Falta apenas roubarem o ar

Falta apenas roubarem o ar

A água não é apenas riqueza nacional. Defendê-la é garantir a própria essência da vida

Transformar água em arma é algo inimaginável numa terra como a nossa, em que a tradição, mesmo sendo solapada, é a de nunca se negar um copo d’água a quem pede.

Água é o bem essencial da vida. Ninguém sobrevive mais de três dias sem ela. Pelo seu grau de necessidade, é um direito fundamental do ser humano, comparado ao direito à vida e à saúde. Assim, qualquer política hídrica deve ser regida pela universalidade. Todos têm que ter acesso à água, independente do dinheiro que disponha.

Somos 70% água, portanto, sempre necessitamos bebê-la. Sabedores disto, corporações financeiras transnacionais (poucas) estão trabalhando intensamente no sentido da água ser considerada uma mercadoria (comodity) até cotada na bolsa (evidentemente controlada por elas). A água é o único bem que não tem substituto no mundo. O que se faz com a água só se faz com a água, o que não acontece com o petróleo, gás, ou qualquer tipo de alimento que sempre se encontrará como substituí-lo.

Isto é um instrumento poderoso na mão de empresas que estão buscando dominar, controlando e sendo proprietárias dos mananciais e nascentes, da bacia hidrográfica e dos sistemas de distribuição de águas e saneamento nos municípios e cidades. Isto é um monopólio terrível. Com o alto grau de necessidade da água, ela é arma nas mãos do capital financeiro mundial. É o que acontece no Oriente onde o governo de Israel corta a água dos bairros palestinos para matá-los. É o caso dos consórcios com empresas estrangeiras — as corporações transnacionais que estão buscando dominar e controlar o comércio da água, que colocam medidores no fluxo de água que vai para bairros que têm inadimplência alta. É uma situação desumana cortar a água das residências por comprovada falta de dinheiro de quem a utiliza.

As corporações arbitram o preço altíssimo da ligação e se acham no direito de cortar água apenas com a intenção de forçar os pagamentos, garantidores de seus lucros absurdos; sem qualquer preocupação com a necessidade vital da água.

Há publicações demonstrando que toda a privatização de serviços públicos essenciais está sempre acompanhada de muita corrupção e falta de transparência. Mas a própria desnacionalização já é corrupção. Não há divulgação das condições e dos contratos feitos nas sombras dos gabinetes. Sempre aparecem absurdos aumentos de tarifas para atender ao interesse dos acionistas externos com o absoluto desprezo pelas necessidades sociais da população. A cooptação dos políticos vem permitindo uma sórdida legitimação de absurdos, com leis que frequentemente desrespeitam as leis maiores do país.

Os profissionais da corrupção entre os parlamentares, entre os membros do Executivo e do Judiciário, facilmente são cooptados pelos interesses das corporações porque elas podem financiar campanhas, o que não fica tão oculto em se tratando das empresas de economia mista. Das corporações transnacionais de águas, no Brasil, a mais atuante é a Vivend — que inclui a Nestlé, das Águas São Lourenço, Perrier, Águas de Petrópolis, Arcos, Loreal, Laboratórios Roche, Pure Life, Biscoitos São Luiz—, controlando mananciais de água, através de consórcios, com interligações complexas, incluindo os serviços municipais de águas que estão sendo privatizados e desnacionalizados em várias cidades, principalmente do Estado do Rio: da nascente à distribuição.

Entretanto, a maior empresa de águas no mundo, a Suez Lyonnaise (no Brasil empresa Cidades), foi duramente derrotada em suas pretensões na Bolívia ( nesta edição, página 19). Aqui se trata não de defender as nossas riquezas, mas a própria vida, como fez o bravo povo boliviano. Transcrevemos o folheto, sob o título Depois do triunfo, desencadeemos uma campanha mundial contra a Suez e as transnacionais da água, elaborado pela Fejuve — Frente da Juventude de El Alto –Bolívia assinado por Abel Nonani e Oscar Olivera. É um importante exemplo de luta e vitória contra a principal transnacional das águas — Suez Lyonnaise.

A água não pode ser dominada pelas corporações transnacionais, hoje entrelaçadas com alimentos, sementes, energia e até nas empresas empreiteiras de obras; elas estão influenciando até nos países dominantes induzindo à guerra e destruições e se apresentando para as reconstruções cinicamente capitaneadas pela ONU, Banco Mundial, criando as gigantescas dívidas que alimentam o sistema financeiro mundial.

