As professoras Sônia Almeida e Sandra Resende, coordenadoras da campanha nacional de alfabetização promovida pela Escola Popular, em entrevista a AND, contam as primeiras experiências da luta pela alfabetização de camponeses em áreas do Norte de Minas Gerais.
Escola Popular – Sempre que nos encontramos com os ativistas do movimento camponês, em congressos e atividades, somos alertados para a necessidade da construção das Escolas Populares. A maioria deles não sabe ler e escrever e esta situação colocou à Escola Popular este arrojado desafio: o de iniciar uma grande campanha de alfabetização no campo. Mas como fazer uma campanha se não temos professores no campo, não recebemos recursos do governo, não possuímos estrutura no campo? Estes são problemas chave para iniciarmos qualquer trabalho. Temos desenvolvido método e experiências importantes que devem ser reproduzidas, mas para isso, necessitamos da força principal do nosso trabalho, as pessoas capazes de manejá-los. Desta forma decidimos formar alfabetizadores das próprias áreas camponesas.
EP – Exatamente, e isto representa um grande desafio, pois ainda impera nesta sociedade semifeudal e semicolonial a lógica incorreta de que, para poder ensinar, deve-se possuir um diploma superior. A nossa concepção de ensino e aprendizado é avessa a esta idéia atrasada. Defendemos que aquele que sabe ler e escrever pode também ensinar. Em outubro de 2007 fizemos várias reuniões com lideranças camponesas. Em novembro, fomos até Rondônia, onde a Escola Popular e a Liga dos Camponeses Pobres realizaram uma campanha para a formação de Escolas no campo. Esta rica experiência de luta pela implantação das escolas nas áreas camponesas nos deu os primeiros fundamentos para prepararmos o primeiro curso de alfabetizadores e mobilizadores da Escola Popular.
EP – Preparamos um material baseado em nossa experiência com a alfabetização de adultos. As Ligas dos Camponeses Pobres do Norte de Minas e Centro-oeste se encarregaram de convidar os futuros alfabetizadores das áreas para o curso. Desfraldamos a consigna Ler, escrever e interpretar: este é o desafio da Escola Popular. O curso foi realizado em fevereiro e abril deste ano, primeiramente em Belo Horizonte e a segunda etapa em Jaíba. Havia representantes de onze áreas. Debatemos sobre a necessidade de construção das Escolas Populares como instrumento para promover o ensino e impulsionar a Revolução Agrária. Discutimos também nossa concepção do conhecimento, o que foi decisivo para esclarecer os alfabetizadores das áreas e demonstrar a eles por que podem de fato ensinar. O primeiro curso teve como objetivo iniciar. Formar a Escola onde ainda não existia, fortalecer e impulsionar onde ela já funcionava. Concluímos este primeiro curso com grandes tarefas e todos os alfabetizadores e mobilizadores camponeses retornaram as suas áreas com desafios e metas. Todos levaram a experiência e os materiais produzidos no curso como ponto de partida.
EP – Decidimos fazer um acompanhamento político-pedagógico nas áreas. Essa foi uma experiência tão rica que ainda buscamos sistematizar todo o aprendizado. Visitamos onze áreas em nove dias, percorremos centenas de quilômetros, ouvimos críticas, recolhemos experiências, participamos de assembléias e aulas inaugurais, vivenciamos situações de confrontação entre camponeses e o latifúndio.
EP – Uma coisa que é motivo de grande entusiasmo para nossa coordenação, é que com a realização do primeiro curso de formação, não foi necessário levar a escola às áreas, pois em todas as áreas existe concretamente a Escola Popular. Pode não estar estruturada, ou da forma ideal, mas ela existe. Nós fomos levar apoio político para a sua construção e avaliamos que cumprimos este objetivo. Um saldo muito importante extraído desta experiência é que a campanha vem se consolidando nas áreas como um movimento de grande mobilização política, que abarca muitos camponeses. A Escola Popular defende que o conhecimento provém dos três tipos de prática social: a luta de classes, a luta pela produção e a experimentação científica. Não há como dissociar a Escola da luta do povo e hoje esta luta é pela Revolução Agrária. Hoje a Escola Popular se concentra na campanha de alfabetização para jovens e adultos. Mas a Escola não é só isso. Nosso objetivo é desenvolver o conhecimento em todas as áreas, nos mais variados níveis.
