quando um delegado progressista disse que não admitiria ilegalidade e que se o rapaz estava distribuindo o seu jornal (O Democrata) não iria prendê-lo por isso. Voltamos então para a praça e continuamos a agitação.

AND: E em 64, como se deu a repressão?

Bom, no dia 31 eu fiz um discurso na Câmara Municipal, eu era vereador, e improvisamos uma tribuna em uma janela que dava para a rua onde uma grande quantidade de pessoas assistia ao ato. O exército chegou e eu aproveitei um carro de aluguel que estava parado em frente à Câmara e saí jogando-o contra a milicada, que pulou de lado. Fui para a casa de meu pai, onde me esperava o William Sá, camarada do partido, para me levar para a casa de seu pai, um major do exército. Ele já tinha tomado umas cachaças e disse que podíamos ficar na casa dos fundos e que se alguém fosse nos procurar seria recebido à bala. E foi o que aconteceu. Por volta das três horas da madrugada, ouvimos disparos e o William achou que era coisa de bêbados. Qual nada, o velho pai dele tinha disparado contra um comando do exército que não revidou mandando logo cedo um capitão procurá-lo perguntando se ele estaria dando guarida ao comunista Tarcísio Leitão, no que o major retrucou: “se aparecer comunista aqui eu mando bala. Eu atirei em vocês de madrugada porque eu pensei que eram eles. O capitão disse que confiava em suas palavras e foi embora. Saímos pelos fundos e fomos direto para a Rádio Dragão do Mar, onde peguei o microfone e denunciei o golpe e conclamei o povo à resistência. Assim que acabei o discurso o Cartaxo me liga e diz para eu cair fora, pois os homens tinham ordem de me matar. Entrei para a clandestinidade e fui me esconder em um sítio em Cascavel. Depois de alguns dias, notamos um avião sobrevoando a região, era a aeronáutica nos procurando e não atinamos para isso. No dia seguinte, os milicos chegaram, me amarraram e me puxaram por vinte quilômetros sob xingamentos e muita porrada. Levaram-me para o 23º. Batalhão de Caçadores. Abriram um inquérito com mais de duzentas pessoas e tinha como cabeçalho o Tarcísio Leitão e outros. Eu tinha dois tios generais, um deles teve a casa invadida e eles fizeram injunções junto ao Castelo Branco que o Gregório Bezerra tinha apelidado de Zé Macaco e ele, ao invés de me soltar, me mandou para Fernando de Noronha depois dos interrogatórios. Eu e o Moura Beleza chegamos a Fernando de Noronha, transformado em presídio político, onde já se encontravam muitos presos do Nordeste, inclusive o governador de Pernambuco, Miguel Arraes.

AND: Como foi a prisão em Fernando de Noronha?

TL: Aproveitamos para dar alguns cursos de marxismo para os companheiros menos instruídos e tivemos a sorte de encontrar uma biblioteca, do período antes de ser transformado em presídio, que dispunha de uma vasta bibliografia marxista. Ela foi montada por um major comunista que governou a ilha naquele período. Acontece que as pessoas em Fortaleza não tinham nenhuma informação sobre o que estava acontecendo comigo e iniciaram uma campanha de denúncia de que eu estaria sendo torturado na ilha. Foi essa campanha e a ação de dois generais ligados à família de minha mãe que possibilitaram a minha volta para Fortaleza depois de onze meses. Fiquei preocupado porque teve um prisioneiro que foi solto e em seguida assassinado. Aí que eu cheguei ao aeroporto do Recife peguei uma criança no colo, filho de um sargentão e pegamos um táxi juntos, fugi fazendo o percurso todo pelo sertão e continuei na clandestinidade.

AND: Quando foi que aconteceu a nova prisão?

Em 1972. A coisa foi braba, foi de lascar, foram 45 dias de tortura, não sei como eu escapei. A tortura começava às dez horas da noite e ia até seis horas, eles me amarravam e começavam com sessão de choques, telefone, dedo nos olhos, socos no estômago, porrada nos testículos, tudo acompanhado por um médico e chefiado por um tal de Xavier. Eles diziam: “Fala!” E eu respondia: “eu não estou falando?” E eles diziam: “Eu quero nomes, entendeu? Dê-me trinta nomes”. Aí eu respondia: “José, Pedro, Antônio, Luiz…”. Aí o pau cantava novamente. Eles são tarados. Sentiam prazer em torturar. Tinha horas que o médico falava: “o homem é de vocês, mas ele não aguenta mais”.  Eu consegui provar que tinha sido torturado e tenho em mãos o documento assinado pelo médico legista.  Em 72 a preocupação maior deles era a guerrilha do Araguaia e achavam que eu tinha algo a ver, pois alguém havia entrado no meu escritório. Como as pessoas de esquerda frequentavam meu escritório, eles foram me indiciando em tudo que era inquérito sobre organizações como a ALN, a VAR-Palmares, o PCBR, o PCdoB e por aí vai. Num dos inquéritos, o juiz me perguntou se eu era comunista e eu respondi que era, dentro do que a lei me permitia. Em seguida ele perguntou se eu era membro do PCB e então eu respondi que, quando o PCB foi extinto, eu ainda era menino. Na verdade, eu sempre defendi que, mesmo tendo divergências na linha política das várias organizações, havia um núcleo comum que unia a todas e eu, dentro do possível, ajudei a todas.

AND: Para você o que é a tortura?

TL: A tortura é a extrema covardia, é o homem amarrado, imobilizado e um bando maltratando até não querer mais. Eles são covardes, pois te colocam o capuz porque morrem de medo de serem identificados. Se eles me põem o capuz é porque querem me maltratar sem me matar, senão ficariam cara a cara. A tortura no Brasil vem da cultura ultra-montana portuguesa, caracterizada pela truculência de comerciantes judeus, árabes. Você não sabia onde começava o comerciante e terminava o assaltante. Hoje a tortura continua com os presos comuns e contra o povo de modo geral e a esquerda não protesta nada, na verdade ela está esfacelada. A máquina de repressão está montada e cada vez mais aperfeiçoada. O James Petras denunciou, em entrevista ao Pravda, que estão sendo montadas pelo Obama bases de guerra no Brasil. Nós estamos num raquitismo ideológico tão grande que somos incapazes de ter um projeto de mudança da natureza jurídica do empreendimento, para dar a prevalência do interesse social sobre o interesse individual, elitista, egoísta. É preciso definir quem é o inimigo principal e qual a tarefa principal.

AND: Qual a sua opinião sobre esta Comissão da Verdade?

TL: Acho que essa tarefa de buscar a verdade é do povo. Conhecer a verdade e adotar as medidas que achar necessário sobre qualquer tipo de lei. Deixá-la na mão de uma corrente política é muito perigoso. Têm muitos generais e marechais pelo mundo que estão na cadeia. Aqui no Ceará, a morte do Pedro Jerônimo de Sousa segue sem esclarecimento e sabemos que o seu assassino continua impune.

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