A conquista do povo de El Alto e La Paz — foi antecipada pela expulsão (essa com vítimas) da empresa ianque Bether Co., que controlava a água em Cochabamba. Agora, não há mais transnacionais explorando a água na Bolívia. Pensam fazer o mesmo com o petróleo.

Bolívia: Levante põe fim ao controle da água

Suez, a maior transnacional do mundo no suprimento de serviços de água potável, vai embora da Bolívia depois de uma greve cívica indeterminada convocada pela Federação de Juntas Vizinhas (Fejuve) de El Alto. As razões que levaram a pedir a saída de Suez-Águas do Illimani são que esta empresa se negou a realizar investimentos para ampliar o serviço de água potável para 200.000 pessoas pobres da cidade de El Alto, e que promoveu a subida das tarifas de sistemas de água potável e de esgotos a 445 dólares; soma que era inacessível para 70.000 pessoas que não se encontravam dentro da área “servida” pela empresa. Suez-Águas do Illimani queria que o Estado Boliviano e a cooperação internacional conseguissem doações e créditos facilitados para cumprir com as metas de expansão necessárias dentro da área de concessão. A resposta dos habitantes de El Alto foi que estas doações e créditos devem destinar-se para uma empresa pública nacional e não a uma transnacional que está fazendo vultosos lucros com este direito humano de todo cidadão.

O governo da Bolívia tentou por duas vezes consecutivas a revisão do contrato com a Suez-Águas do Illimani. A resposta da transnacional, textualmente, foi: “rechaçamos a existência de um direito de a Superintendência de Saneamento Básico ou qualquer outra autoridade da República da Bolívia para esta suposta “revisão” .” (29.11.04). Frente a esta situação e ante a magnitude da greve, que durou três dias, o Governo emitiu um Decreto Supremo determinando o término do contrato com Suez-Águas do Illimani tanto nas cidades de El Alto como de La Paz , já que o sistema é interligado.

A greve foi um total sucesso por sua unidade, contundência e caráter pacífico. Mais que uma guerra da Água, foi um levantamento pela água, em que não houve mortos nem feridos, porque toda a população compareceu em bloco em todos os bairros da cidade de El Alto, exigindo que a água seja um serviço público e não um negócio privado.

Agora, temporariamente, a antiga empresa municipal se encarregará, até que se constitua uma nova empresa social com participação das comunidades e sob controle social da Fejuve. SUEZ-Águas do Illimani não aceitou um acordo de fechamento de contrato e se prepara para iniciar um processo multimilionário contra a Bolívia no Ciadi (Centro Internacional para os Acordos de Diferenças relativas aos Investimentos), dependente do Banco Mundial É de se notar que o Banco Mundial possui 8% das ações de Águas do Illimani através de seu braço privado, a Corporação Internacional Financeira (CIF). Em outras palavras, se esta demanda vai à frente, o Banco Mundial será juiz e parte diretamente. Frente a este novo atropelamento que a Suez tenciona cometer, é fundamental iniciar uma campanha na França e em todo o mundo contra esta transnacional que é uma das que mais processos tem instaurado contra países em desenvolvimento.

Porque romper o contrato

Em 24 de julho de 1997 foi firmado o contrato de concessão entre Águas do Illimani-Suez e a Superintendência de Águas para operar e expandir os serviços de água potável e saneamento nos municípios de El Alto e La Paz pelos próximos 30 anos.

Águas do Illimani é uma empresa controlada pela Suez, a transnacional francesa que é a maior do mundo, junto com a Vivendi e Thames, no negócio da água. A Suez obteve lucros em 2003 num total de 39.622 milhões de Euros, que equivalem a 51.508 milhões de dólares. O Banco Mundial, através da International Finance Corporation (IFC), é também sócio de Águas do Illimani.

Por que foi expulsa?