Temos agora novas metas e desafios como:
1 Sistematizar estes seis meses de experiência e promover um novo curso com os alfabetizadores e mobilizadores das áreas camponesas;
2Desenvolver e aprofundar a concepção da Escola fundada na relação do conhecimento com a prática;
3Desenvolver mais os fundamentos pedagógicos para dar mais condições de desenvolvimento do ensino nas áreas.
Diário da campanha
Reproduzimos e adaptamos trechos de um diário de viagem escrito pelas professoras Sandra e Sônia. Seu relato e suas impressões representam a experiência viva da mobilização e luta das massas camponesas pela construção das Escolas Populares.
Desafios
21/07
Decidimos visitar a primeira área a começar a implantação da Escola Popular após o curso.
A área "Brilho do Sol", município de Varzelândia
O principal desafio estava na mobilização dos camponeses e a construção material da Escola.
De forma geral, os camponeses se mobilizam para conquistar mesas, cadeiras, lousas, lona, cadernos, lápis. Um problema chamou nossa atenção em praticamente todas as áreas: a falta de óculos. Os camponeses vão estudar e percebem que tem problemas de visão. O trabalho duro no campo, exposto constantemente ao sol e intempéries, prejudica a visão deles, principalmente para a leitura noturna. O tratamento médico nas áreas e os óculos são reivindicações concretas e uma necessidade para os camponeses e a Escola Popular.
A Escola da área Brilho do Sol começou com dois alunos entre vários inscritos. A persistência do alfabetizador e a mobilização dos camponeses foram decisivas para sustentar o trabalho e hoje a Escola tem sete alunos frequentes e a procura cresce!
Tiramos fotos e filmamos para dar o exemplo aos camponeses nas outras áreas.
22/07
Paraterra / São João da Ponte
Chegando lá, havia uma tremenda participação da massa de camponeses que mobilizou toda a área para a atividade da Escola e nossa recepção. No Paraterra pudemos presenciar uma grande manifestação do valor que os camponeses dão à Escola.
Realizamos uma aula de balanço do funcionamento da Escola Popular desde a sua implantação e quase todos os moradores da área estiveram presentes. Mesmo os que não estudam se manifestaram reforçando a importância de ler e escrever. Impressionante a participação das mulheres, são muitas e vanguarda da luta pela Escola Popular.
Esta é a área onde foi edificada uma grande obra da Revolução Agrária: a Ponte da Aliança Operário-Camponesa! Atravessamos orgulhosas a ponte, onde trabalharam vários homens e mulheres, que hoje estudam na Escola Popular da área Paraterra.
23/07
"Unidos com Deus venceremos", Pedras de Maria da Cruz
Mobilização muito grande dos camponeses. Impressionante o envolvimento político e emocional de todos com a Escola e com a Revolução Agrária. Esta área está em pleno movimento do Corte Popular da terra e ocorrem assembléias regularmente.
As palavras dos camponeses de Pedras de Maria da Cruz são de uma simplicidade e profundidade tão grande que superam qualquer catedrático burguês. Um camponês analfabeto que nunca estudou filosofia expressou com muita clareza a teoria científica do conhecimento dizendo que "não adianta nada estudar se isto não servir às necessidades do povo. Fora disto, o conhecimento não serve para nada".
Impressionante como o povo desenvolve um conhecimento profundo da prática e se esforça para compreender e aprofundar seu conhecimento. Um fato marcante que percebemos, é que enquanto um trabalhador da cidade busca de modo geral aprender a ler e escrever, já adulto, para melhorar sua condição de vida, os camponeses organizados pela Liga dos Camponeses Pobres procuram aprender para aumentar sua participação na luta.
Afirmamos que temos um projeto político-pedagógico e que estes dois aspectos andam juntos. E mais, que o projeto pedagógico serve e é orientado pelo político. Caso contrário, cairíamos inevitavelmente em um grave erro de pensar que somente a prática pode desenvolver um conhecimento que sirva ao povo. As escolas formais neste sistema semicolonial e semifeutal em que vivemos hoje possuem um certo tipo de prática nos laboratórios (as que tem laboratórios). Mas esta prática é guiada por qual política e a quem serve este conhecimento? A grandes empresários, grandes burgueses, latifundiários, serve para que a juventude e os trabalhadores sejam explorados.
Uma jovem camponesa disse na reunião que "a Escola Popular é diferente porque não tem prova, mas conhecimento verdadeiro".
