A luta foi a linguagem adotada pelos povos aymara para serem escutados
As políticas e campanhas informativas tendentes a justificar as medidas repressivas dos governos peruano e boliviano guardam um sentido cômico. Enquanto instituições peruanas atribuem aos membros da sociedade boliviana responsabilidade pelos problemas, conflitos e desgraças, determinadas instituições e autoridades bolivianas fazem o mesmo se referindo a cidadãos peruanos que residem na Bolívia.
Os acontecimentos ocorridos na cidade de Ilave (província de Callao, departamento de Puno, que faz fronteira com a Bolívia) ocasionaram uma profunda preocupação nas esferas governamentais peruanas, a ponto do linchamento do prefeito de Ilave, Cirilo Robles Callomamani, ocorrido em 26 de abril, ter ocasionado uma batalha discursiva no Congresso peruano — motivo da interpelação do ministro do Interior Fernando Rospligiosi, culminando com sua censura. Por outro lado, este fato trouxe à cena peruana um novo “ator político": a Frente de Defesa da Nação Aymara, que — segundo informações provenientes da imprensa peruana — estaria estabelecendo a conformação da República do Kollasuyo juntamente com seus iguais aymaras do outro lado do Lago Titicaca, correspondente ao território boliviano. E a execução do mencionado prefeito constituía um ato de justiça popular contra um indivíduo corrupto que jamais seria castigado pelas instâncias judiciais ou administrativas peruanas.
Especulações e intrigas
A partir dessa firme atitude dos aymaras peruanos, os meios de comunicação desse país especulavam que estaria por trás dos tais desmandos o líder camponês e, até poucos dias, deputado da República da Bolívia, Felipe Quispe Huanca1. Um meio de comunicação peruano, inclusive, chegou a mencionar que nas mobilizações dos aymaras peruanos foi vista a bandeira boliviana. Informação provavelmente sem fundamento, porque os aymaras bolivianos costumam renegar a bandeira nacional boliviana e desfraldam uma bandeira multicor denominada "wiphala" que, dizem, era utilizada em tempos pré-hispânicos. Essa bandeira também acompanhava o exército Túpac Amaru II (José Gabri-el Condorcanqui), que se levantara contra a corôa espanhola em 1780, da mesma forma o de Túpac Katari (Julián Apaza) em 17812.
Estas versões pareciam cópia das informações que há tempos divulgam os meios de comunicação na Bolívia, assinalando que por detrás dos bloqueios camponeses dos aymaras, no Altiplano de La Paz, estariam guerrilheiros maoístas peruanos do "Sendero Luminoso". Basta recordar que no mês de outubro de 2003, dias antes de sua renúncia e fuga para Miami, o então presidente da Bolívia Gonzalo Sánchez de Lozada sustentava que as mobilizações e a rebelião de outubro em defesa dos recursos naturais (o gás, fundamentalmente) estavam sendo articuladas e assessoradas por elementos estrangeiros do Peru (membros do Sendero Luminoso) e da Colômbia (das FARC ou do ELN).
Pelo visto, tanto os governantes bolivianos como os peruanos utilizam a presença de cidadãos estrangeiros como pretexto para desencadear a repressão contra o povo aymara dos dois lados do lago Titicaca. Esta situação nos faz refletir sobre a velha abominação do "outro", um recurso para transferir nossas desgraças por um lado e, no lado oposto, a subestimação do povo aymara como incapaz de sentir indignação diante da corrupção, da miséria, dos altos níveis de mortalidade infantil, do analfabetismo e das precárias condições de vida presentes nessa região que cruza os países andinos mencionados, a mais pobre da América do Sul. Proveniente de correntes ideológicas do "darwinismo social", isso implica na reedição do menosprezo pelo indígena. No entendimento reacionário, a fome, a miséria e as precárias condições de vida são o habitat natural dos índios.