1. Uma adjudicação fraudulenta

A adjudicação de Samapa para a Águas do Illimani não foi um processo transparente, já que se excluiu a participação da sociedade civil e do município e além disso transgrediu normas legais do país. A convocação para a concessão realizou-se com base num estudo realizado pelo Banco Paribás, da França, sob a supervisão da Superintendência de Águas, criada um mês antes da concessão. Na primeira licitação, o único proponente foi Águas do Illimani-Lyonnaise des Eaux , da França, e em vez de convocar uma segunda licitação, o que se fez foi alterar os termos da convocação para permitir a concessão para a Águas do Illimani. A privatização da Samapa foi uma condição do FMI-BM para a renegociação da dívida externa em 1996.

2. 200 mil pessoas condenadas

A Águas do Illimani dizia que o fornecimento de Água potável em El Alto era de 100%, mas a realidade era muito diferente. 70.000 pessoas não tinham água em seus domicílios porque as tarifas de ligação eram de 445 dólares (aproximadamente 9 salários mínimos), e outras 130.000 pessoas estavam dentro da área de concessão de Águas do Illimani, porém fora da área “servida” pela empresa transnacional.

3. Investimentos facilitados ou por dotações

Não se sabe com certeza quanto dinheiro Águas do Illimani investiu, nem de que fontes. Segundo a Superintendência, em 8 anos (de 1997 a 2004), a Águas de Illimani investiu 55 milhões de dólares. Segundo notas da imprensa, a maioria deste dinheiro proveio de empréstimos facilitados que foram outorgados pela cooperação internacional (B M, BID, CAF) e de doadores de governos como o suíço, para ajudar a que os pobres tenham acesso à água.

4. Lesava a empresa municipal

Segundo a empresa municipal Samapa, a Água do Illimani deveria pagar-lhe anualmente 8,5 milhões de dólares, entretanto só recebeu 3,5 milhões de dólares como aluguel das tubulações e canalizações, que eram de propriedade do município antes da assinatura do contrato.

5. As tarifas dolarizadas

Apesar de a Lei 2066, de 11 de abril de 2000, determinar que as tarifas não estão dolarizadas (Art.8, inciso L), a Águas do Illimani continuou cobrando tarifas indexadas ao dólar, violando a Cláusula 17 do Contrato de Concessão que diz: “Na prestação do Serviço o Concessionário (Águas do Illimani) deverá cumprir sempre todas as leis bolivianas vigentes durante o termo do contrato”.

6. Tarifas com ágio desde o contrato

Antes da concessão, a Águas do Illimani aumentaram as tarifas de consumo entre 17% para a categoria industrial e 57% para a categoria doméstica. Durante o processo de concessão em 1997, voltaram a acrescentar 19%.

7. Usura para o setor público

O contrato dizia, em seu Anexo 10, que “a Categoria Comercial compreende também todos os usuários oficiais, públicos e estatais”. Quer dizer que os centros de saúde, escolas, áreas verdes, quartéis, ministérios e outras repartições públicas pagam 1,18 dólares por m3.

8. Elevou as tarifas

Durante a renegociação qüinqüenal de tarifas, subiram as tarifas de ligação de água potável e de esgotos de 335 US$ para 445 US$.

9. Zonas pobres sem medidores

A Águas do Illimani não colocou medidores em El Alto, para continuar cobrando uma tarifa fixa de 12 a 15 bolivianos mensais, em vez dos 6 ou 8 que o povo pagaria se tivesse medidores, já que por economia só consomem entre 4 a 5 m 3 de água por mês.

10. Sem manutenção

Segundo o contrato, a Águas do Illimani tinha a obrigação de garantir a manutenção e reposição das tubulações, válvulas e outros componentes do esgoto sanitário e da água potável, entretanto, na realidade não o faz.

11. Não amplia a rede

A Águas do Illimani cobra tarifas mais altas que a Samapa e não se responsabiliza pela rede pluvial, tampouco pela sua ampliação.

12. Permite a contaminação

A falta de manutenção e de tratamento adequado das águas servidas provocou focos de contaminação em residências e bairros de El Alto.

13. Impõe segredo sobre a informação

A Superintendência não podia divulgar as informações que a Água do Illimani qualificava como “confidencial, informação privilegiada e segredos comerciais pelo Concessionário.” (Cláusula 14.1.1 do Contrato de Concessão).

14. Pagar duas vezes

As tarifas da Águas do Illimani já incluíam a recuperação de seus investimentos, além de uma taxa de lucro de 13%. Entretanto, na cláusula 26 do contrato se ressalvava que, quando terminada a concessão, teria que ser pago novamente a ela por seus investimentos com o pagamento que faria o novo concessionário, se Águas do Illimani não ganhasse novamente a licitação em 2027.