23/07
Renascer, Manga
Vemos grandes perspectivas de desenvolvimento do trabalho, mesmo onde temos dificuldades em desenvolvê-lo, os camponeses traçaram metas e prazos.
Em Manga visitamos a área Renascer, conversamos com a alfabetizadora que nos apresentou aos camponeses. Todos disseram que mesmo ainda não havendo começado as aulas, todos estão preocupados em criar as condições materiais para que iniciem logo.
Tivemos uma recepção muito hospitaleira e conhecemos o prédio onde irá funcionar a Escola: a sede da antiga fazenda tomada pelos camponeses.
25/07
Santa Lúcia
A situação é a mesma. A coordenação da LCP está empenhada em debater com os camponeses para impulsionar a Escola Popular na área.
Ainda no dia 25 vivemos nossa primeira situação de tensão: em Montalvânia, visitaríamos uma área onde estava marcada uma ação de reintegração de posse. Dias antes da nossa chegada, um dirigente da área percebeu movimentações do latifúndio que enviou bandos de pistoleiros que rondavam o acampamento.
O companheiro da LCP que nos serviu de guia alertou que seria perigoso ir até a área, mas após algumas horas, avaliou que poderíamos ir falar com o companheiro responsável pela Escola Popular.
O companheiro alfabetizador disse que devido ao clima de tensão havia dificuldades de garantir o funcionamento regular da Escola, mas que todos apoiavam e participavam como podiam.
Na noite do dia 25 chegamos em Porto Agrário — divisa com o estado da Bahia.
Realizamos uma excelente reunião com a comissão encarregada de organizar a escola. Nesta área, assim como no Paraterra, tivemos importantes exemplos para o nosso trabalho. Nesses dois locais, temos comissões encarregadas por dirigir coletivamente a implantação da Escola.
Percebemos uma manifestação comum em todas as áreas. De um modo geral, todos os materiais produzidos no curso de formação de alfabetizadores são expostos nas salas de aula, o que demonstra uma uniformidade na aplicação do método em todas as áreas. Este é o objetivo da nossa campanha, pois apesar das particularidades de cada região, a Escola é uma só, e tem o mesmo objetivo.
26/07
A Assembléia do Poder Popular
Pela primeira vez participamos de uma reunião como essa. A Assembléia do Poder Popular é a instância onde as massas camponesas debatem a condução do poder local. Participamos dessa Assembléia que tomava decisões sobre o Corte Popular das terras na área. Todos os camponeses presentes exaltaram a importância da Escola Popular.
Toda a área se envolve nas atividades de construção. Aqui, até a escola está debaixo de lona, mas já tem mesa e cadeira.
Após a Assembléia, participamos da aula inaugural da Escola Popular e todos estão na expectativa de começarem as aulas.
27/07
Área Nova Era / Matias Cardoso
Aqui estamos em uma das primeiras Escolas Populares implantadas da região. É um trabalho de persistência e dedicação.
A juventude está muito envolvida com o projeto. Na maioria das áreas são os jovens os principais mobilizadores e alfabetizadores.
Atravessamos o rio São Francisco e vislumbramos com grandes letras no muro do cais: Viva a Revolução Agrária!
28/07
Conquista da Unidade – Varzelândia
Temos alfabetizadores e camponeses dispostos a estudar. Debatemos, com as lideranças da área e com os camponeses, formas para impulsionar o trabalho.
Retornamos ao Paraterra para a celebração dos 10 anos da área.
Os camponeses nos convidaram para a mesa da Assembléia que deu abertura à festa.
29/07
Área Poço da Vovó / Jaíba
Os camponeses conquistaram a estrutura para iniciarem as aulas.
Nesta área participamos de uma importante reunião onde debatemos que o fator decisivo para o trabalho são os homens e mulheres decididos e empenhados na luta. Se não temos ainda o que necessitamos para nossa luta, o que define se poderemos ou não conquistar é o fator humano.
No dia 30, em Montes Claros, tivemos uma reunião com estudantes do Centro Acadêmico de Pedagogia da Unimontes — Universidade Estadual de Montes Claros. Debatemos a importância de o movimento estudantil apoiar e participar ativamente da luta pela construção das Escolas Populares no campo e a Revolução Agrária em nosso país.
Encerramos assim essa nossa primeira viagem.