As primeiras rodadas do Campeonato Brasileiro foram mais do que suficientes para mostrar que o nosso futebol caminha para o fim. É a matéria-prima (leia-se craques) acabando, daí o nivelamento por baixo, recorde de passes errados e estádios vazios. Há quanto tempo não se faz um razoável lateral-direito, quanto mais um camisa 10, antes símbolo do futebol-arte? Onde estão, pelo menos, bons zagueiros de área, o que, aliás, explica as muitas goleadas, não importando a grandeza do clube? Os motivos são vários, a própria falência dos clubes, porém, o mais grave é a maioria das escolinhas não cumprirem a missão de descobrir e preparar os craques, principalmente por estarem também dominadas pelo comércio e a corrupção. Quando não mandam para o exterior, com certidões e passaportes falsos, em acordo com empresários.
São muitos os pais que pagam para que seus filhos, mesmo pernas-de-pau, sejam aprovados, em detrimento de muitos futuros craques. A denúncia do goleiro Félix, campeão do mundo em 70, no México, define muito bem porque não há mais jovens craques, salvo raríssimas exceções, tais como o meia Kaká, do São Paulo. "Eles (treinadores) recebem dinheiro dos pais para que os filhos sejam aprovados ou entrem no time. Às vezes, um menino tem potencial, mas, se não pagar, fica de fora. Infelizmente, é assim que funciona. Os dirigentes não tomam nenhuma atitude. Simplesmente se omitem. E aí tudo se agrava, pois o problema acaba se tornando um dos maiores motivos para a falta de renovação no futebol. Nem sempre os melhores conseguem espaço, prejudicando os mais pobres, de onde saem os maiores talentos. O resultado é o futebol se afundando cada vez mais, não só pela corrupção e bagunça, mas também pela presença de jogadores inexpressivos na maioria dos próprios grandes clubes".
"Nesse futebol eu jogo por muito mais tempo"
Em geral, quem não se submeter aos empresários, também fica fora. Sem essa de os pais quererem ser os procuradores ou representantes dos próprios filhos. Mesmo jogando no Vasco, Romário fez denúncias sobre o protecionismo que se verificava na divisão de juniores, igualmente dominadas, em sua maioria, pela corrupção. Houve um mal estar enorme dentro do clube de São Januário, com desmentidos e o jogador preferindo parar de falar sobre o problema.
"Por essas e outras, o futebol está desse jeito. Por isso, terei condição de jogar por muito mais tempo", disse o atacante, agora no Fluminense.
Há também clubes que entregam o seu futebol a empresários, dificultando um bom trabalho de renovação, caso do América, do Rio. Depois de o time ter melhorado no Torneio Rio-São Paulo, no início do ano, a partir da dispensa de vários jogadores de empresários, voltou ao erro na Série C do Brasileiro. Vários ex-juniores que vinham agradando, estão no banco de reserva ou emprestados para darem lugar, mais uma vez, a jogadores de fora. É a chamada barriga de aluguel. O desempenho do time, conforme não poderia deixar de ser, é o pior possível.
A maioria dos clubes, como o América, comete outro erro grave: a falta de paciência com a "prata da casa" ou a falta de coragem para perder durante algum tempo, mas garantindo um bom time para o futuro, conforme fez o São Paulo, que só acumulou derrotas durante dois anos, mas que agora, obtém resultados satisfatórios. Sem ser o caso do América, a corrupção também leva muitos clubes a entregarem o seu futebol a empresários, agravando a situação, embora muitos ganhem dinheiro por fora, após colocarem os jogadores na "vitrine".
"Tem um empresário (Reinaldo Pitta, também indiciado pela CPI) com muita força dentro do Vasco. Quando rescindi meu contrato com ele, fui afastado do clube, onde jogava desde os 14 anos de idade. Esse empresário deve ter muita força lá dentro. Mas não foi só isso: passaram liquid paper (corretivo) e escreveram por cima que eu não teria direito a passe livre ao final do contrato que assinei para jogar a Copa do Mundo. Fui à Justiça e um juiz mandou o documento para um perito. Estou aguardando. O futebol brasileiro está cheio disso, infelizmente", disse Carlos Germano, goleiro do Botafogo.
Excesso de jogos, outro problema grave
Com excesso de jogos e competições, que visam os lucros da Rede Globo, que faz o que bem entende, também não há tempo para treinamento de simples fundamentos do futebol (cabeceio, impulsão, cobranças de faltas, entre outros), conforme se fazia até a década de 80. E tudo se agrava com o antifutebol estimulado nas próprias escolinhas, principalmente com essa estupidez de que todo mundo tem que marcar, dar carrinho ou mesmo pancada. É a matéria-prima acabando também por culpa desses desgovernos que não dão o mínimo incentivo ao esporte, principalmente o futebol, que perde milhares de futuros craques pela impossibilidade de sequer chegarem aos clubes, por falta de dinheiro para a passagem.
O título mundial conquistado no Japão, e que nada tem a ver com o penta, conforme os marqueteiros insistem, pois não é consecutivo, não poderia mesmo ter ajudado, tamanha a podridão e falta de dignidade por parte da maioria dos próprios jogadores, outro problema seríssimo.
"Enquanto eu jogava machucado, companheiros, em melhores condições, não se esforçavam", disse o campeão do mundo Marcos, goleiro do Palmeiras, depois da goleada em seu próprio campo, para o Atlético Mineiro, e após sucessivas derrotas no atual Campeonato Brasileiro.
