Na primeira quinzena de dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil a reparar os danos causados aos familiares das vítimas da Guerrilha do Araguaia e declarou que o governo deve investigar, processar e punir os responsáveis pelas torturas, “desaparecimentos” e execuções praticadas durante o regime militar. A sentença declara que a Lei de Anistia, que assegurou a impunidade aos torturadores, carece de efeitos jurídicos e afronta um dever irrecusável do Estado.
No dia da publicação da sentença, os ministros do STF Cezar Peluso e Marco Aurélio, e o ministro da “Justiça” Nelson Jobim (que será mantido na gerência Dilma), se apressaram em dizer que a sentença internacional não será cumprida, acalentando os militares e reacionários que têm as mãos e a consciência sujas de sangue. Escondendo-se atrás da técnica jurídica, disseram que a decisão do STF que convalidou a Lei de Anistia não pode ser mudada.
Cezar Peluso assegurou ao Estadão que se alguém for processado e condenado pelos crimes anistiados pode recorrer ao tribunal por meio de Habeas Corpus, e já adiantou o resultado: “O Supremo vai conceder na hora, na hora”. Os torturadores serão tão beneficiados pelo STF quanto o banqueiro Daniel Dantas, que teve o Habeas Corpus mais rápido da história, brindado por Gilmar Mendes. Para esses tipos, a decisão do STF é dada assim na imprensa, antes mesmo do processo.
Mas para a Corte Interamericana, o STF decide “sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional”.
Em palestra na Secretaria de Assuntos Estratégicos, Nelson Jobim disse que o Estado já está fazendo sua parte com o Grupo de Trabalho que há dois anos busca sem sucesso os corpos dos guerrilheiros assassinados, quando bastaria que um general apontasse o local onde eles foram escondidos.
Mas a sentença internacional já afirmou, mais que diretamente, que o dever do Estado de investigar não pode ser uma simples formalidade de antemão fadada a ser infrutífera pela própria forma como é conduzida. Pelo contrário, assim que tem conhecimento do fato, o Estado tem o dever de iniciar, sem demora e independentemente da iniciativa das vítimas, uma investigação séria, imparcial e efetiva. O art. 1.1 do Pacto de San José, cuja aplicação é obrigatória ao governo brasileiro, diz que os Estados devem respeitar os direitos e liberdades e “garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa”, e assim prevenir, investigar e punir toda violação aos direitos humanos e reparar o dano causado às vítimas. O art. 25, por sua vez, diz que “toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais”, para se proteger de violações aos seus direitos fundamentais.
Quando o Brasil ratificou o Pacto de San José (Convenção Americana de Direitos Humanos), em 1998, assumiu a obrigação do seu art. 2º, de “adotar todas as medidas para deixar sem efeito as disposições legais que poderiam contrariá-lo”, o que já era uma obrigação pelo costume internacional, independentemente de ratificação. Agora os ministros dos torturadores, por pura conveniência, afirmam que as leis brasileiras valem mais que o direito internacional.
A sentença declarou que o Brasil (1) “descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno”, (2) que viola as “garantias judiciais e à proteção judicial, em virtude da falta de investigação, julgamento e eventual sanção dos responsáveis”, (3) que viola o “direito à liberdade de pensamento e de expressão” ao negar às famílias o direito de buscar e receber informação e o direito de conhecer a verdade; (4) que viola a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos causando-lhes “sofrimento e angústia”, “insegurança, frustração e impotência diante da abstenção das autoridades públicas de investigar os fatos”: “receber os corpos das pessoas desaparecidas é de suma importância para seus familiares, já que lhes permite sepultá-los de acordo com suas crenças, bem como encerrar o processo de luto vivido ao longo desses anos”.
Portanto, “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.
Jobim diz que “a anistia foi negociada na transição entre o governo militar e o civil”. Assim oculta o fato de que Lei de Anistia foi uma deturpação da campanha pela anistia “ampla, geral e irrestrita”, pois jamais a vontade popular era assegurar impunidade aos torturadores, e qualquer acordo nesse sentido teria sido inválido diante do direito, porque os direitos humanos são irrenunciáveis, não se negocia a punição da tortura. Mesmo na hipótese de um processo de transição, diz a sentença, é essencial “exigir responsabilidade dos autores de violações graves dos direitos humanos”.
Ainda sobre a tese do “acordo político”, a sentença é bem clara ao dizer que o descumprimento do Pacto de San José “inclui as anistias de graves violações de direitos humanos e não se restringe somente às denominadas ‘autoanistias’”, e ainda que o Tribunal leva em conta, mais que a questão formal de sua origem, a razão em si da criação da norma: “deixar impunes graves violações ao direito internacional cometidas pelo regime militar”.
A sentença diz mais: “Todos os órgãos internacionais de proteção de direitos humanos, e diversas altas cortes nacionais da região [Argentina, Peru, Uruguai, Colômbia], que tiveram a oportunidade de pronunciar-se a respeito do alcance das leis de anistia sobre graves violações de direitos humanos e sua incompatibilidade com as obrigações internacionais dos Estados que as emitem, concluíram que essas leis violam o dever internacional do Estado de investigar e sancionar tais violações”. Mas o Brasil de Luíz Inácio e Dilma segue protegendo os torturadores.
Quanto aos argumentos de que mudar, agora, a Lei de Anistia, para punir os torturadores, iria ferir o princípio da irretroatividade das leis, a sentença afirma inquestionavelmente que “o desaparecimento forçado constitui um delito de caráter contínuo ou permanente, cujos efeitos não cessam enquanto não se estabeleça a sorte ou o paradeiro das vítimas e sua identidade seja determinada, motivo pelos quais os efeitos do ilícito internacional em questão continuam a atualizar-se”. Cabe acrescentar, diante do caráter permanente do ilícito, que os governos que se sucederam, até o governo atual, são participantes na prática do mesmo crime.
A sentença destaca, por fim, as condenações expressas, enfatizando que o caso só se dará por concluído depois que o Estado der cumprimento cabal a todas elas, aqui resumidas:
(1) Proceder à investigação penal dos fatos relativos à Guerrilha do Araguaia e aplicar efetivamente as punições aos responsáveis;
(2) Determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares;
(3) Oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico às vítimas e pagar o correspondente às despesas com esses tratamentos;
(4) Publicar a sentença em jornais de circulação nacional e meios eletrônicos;
(5) Realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso;
(6) Implementar um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos para as Forças Armadas;
(7) Estabelecer na norma penal o crime de desaparecimento forçado de pessoas e, enquanto isso, garantir o efetivo julgamento e punição de casos de desaparecimento forçado, através dos mecanismos existentes no direito interno;
(8) Prosseguir na busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia e as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar;
(9) Indenizar as familiares e vítimas da repressão à Guerrilha do Araguaia, por dano material e imaterial e restituição de custas e gastos, nas quantias e critérios fixados na própria sentença;
(10) Convocar, na região do Araguaia, por um período de 24 meses, os familiares de vítimas ainda não identificadas.
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*Julio Moreira é advogado, professor universitário, membro da Associação Brasileira de Advogados do Povo – Abrapo, vice-presidente da Associação Internacional de Advogados do Povo – IAPL