Esta verdadeira concepção racista, preconceituosa, e que busca justificar a exploração do povo aymara, é um dos elementos que mais colaboram com essa franca rebeldia, transbordada facilmente em ações que expressam um profundo ódio aos símbolos do Estado e às suas autoridades. Isso explica o feroz linchamento do prefeito de Ilave, porque, apesar de ser ele também um aymara, personifica um Estado que estrangula a já precária atividade econômica de Ilave e, longe de elevar ou promover o desenvolvimento nessa empobrecida região, obstrui as mais básicas atividades que os habitantes realizam na luta pela sobrevivência.
O mesmo aconteceu com os dois membros do Exército, capturados em um posto de saúde na província de Omasuyos, próximo ao Lago Titicaca, na localidade de Achacachi, e posteriormente linchados. Eram acusados de ferir e matar camponeses em 2000.
Quem não quer entender
Dificilmente a macrocefálica Lima, e sua dourada burocracia, poderão entender que isso tem o nome de "barbárie", prática muito anterior à "civilização" na capital peruana. Mas, além de ser ou não "justiça comunitária", supostamente praticada há milênios, é antes uma amostra do profundo ódio nutrido contra esse Estado que tudo drena para o capital, principalmente para firmas respaldadas por potências estrangeiras. É uma forma simbólica de agredir o centralismo asfixiante, que nas províncias somente escuta os enriquecidos caciques provincianos, retribuindo com pagamentos que acentuam a distribuição desproporcional das riquezas.
Da mesma forma, os q’haras3 bolivianos sentem desprezo pela população. Apesar de estar incluído, muito fraseologicamente, na Constituição Política do Estado o decorativo enunciado "a Bolívia é um país multicultural e plurilingue", a repugnância que sentem pelos aymaras chega ao ponto de criar mecanismos ideológicos que induzem os aymaras à autonegação da identidade, além do cotidiano sofrimento da população, sobre a qual se abate cada vez mais a fome e a miséria. Os q’haras sustentam que os indígenas aymaras ingressaram massivamente no parlamento boliviano, no ano de 2002, para "perfumar"4 o semicírculo boliviano. Nem sequer têm interesse de olhar por baixo do ombro, para um setor que, na prática, revela ser um fiel aliado dos próprios q’haras bolivianos.
É certo que os laços entre aymaras peruanos e bolivianos são milenares e inquebrantáveis, por ter um mesmo matiz cultural, além de manter viva e ativa a atividade comercial que une La Paz e Oruro com os departamentos peruanos de Moquegua, Tacna, Arequipa e Puno, além do norte chileno. As intrigas dos governos e meios de comunicação reacionários do Peru e da Bolívia funcionam como um artifício de convencimento para uma suposta luta contra o "terrorismo internacional", na realidade uma conjura premonitória contra a inexorável união dos povos aymaras e os povos latino-americanos em geral na decisão de seu próprio destino, acabando com as permanentes agressões imperialistas, principalmente ianques, em cumplicidade com governos títeres. Poderíamos dizer que há várias décadas existe um projeto divisionista e desarticulador implementado por dezenas de Ongs, principalmente ianques, que financiaram no altiplano boliviano e peruano a afirmação da nacionalidade aymara. Esse recurso tem a finalidade de desmoralizar a integração, tanto dos Estados peruano e boliviano — países que se caracterizam por uma heterogeneidade das tecnologias produtivas, diversos modos de produção e uma insuficiente diversificação dos bens que produzem, ao que se soma um velho enlace econômico, e portanto político, a países imperialistas.
Ongs criam nações
De fato, há uma corrente ideológica muito difundida no altiplano boliviano, de inspiração katarista. Ela defende a criação da República do Kollasuyo, que compreenderia os territórios aymaras que formavam parte do império Inca do Tawantinsuyo5, mais especificamente do Kollasuyo6. A idéia ganhou força nos últimos anos, quando proposta em 2000 por Felipe Quispe Huanca. O retorno ao Kollasuyo ou ao Tawantinsuyo foi idéia plantada de forma assistemática por Túpac Katari, em 1781, na rebelião indígena-mestiça da qual foi líder, diferente da rebelião de 1780, liderada por Tupac Amaru, que promoveu a aliança entre mestiços, indígenas, criollos7 e alguns negros. Sua proposta foi mais reivindicativa e se opunha à segregadora sociedade colonial, que marginalizava todos os setores aliados.