Não há mais como exportar
Os sintomas são mesmo de um final lamentável para o considerado melhor futebol do mundo. Falidos e, agora, sem craques para exportar, os clubes foram obrigados a reduzir os salários astronômicos de jogadores, numa tentativa desesperada de sairem da CTI. O roubo e os absurdos cometidos pela cartolagem, nesses últimos anos, foram muito grandes, obrigando vários clubes dos chamados grandes a acabarem com escolinhas em todos os esportes.
Os poucos craques brasileiros que restaram, e de outra forma não poderia ter deixado de ser, estão no exterior. Acabou a safra de craques e a possibilidade de grandes negócios para favorecer os espertos. Um dos clubes mais poderosos do futebol brasileiro, só resta hoje, ao Flamengo, a maior torcida do país. Foi o clube mais atingido pela corrupção e incompetência, tendo sido rotulado pelos deputados que integraram a CPI do Futebol como entreposto de compra e venda de jogadores. Enquanto em outros clubes com o mesmo problema, nada aconteceu, o rubronegro, pelo menos, afastou o presidente Edmundo Santos. Só que o atual, Gilberto Cardoso Filho, não sabe como administrar a falência e a falta de uma boa matéria-prima.
"Eu também quero reforçar o time, mas não há mais como contratar um jogador com altos salários", afirmou o presidente do Flamengo, que foi obrigado a reduzir a folha de pagamento de R$ 3 milhões para R$ 600 mil.
O Vasco também reduziu a folha e perdeu os melhores jogadores, em especial, Romário, a quem deve quase R$ 10 milhões. E Romário só se transferiu para o Fluminense, porque uma companhia de refrigerantes se dispôs a pagar R$ 250 mil de salários ao jogador. O Palmeiras, além de também passar a pagar um máximo de R$ 100 mil de teto salarial, conseguiu fazer contrato por esse valor com o técnico Wanderley Luxemburgo, hoje no Cruzeiro. Pelo menos, a nível salarial, os clubes, finalmente, acordaram para a realidade.
"Estamos observando alguns valores do Norte e Nordeste, mas sem prejudicar o orçamento do clube. A realidade do futebol brasileiro não é mais de grandes investimentos", disse o técnico do Flamengo, Evaristo de Macedo.
O mais grave é que os clubes continuam atrasando o pagamento de salários, mesmo com a redução, desagradando os jogadores.
"O Flamengo fingia que me pagava e eu que jogava", disse o campeão do mundo Vampeta, do Coríntians.
Sem perspectivas de recuperação
Futebol-arte, organizado, de estádios cheios, de amor à camisa, de dignidade, sem roubo, só por milagre. Ou depois que se colocar muitos cartolas na prisão e afastar os picaretas. Mas ao que tudo indica, todos os problemas, exceto os salários, continuarão ou até se agravarão.
Os estádios ficarão mais vazios; não se deterá a corrupção; as divisões de base, salvo raríssimas exceções, continuarão servindo a todo tipo de interesses, menos ao próprio futebol; os dirigentes permanecerão fazendo o que bem entendem, reelegendo-se, inclusive, até quando quiserem, mesmo os principais indiciados pela CPI do Futebol; ligas fantasmas, algumas funcionando em botequins, permanecerão garantindo reeleições desses mesmos presidentes.
O técnico Wanderlei Luxemburgo, igualmente envolvido por transações de jogadores, segundo relatório da mesma CPI, não surpreenderá se voltar ao comando da própria seleção; mais passaportes e certidões falsas serão emitidos; clubes chamados grandes estarão sempre protegidos por "viradas de mesa", quando forem rebaixados; não se saberá mais quando os árbitros estarão errando por incompetência ou desonestidade; continuará o desumano excesso de jogos e competições e com horários loucos, de acordo com a grade de programação da Rede Globo; a seleção brasileira não deixará de ser manobrada pelos patrocinadores, que também continuarão incentivando o uso do álcool nas comemorações de títulos; Ricardo Teixeira manterá a filosofia de usar o dinheiro da CBF da forma que bem entender, saindo de uma sede própria, no centro da cidade, para outra alugada por R$ 140 mil mensais, na Barra da Tijuca.
Medida provisória perdeu a força
A Medida Provisória para moralizar e fazer valer a Lei Pelé, transformando os clubes em empresas com punições de dirigentes? Com certeza, não será aprovada e tampouco reeditada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. As pressões e lobbys são muito grandes. Dentro do próprio Congresso. Enfim, ingredientes que sinalizam, sem dúvida alguma, para o fim do futebol, que já deixou de ser paixão do brasileiro, há muito tempo.
Para uns pouquíssimos dirigentes que procuram verdadeiramente trabalhar para o engrandecimento dos clubes, o caixa está zerado e eles nada poderão fazer. Ao contrário, estão desesperados, sugerindo novas fórmulas de disputa de campeonatos, quando o início da recuperação se chama craque. É o que o futebol europeu ainda tem, depois de ter sugado todos os nossos. Para os picaretas, não haverá problema: eles simplesmente passarão a atacar outros setores onde possam mandar mais dinheiro para os paraísos fiscais. A Rede Globo, por sua vez, que já está, inclusive, reduzindo cotas, tirará o futebol de sua grade de programação e sairá à procura de outras alternativas. O futebol que se dane.
Para adiantar o enterro do verdadeiro futebol, ninguém cobrará nada de ninguém, muito menos a grande mídia, também presa aos patrocínios, e as autoridades, em geral, além dos próprios órgãos do governo, Ministério Público, Receita Federal, Banco Central, Polícia Federal, a quem a CPI passou o relatório com provas suficientes até para prender muitos ladrões do futebol.