Manifestantes confrontam a polícia em frente ao palácio presidencial
Dois episódios de brutal violência de gênero acontecidos na Índia, o primeiro em meados de dezembro e o segundo em janeiro, se transformaram em uma centelha que fez explodir a ira das classes populares indianas. O povo saiu às ruas em retumbantes manifestações exigindo a responsabilização dos criminosos e em protestos contra a situação das mulheres no país, nuance especialmente infame das recorrentes humilhações aos pobres e à feroz opressão dirigida contra massas trabalhadoras.
No dia 16 de dezembro do ano passado uma estudante de 23 anos, Jyoti Singh Pandey, foi estuprada dentro de um ônibus, quando voltava de um cinema. Ela foi agredida com uma barra de ferro e jogada do veículo em movimento, em uma ação brutal na qual seis homens estiveram envolvidos. Jyoti morreu poucos dias depois em um hospital de Cingapura, não resistindo às lesões que sofreu. Seu namorado, que a acompanhava, também foi espancado e jogado na estrada, ficando gravemente ferido.
No dia 11 de janeiro, outra jovem foi vítima de estupro coletivo. A mulher de 29 anos, voltava para casa, à noite, em um ônibus, em Punjab, norte da Índia. O motorista não parou no vilarejo onde a jovem deveria descer e ainda buscou outros comparsas para cometer o abuso sexual. Após a violação, a vítima foi deixada em seu vilarejo e procurou a polícia.
Protestos em Nova Délhi, 26 de dezembro de 2012
Um dos grandes protestos contra o estupro e assassinado da jovem estudante, realizado em Nova Délhi, foi brutalmente reprimido pela polícia indiana, resultando em 143 feridos e um morto.
Diante a rebelião do povo nas ruas, o Estado indiano fugiu da rotina de fazer vistas grossas às infinitas agressões sexuais no país, e um tribunal de Nova Délhi indiciou cinco dos seis acusados de estuprar e torturar a jovem Jyoti Singh Pandey. O sexto suposto envolvido no crime tem 17 anos, por isso está preso em um centro de detenção para menores. A juíza acusou todos os réus de uma vasta série de crimes, entre os que figuram os de violação e assassinato, que na Índia pode ser punido com a pena de morte.
Após o caso de Nova Délhi, a polícia indiana, apresentou rapidamente os suspeitos do estupro cometido em janeiro, a fim de evitar grandes mobilizações como haviam ocorrido em dezembro.
Reacionário, desinteressado e incapaz
Quase que concomitantemente ao caso da estudante estuprada, agredida e morta na Índia, um outro episódio de brutalidade, também de estupro coletivo, só ganhou maior repercussão porque a vítima, desta vez uma jovem de 17 anos de idade, suicidou-se tomando veneno no fim de dezembro após não receber qualquer assistência do Estado indiano depois da agressão sexual que sofreu.
Por diversas vezes a jovem tentou buscar a ajuda da polícia para abrir investigação e responsabilizar seus estupradores, tendo seus pedidos ignorados pelas “autoridades”. O caso só foi registrado em uma delegacia duas semanas depois do estupro, e segundo a irmã da vítima a polícia começou a pressioná-la para chegar a um acordo financeiro com seus agressores ou mesmo para se casar com um deles.
No dia 7 de dezembro, uma moça ainda mais jovem, de 15 anos de idade, enforcou-se depois de ser estuprada quando estava a caminho da escola. Segundo dados do próprio governo da Índia, em 2011 uma mulher foi estuprada no país a cada 20 minutos e em apenas um de cada quatro casos o criminoso é condenado. A maioria das agressões de cunho sexual contra as mulheres na Índia acometem mulheres pobres. Grande parte deles acontecem em áreas rurais, e muitas vezes sequer são notificados.
As “autoridades” culpam a “imensa corrupção” policial. Álibi de um Estado podre, reacionário, desinteressado e incapaz de mitigar os problemas do povo. O gerenciamento semicolonial da Índia está mais interessado, por exemplo, em colaborar com o imperialismo ianque, servindo de “aliado militar” do USA no sul asiático, motivo maior do teste do míssil balístico Prithvi II, com alcance de 350 quilômetros e capacidade nuclear, realizado na mesma semana em que Jyoti Singh Pandey morreu em um hospital de Cingapura.
