Evo Morales e García Linera aplicam “el ponche1”

Evo Morales e García Linera aplicam “el ponche1”

La Paz— O Movimento ao Socialismo (MAS) acaba de apresentar seu programa de governo à Corte Nacional Eleitoral da Bolívia (CNE). Em um documento de 13 artigos e mais de 200 páginas se condensa a proposta do líder sindical cocalero e do MAS, e de seu acompanhante de legenda e analista político Alvaro García Linera — outrora ideólogo do Exército Guerrilheiro Túpac Katari —, onde ensaiam o exótico planejamento do Capitalismo Andino-Amazônico.

O documento está disponível ao público desde 10 de outubro, as opiniões divulgadas em diversos meios pelo mencionado binômio eleitoral nos permitem esboçar opiniões a respeito da proposta.

Com deus e com o diabo

Para começar, o "engenhoso" nome de Capitalismo Andino-Amazônico trata de neutralizar, por um lado, o profundo temor que o empresariado boliviano tem por um governo presidido por Evo Morales, devolvendo, de uma certa forma, a calma diante da eventual assunção do mando presidencial de Morales, pois seus negócios foram garantidos, ainda que tenham que "fazer das tripas coração" ao ver, na cadeira presidencial, um indígena, como também em seu momento fizeram as elites racistas peruanas ao ver que o chamado "chollo" Alejandro Toledo era presidente.

Ao fim, essa depreciação por certas pessoas, com forte caráter estamental, pode ser evitada a fim de não perder o poder e o dinheiro. De fato, recentemente Morales e García tiveram uma prolongada reunião explicando os pormenores do "Capitalismo Andino-Amazônico" a uma delegação de empresários representantes da Confederação de Empresários Privados da Bolívia, dentro da qual não existe um só empresário que possa ser considerado indígena.

Por outro lado, esta curiosa forma, com a qual se pretende rotular o desenvolvimento do capital na Bolívia, trata de tirar o brilho da condição indígena frente a vários setores da população boliviana. Recordemos que Morales vem de dentro do sindicalismo camponês cocalero, onde existe forte presença indígena, e que seu discurso penetrou a nível nacional justamente na população indígena urbana e rural, que é maioria na Bolívia.

Também o substantivo "capitalismo" devolve a respiração ao governo ianque tão preocupado com o resplendor radical que os meios de comunicação fabricaram sobre a cabeça de Morales; e que o mesmo Morales — junto com seu acompanhante de legenda García Linera — tentam permanentemente desvirtuar, anunciando que se encontram apreciando a viabilidade e possibilidade de que a Bolívia assine o Tratado de Livre Comércio com o USA. Está claro para os ianques a necessidade de que os indígenas ocupem postos de decisão no governo boliviano, independente de quem esteja no poder. Isto foi afirmado recentemente pela ex-embaixadora do USA na Bolívia, Donna Hriank, numa entrevista concedida ao jornalista latino Openheimer em uma cadeia de televisão do USA.

Reedição do estadismo

Evo Morales, ao afirmar "o Estado deve ser o ator do desenvolvimento produtivo para industrializar o país. Lamentavelmente todo este tempo, só se tem permitido a exportação de matérias-primas, sem nenhum valor agregado"2. Não disse nada de novo para os países da América Latina. É clara a reedição discursiva do projeto da Comissão Econômica para a América Latina — CEPAL, dos anos 60 e 70, com a chamada "Industrialização e Substituição de Importações" caracterizado por um maior endividamento externo para criar e fortalecer empresas estatais que posteriormente foram vendidas entre as décadas de 80 e 90 a diversas empresas transnacionais, no marco da política também da CEPAL denominada "Transformação produtiva com igualdade", e que na atualidade tem deixado no marasmo econômico, político e social a todos os países latino-americanos, e em espacial aos sul-americanos.

É clara a intenção de fortalecer novamente o Estado sem danificar os interesses transnacionais, nem dos grandes empresários bolivianos. Beneficiando ao engrandecimento do Estado boliviano estará uma futura capa burocrática que com certeza brotará rapidamente de uma batalha de morte no interior da frondosa, voraz e parasitária clientela do MAS. Esta é uma elite burocrática que desde o início estará prontamente conformada por pessoas com pele mais morena, mas que não tenham nenhuma dúvida em viver nas costas e por conta das massas bolivianas; que experimentarão na própria carne que o problema da Bolívia não é um problema que passa apenas pela cor da pele ou a etnia da qual se é originário, mas que fundamentalmente tem a ver com a forma como se desenvolve o capital no país.

Ao afirmar Morales: "… esta iniciativa se baseará no fortalecimento de setores como os do micro e pequenos empresários, dos médios e grandes empresários ‘bons e honestos', e nas empresas coletivas como as cooperativas e associação de produtores. Ademais explicou que se criará um banco de fomento para estes setores"3. Há que especificar que, para começar, a chamada média empresa na Bolívia é praticamente inexistente e que os grandes empresários "bons e honestos" são gente acostumada ao clamor por isenções fiscais, por fazer empréstimos que nunca pagarão, que boa parte do dinheiro descontado aos trabalhadores para cobrir seu seguro social de saúde ou aposentadoria, está consideravelmente atrasado ou jamais foi pago às instâncias provedoras da Seguridade Social.