Se bem considerarmos, existe uma evidente cultura aymara, que tem influenciado bastante até mesmo o q’hara boliviano, resultando uma presunção conceber os aymaras como nação. Os aymaras estão fincados tanto no Peru como na Bolívia. Essa heterogeneidade de modos de produção está onipresente numa infinidade de variações culturais e, em síntese, nos mesmos dilemas de integração e desintegração que vivem tanto no Peru como na Bolívia.
Esta situação explica o excelente ensaio sobre o "Centralismo e o regionalismo", incluído nos "Sete ensaios de interpretação da realidade peruana", do ideólogo marxista peruano José Carlos Mariátegui, que via o regionalismo não como uma amostra descentralizadora, mas sim como um fracionalismo estimulado pelos latifundiários, que concebem cada região como seu próprio feudo. Nos anos 80 do século passado, o sociólogo René Zavaleta dizia que "na Bolívia, cada vale é uma pátria". Nesses dias em que vivemos, a dita desintegração dos territórios destes Estados é favorável para o imperialismo, já que representa um obstáculo simples de ser superado e absorvido por sua chamada "globalização".
Nas condições atuais, o que evidencia os povos aymaras ultrapassa a cultura: fundamentalmente é a fome, a miséria, o atraso, a exploração e a absorção de excedentes por parte das metrópoles regionais e nacionais. Natural que a luta seja utilizada como a única linguagem que os povos aymaras adotaram para serem escutados, rebelando-se e clamando por uma vida digna — em ambos os lados da fronteira boliviana-peruana, bloqueando rodovias, enfrentando as forças repressivas e, inclusive, atrevendo-se a atacar a mesma delegacia de Ilave, no lado peruano, asfixiando a cidade de La Paz e El Alto lentamente, como é praticamente rotina desde o ano 2000.
O fracionalismo estimulado pelo imperialismo através de uma rede de Ongs que financiam e corrompem a massas famélicas altiplânicas de ambos os lados do Lago Titicaca, ou aos intelectuais aymaras, com um discurso exótico e pós-modernista, costuma ser despedaçado pela mesma prática. Assim, a rebelião popular com grande participação aymara em outubro de 2003 (cujo epicentro foi a cidade de El Alto, denominada de a capital aymara) promove uma luta patriótica e nacionalista contra o roubo imperialista do gás na Bolívia, ou a rebelião popular de Arequipa em de 2002, que contou com a participação de aymaras peruanos contra a privatização da empresa de energia elétrica a favor de uma transnacional, demonstram que o sentimento do povo aymara não exclui a defesa de um país como nação oprimida.
1 Felipe Quispe Huanca renunciou há pouco tempo a sua cadeira no Parlamento, alegando que o fez com fins eleitorais, pois pretenderia lançar-se como candidato à prefeitura da cidade de El Alto nas eleições que se realizarão no fim deste ano na Bolívia.
2 Outra possibilidade é que seja uma velha tática dos povos fronteiriços que, em suas reivindicações, desfraldam bandeiras do outro lado da fronteira. Um caso típico é o do Departamento de Tarija, fronteira com a República da Argentina, onde a cada parada cívica são desfraldadas bandeiras argentinas, sem que isto signifique que argentinos estejam por detrás das mobilizações.
3 Q’hara significa pelado. É utilizado frequentemente para denominar o branco explorador de aymara.
4 "Perfumar" é uma gíria idiomática empregada com sarcasmo. Em essência, é racista ao afirmar que "os índios cheiram mal".
5 Tawantinsuyo é uma palavra quêchua que significa "quatro partes".
6 A parte ou terra dos Kollas.
7 Nota da redação: pessoa de origem européia nascida em uma colônia espanhola. Uma interpretação colonial.