"Gravatas" e "caçarolas de teflón"
Esboço sobre a recente luta de frações na Argentina
Wilson Henriques
O processo mundial inflacionário, a crise alimentar e a dinâmica de duas lutas internas das classes dominantes —burocrática e exportadora — na Argentina, desencadearam um conflito econômico, político e social que novamente desestabilizou um governo argentino.
Manifestantes encaminham-se à Plaza de Mayo
Neste artigo faremos uma breve introdução desta problemática, tratando de compreender os elementos internos e externos causadores, assim como as formas que esta se manifesta.
No início de 2008, poucos imaginaram que as estruturas de poder na Argentina iam sofrer uma comoção que esteve a ponto de colocar o Estado num processo de desestabilização política, como experimentado em dezembro de 2001, que culminou com ampla mobilização de massas argentinas nas ruas, obrigando a fuga do então presidente De la Rúa.
A Argentina está marcada por uma história recente sensível a qualquer processo inflacionário, dado que na última década a moeda argentina passou por uma das experiências mais traumáticas, como produto de uma série de obscuras políticas cambiais e financeiras que tiveram como resumo o colapso financeiro de 2001, assim como as massivas manifestações contra o chamado "curralito financeiro".
Dali em diante, a economia argentina foi submetida a uma série de medidas macro econômicas, o famoso pacote econômico dos organismos financeiros internacionais, que incluía a redução de subsídios, a queda dos salários, política de desvalorização monetária, medidas de corte de gastos e déficit fiscal, paralisação de execução de políticas sociais e pagamentos de sua numerosa dívida externa; que no geral apertou as economias dos lares mais pobres da Argentina.
A nova capacidade aquisitiva dos lares argentinos, uma das mais altas da América Latina foi uma fonte atrativa da força de trabalho e capitais de países vizinhos e de outros continentes; hoje não é nem a sombra da que tinham os argentinos há uma década atrás.
No capitalismo burocrático, quando chove nem todos se molham, por isso a fração agro-exportadora da burguesia argentina aproveitou, por um lado, a queda salarial da mão de obra e, por outro, o processo inflacionário mundial dos alimentos para elevar seus lucros, driblando as crises com medidas de ajuste econômico, as mesmas que jamais lhe afetarão.
Esta situação observada pacientemente pela burguesia burocrática argentina atiçou a pugna pela disputa de lucros capitalistas entre a burguesia nacional argentina e a burguesia agro-exportadora. Antes disso, os burocratas, representados pela administração de Cristina Fernández de Kirchner, decidiram fazer retenções móveis das exportações de soja para engrossrem os cofres públicos que eles administram.
A fração burocrática da burguesia argentina possui um discurso nacionalista, populista e dito de "esquerda", que em certos momentos tenta imitar discursos peronistas da década de 1950, mas mantendo medidas neoliberais de ajuste econômico. E é precisamente com essas medidas que permitiram maiores lucros dos agro-exportadores, para logo serem substituídos na partilha, sendo colocados no papel de bestas úteis.
Esta esquerda "caviar" empreendeu uma batalha na qual brigou por impor sua medida de retenção de lucros da agro-exportação, denominando a burguesia agro-exportadora argentina de oligarquia latifundiária. Esta denominação não é novidade, ficou muito em voga nos últimos tempos na América Latina: Hugo Chávez lança os mesmos ou semelhantes expressões ao empresariado venezuelano, Evo Morales faz o mesmo com a oligarquia cruzenha na Bolívia e Rafael Correa não amesquinha seus embates contra a oligarquia guayaquilenha no Equador.
Tanto que algumas burguesias burocráticas latino-americanas coincidem em seus modus operandi de esconder sua condição elitista, sob a enganosa roupagem populista que apela demagogicamente à classe — que na realidade pouco ou nada importa — ou a etnia; principalmente aquelas que se vangloriam de ser altamente revolucionárias.
Por outro lado, a burguesia agro-exportadora argentina está conformada pelos latifundiários, dedicados à agro-indústria de soja, uma espécie de junkers* latino-americanos, cujas atividades ocupam vastas extensões de terras no norte argentino.
Em resistência as medidas de retenção de seus lucros, os agro-exportadores iniciaram uma série de mobilizações e confrontos por mais de 100 dias, nas quais conseguiram atuar e mobilizar as camadas médias da sociedade argentina em manifestações de rua, que pelo visto também se converteram num lugar comum dos setores agro-exportadores ou opositoras à fração burocrática na Venezuela, Bolívia e Equador.
Esta capacidade de mobilização deve-se à utilização do disfarce de "burguesia nacional", que supostamente promove desde iniciativas privadas a geração de empregos e a produtividade da Argentina. No entanto, dificilmente se entende o papel do chamado agronegócio sem a compreensão das necessidades dos mercados capitalistas mundiais, porque toda a produção agro-exportadora responde a essas necessidades e não a interesses estratégicos nacionais, dado que se inspira na reprodução da velha lógica de economia atravessadora e de mono-exportação, mesmo que na atualidade existam mais — ainda que pequenos — espaços de diversidade de produção, além das permanentes dádivas e políticas de exonerações que o Estado costuma fazer.
O confrontamento burguês na Argentina não só ganhou as ruas, como tornou-se previsível, a discussão teve continuidade dentro do círculo parlamentar, onde a partir de um árduo debate, diversos parlamentares assumiram evidentes e grosseiras posições de fuga, encerrando o apimentado debate por mais de 17 horas. O próprio vice-presidente da república Júlio Cobos, que contrariando a presidenta Cristina Fernández, terminou inclinando-se por vetar o projeto de lei de retenções móveis as exportações de grãos dos latifundiários.
Esta luta burguesa exaltou o interesse da chamada "esquerda radical", cujas diversas frações vêm tomando partido por um ou outro bando da burguesia, longe do compromisso de seguir e construir o caminho democrático, o caminho do povo, munido absolutamente dos interesses de burocratas de gravata e agro-exportadores que saem de maneira inusitada às ruas a se manifestar com impecáveis caçarolas de teflón.
*Os junkers foram uma elite latifundiária na Alemanha e Rússia — que se reciclou como elite burguesa. Para maiores detalhes lê-se O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia de Lênin.