Supostos empresários

Os chamados micro e pequeno empresários, na realidade não são empresários e sim artesãos que se encontram submissos formalmente4 ao capital. Estes, que aparentemente são proprietários ou empresários, têm sua força de trabalho constituída por eles mesmos e seus familiares. Há outros que para conseguir ingressar neste pequeno conglomerado laboral realizam jornadas de trabalho de 14 a 16 horas por dia. Essas são, na realidade, oficinas que abastecem grandes empresários, em boa conta se reproduz o sistema de "trabalho a domicílio"(putting out system ou verlaf system) existente na Inglaterra do século XIX, e que nos países do terceiro mundo, em que se desenvolve um capitalismo burocrático, vêm sendo moeda corrente.

Curiosamente, é o próprio Alvaro García Linera quem chega a estas conclusões em um trabalho de investigação do aparato produtivo industrial da Bolívia5. Hoje faz vista grossa de sua própria investigação, assim como de suas conclusões, aproveitando-se da má memória, da tradição ágrafa e da condição semi-analfabeta de seus opositores políticos. Ou, em todo caso, assumindo uma súbita mudança em suas concepções — prefere recorrer ao rótulo de pequeno empresário, ou proprietário, para estes proletários formais ou semi-proletários, imitando ao neoliberal Hernando de Soto6 quem, no complemento de cinismo, classificava as amplas massas dedicadas ao comércio informal ou ao trabalho nas oficinas artesanais como proprietárias.

Na realidade o que o MAS chama Capitalismo Andino-Amazonico, não é outra coisa que, em primeiro lugar, uma descrição do desenvolvimento do capital na Bolívia, onde o trabalho nas incontáveis oficinas artesanais, nas comunidades indígenas, assim como por camponeses pobres e médios é consumido pelas grandes empresas bolivianas e pelo capital trans-nacional7. Em segundo lugar, é uma promessa de aceitar e reestimular esta forma de desenvolvimento do capital. Não é outra coisa que aplicar "el poncho al capitalismo", através de argumentações dignas das mais sujas artimanhas de depreciados picaretas da rua Yanacocha8.

A ilusão ótica do MAS

Este partido com fortes possibilidades de assumir o governo vem fazendo grande estardalhaço de sua participação popular, como expressa García Linera com: "Participarão mais de 180 profissionais com múltiplas representações sociais dos nove departamentos. Mais de 250 documentos tem sido sistematizados e incorporados a um programa de governo que não é uma formalidade. É um plano sólido e consistente porque nos temos tomado em sério a função do governo".

Como se a junção de palavras ociosas de uma cambada de oportunistas no interior do MAS e também dos chamados "movimentos sociais" — que García Linera diz representar — fossem garantia de um governo que expresse e defenda seus interesses. Ainda assim, o MAS e os "movimentos sociais" têm múltiplos interesses em comum, porque em cada grupo existem fortes interesses setoriais e de dirigentes que sobressaem frente a todo projeto coletivo em termos nacionais.

Aprontar a possível aliança

Nos últimos dias, os candidatos do MAS como os da Unidade Nacional UN9 têm tido felizes coincidências em seus debates, que mais parecem encontros românticos, onde ambos partidos políticos declaravam publicamente seus encontros ideológicos, iniciando-se assim um romance que pode culminar em uma futura aliança que leve Evo Morales à Presidência.

A UN tem falado de apoio às demandas populares, outro dos rótulos com o que se encobre e se doura os artesãos, que mais que empresários ou proprietários são proletariado submetido formalmente ou semi-proletariado. Antepondo desta forma uma sorte de "Capitalismo Popular" ao "Capitalismo Andino-Amazônico" do MAS, diversas nomenclaturas com as que denominam por estes lugares o capitalismo burocrático, ao qual se tem comprometido fervorosamente a reimpulsioná-lo.


1. Indumentária típica dos Andes da América do Sul, adorno que serve para que as pessoas se resguardem do frio e que não têm mangas.
2. Consultar jornal "La Prensa" de 06 de outubro de 2005 en http://www.laprensa.com.bo
3. Ibidem.
4. Para entender o conceito de submissão formal do trabalho ao capital, consultar Capítulo VI (inédito) do Tomo I de O Capital de Karl Marx. México: Siglo XXI. 1987.
5. Consultar: García Linera, Alvaro. Reproletarização. La Paz: Muela del Diablo. 1999.
6. Consultar: De Soto, Hernando. El Otro Sendero, Lima-Perú.
7. Como exemplo que evidencia esta situação devemos dizer que a produção leiteira nas comunidades indígenas e de camponeses pobres e médios bolivianos é comprada de maneira quase exclusiva pela empresa PIL, de propriedade da empresa transnacional suíça Nestlé.
8. A rua Yanacocha é uma rua central da cidade de La Paz caracterizada pela grande presença de faculdades de direito.
9. Partido de recente criação liderado pelo empresário milionário e dono do monopólio do cimento na Bolívia, Samuel Doria Medina. Este partido surge a partir de uma cisão do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) liderado pelo ex-presidente da Bolívia, Jaime Paz Zamora.
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