Campanha contra as transnacionais

1Vigílias e manifestações em frente aos escritórios da Companhia Suez na França e em todos os países onde se privatizou a água.

2Cartas ao Governo da França condenando a Companhia Suez pelos processos que instaurou contra a Argentina, Filipinas, Indonésia,… ou que quer iniciar contra Bolívia e outros países.

3Denúncia de todos os países ante o Comitê da Nações Unidas para os Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, pelos abusos da Suez e outras transnacionais contra o direito humano à água.

4Ações em todo o mundo contra a privatização da água em 28 de março (Dia Internacional da Água)e de 10 a 16 de abril de 2005 (Semana de Ação Global dos Povos contra o Livre Comércio e as Privatizações).

5Exigir que a água, em qualquer de seus usos, esteja fora de qualquer tipo de acordo de Livre Comércio ou Tratado Bilateral de Investimentos.

6Promover uma Convenção Internacional da Água, que proíba a comercialização deste recurso vital para a existência da vida e do planeta.


O doutor Rui Nogueira é médico e escritor, freqüentemente solicitado para proferir palestras em todo o país. É autor de Servos da moeda; Petrobrás, orgulho de ser brasileiro e Nação do sol.
Correio eletrônico: rui.sol@ambr .com.br
Portal – www.nacaodosol.org

Água para criança pode dar cadeia
RN
Na periferia de uma grande cidade brasileira, há lado a lado, mal separados apenas por uma rua, dois loteamentos inteiramente contrastantes.

O primeiro com ruas demarcadas, asfaltadas, todas as casas de alvenaria, sistema de água tratada e esgotamento sanitário, construído por uma empresa financeira de caderneta de poupança.

O segundo, sem calçamento, ruas irregulares, água conseguida em poços de 35 metros de profundidade (cacimba), muitas fossas negras, barracos construídos com tábuas ou qualquer resto de obra que pudesse ser aproveitado para oferecer alguma proteção. Sua outra divisa é um vale ainda mantido arborizado, por onde corre um riacho usado para captar a água tratada para os moradores do loteamento da caderneta de poupança.

Na época da seca, é um poeirão. Por ali correm meninos de canelas ruças de terra, os cabelos avermelhados pela desnutrição e um tanto pelo barro vermelho da região. Há uma única escola improvisada num galpão, situada lá próximo ao final do amontoado de barracos. Após servirem-se do banheiro da escola, as crianças remexem as mãos dentro de uma tina com alguma água tirada da cacimba de 50 metros de profundidade. Para secá-las, balançam as mãos no ar.

Higiene…

A partir da pequena estação de tratamento de água, ao lado do riacho, uma adutora atravessa toda a área dos barracos para encher as caixas d’água do loteamento da financeira. O médico do projeto de medicina comunitária, que iniciava atuação nos loteamentos, vendo a situação dos alunos tentou conseguir que a financeira (da caderneta de poupança), permitisse, ao menos, liberar uma parte da sua farta água para as crianças da escola. Nada feito. — A água é nossa, não pode ser usada em outro loteamento. Nem mesmo em escola. Desaforo! Negar água para criança! O médico procurou o encarregado das obras do loteamento urbanizado e pediu para fazer uma ligação da adutora com a escola.

— Só para o senhor eu vou fazer uma gambiarra, mas não posso instalar nem participar de nada disso. Fazer, eu faço, mas só para o senhor — respondeu solícito e preocupado o encarregado. Do ponto na adutora até a escola eram cinco quilômetros, agora escavados de valetas pelos alunos e professores. No início da noite, a gambiarra estava instalada, e uma braçadeira, coisa feita com toda a técnica, era ajustada em volta da adutora. As mangueiras, conseguidas às duras penas, um pouco comprada pela clínica, um pouco conseguida por doação, estavam estendidas nas valas e recobertas pela terra.

Uma felicidade imensa irrompeu na escola, há tanto tempo sem água, quando ela jorrou na ponta da mangueira. Os meninos saltavam, dançavam, cantavam num gostoso banho que os livrava da poeira trazida por uma impertinente seca. Água para beber, à vontade. Água para lavar as mãos. Água que até daria para molhar uma hortinha, exemplo pedagógico que serviria aos alunos e aos pais.