A saída feminina à violência
Ana Lúcia Nunes
Qual é a verdadeira possibilidade de que uma mulher tenha igualdade numa sociedade marcada pela segregação, por um sistema de castas, por um machismo massacrante que viola não só seus corpos, mas sua vida integralmente?
Na Índia, as milhares de mulheres que fazem parte do Exército Guerrilheiro Popular de Libertação (EGPL) têm a resposta. Não que se imagine que o EGPL, liderado pelo Partido Comunista da Índia Maoísta (PCI-M), seja o paraíso antimachista na terra, mas sabe-se, pelo menos, que há uma intensa luta para que as mulheres conquistem, a cada dia, a igualdade de gênero. Por isso, mais e mais mulheres tem aderido à luta revolucionária e são principalmente as mulheres mais pobres, as camponesas sem terra, tribais e as dalits1.
O EGPL foi criado em 2000 e tomou um novo impulso com a fusão de vários movimentos revolucionários em 2004, origindando o que hoje é conhecido como PCI-M.
Segundo Amit Bhattacharyya, historiador da Universidade de Jadavpur, em Calcutá, que esteve no Brasil em 2011 realizando diversas conferências sobre a Índia, as mulheres são 40% do EGPL e em algumas regiões chegam a 50% dos efetivos.
Em sua passagem pelo Brasil, Amit deu conferências sobre a participação das mulheres no movimento revolucionário indiano. De acordo com o professor, em 1970, o antigo Partido Comunista da Índia – que foi quase dizimado após um grande levante de Naxalbari, em 1967 – criou a primeira organização de mulheres.
Depois disso, várias organizações, tanto democráticas como revolucionárias de mulheres foram criadas como o Comitê para Preservar a Dignidade das Mulheres e o Comitê Popular Contra as Atrocidades Policiais. Essas organizações realizaram diversas campanhas e ações contra o alcoolismo, o dote, os estupros, os casamentos forçados, etc.
Ele relatou como a submissão feminina é multiplicada pelo sistema de castas e pela religião. Ainda há muitos casos de casamentos infantis e de mulheres que são consideradas casadas com deus e que, portanto, não podem se casar com nenhum homem, sendo levadas à prostituição. Muitas mulheres se juntaram ao EGPL após fugirem de casamentos forçados.
Hoje, há várias organizações femininas revolucionárias como o Viplava Mahila Sangam (Organização das Mulheres Revolucionárias) e a Krantikari Adivasi Mahila Sangathana (Organização Revolucionária das Mulheres Tribais), que tem 90 mil integrantes.
Reveladores também são os relatos de Arundathi Roy, grande escritora indiana, em seu livro “Caminhando com os Camaradas”. Logo no seu primeiro dia com o EGPL, a conhecida escritora se deparou com várias jovens, de mais ou menos 20 anos, que tinham a cabeça a prêmio, “eram ameaças à segurança interna”. Ela relata em seu livro:
“A camarada Sumitra se juntou ao EGPL em 2004. Ela me disse: ’em nossa aldeia, não permitem que uma menina suba em uma árvore, se o fazia tinha que pagar uma multa de 500 rupias ou uma galinha. Se um homem agride uma mulher e ela revida, ela tem que pagar uma cabra à aldeia. Os homens se juntam para caçar por meses. As mulheres não podem passar perto do resultado da caça. A melhor parte da carne vai para os homens. As mulheres não podem comer ovos. Será que são bons motivos para entrar para a guerrilha?'”.
Com isso, não queremos dizer que a única saída para as mulheres indianas contra os estupros forçados seja alistar-se no EGPL. Mas a luta popular tem sido uma luz forte e brilhante no caminho de milhares de mulheres que aos estupros e à violência generalizada decidiram responder com a força de seus fuzis.
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1. dalits: No sistema de castas indianos, são os intocáveis ou impuros, estão abaixo das quatro castas e não podem sequer tocar sua sombra com a sombra de um membro de uma casta superior.