O médico foi chamado na sede da financeira.
— Foi o senhor que criou o desvio de água na adutora, doutor?
— O que leva a água para a escola, foi.
Um rábula se aproximou e disse:
— O senhor sabe que pode ser preso por isto?
— É verdade. Há tanta safadeza e roubalheira absolutamente impunes nesta terra, que colocar água para crianças deve dar cadeia — respondeu o médico.

Houve muita argumentação para que a água, essencial à vida, continuasse a ser das crianças. Inútil! À noite, as mangueiras foram retiradas e, enroladas, foram colocadas na porta do serviço de medicina comunitária.

O que fazer para conseguir água? Reuniões e reuniões na capital.

— Nós vamos ligar a água mas deve ser anunciado que é iniciativa do deputado da área. Ora vejam! Não adiantou. Em realidade, nunca mais ligaram a água.

Para a empresa financeira o importante é o lucro. Mesmo um custo pequeno, que tanto benefício traz, como levar água para a escola, não é admitido. Diminui o lucro.

Combatem ligações clandestinas, cobram muito caro pela água, todas têm de pagar uma ligação inicial. Há cortes, mesmo sem autorização judicial (!). A água distribuída para a escola só se tornou possível quando uma empresa estatal assumiu o fornecimento da região, no início da década de 80.

Hoje, o melhor exemplo do que vem se delineando em expoliação do povo, relacionado com serviços de água, está em Ribeirão Preto-SP. Ali foi realizada uma das primeiras desnacionalizações de sistema de águas.

Na região, a água vem do Aquífero Guarani, o maior depósito de água subterrânea do planeta, muito pura e praticamente sem precisar de tratamento. Colocam cloro na água, o que chega a ser excesso de zelo, ou necessidade de gastar dinheiro via cloro.

O contrato do município com um consórcio de empresas estrangeiras obriga a empresa de água do município a pagar R$1,8 milhão por mês ao consórcio que trabalha visando apenas lucro garantido para enviá-lo ao exterior. Se a arrecadação do departamento de águas do município é inferior, por inadimplências ou qualquer outro fator, a prefeitura é obrigada a utilizar os impostos e taxas pagas pela população para completar o pagamento ao consórcio.

A história em Ribeirão demonstra que a água não pode ser privatizada. Ela tem que ser universalizada, para todos, e a desnacionalização é a antítese da universalização. Com a privatização (desnacionalização porque a privatização sempre está ligada ao grande capital, que é estrangeiro — isso quando os monopólios não se apresentam diretamente como estrangeiros) só dispõe o bem ou o serviço quem tem dinheiro.

Água sem pagar?

Ninguém era capaz de excluir uma pessoa do seu direito de bebê-la.

Mas, agora, as corporações transnacionais estão ávidas pelo enorme lucro que a água, transformada em mercadoria (comodity), até cotada na bolsa, pode proporcionar.

Como afirma Galbraith em seu livro Economia das Fraudes Inocentes, há uma falsa impressão de que o consumidor é o diretor do consumo. “Mercado” é uma expressão que aparece especialmente identificada como um centro de compra e venda; de trocas amplas e regulares de bens e serviços, cujos preços, dizem, são regulados pela melhor oferta, o que coloca o incrédulo cidadão (rebaixado a consumidor) numa situação especialmente privilegiada, acreditando desfrutar de todos os poderes de decisão, sobre sua vontade e seu bolso. E para que não pareça mentira, uma maciça propaganda desaba sobre a cabeça da população, noite e dia.

De tanto repetir a mais deslavada mentira ela parecerá verdade, dizia o infeliz Goebelss, um dos próceres da corrente alemã do imperialismo, o nazismo. Do que ele estava convencido mesmo é de que o capital financeiro, vivendo a sua fase mais degenerada, deve fazer para enganar o povo, ou seja mandar que seus capatazes combatam os males causados pelo próprio imperialismo dando-lhes outros nomes.

É o mundo real do modo de produção capitalista, nessa etapa de seu desenvolvimento, em que viceja o imperialismo, que produz, além da exploração dos povos, das guerras de rapina, o monopólio até do ar que respiramos, as fantasias, a manipulação da verdade. Há um poder absoluto do capital mais improdutivo para estabelecer o que vai ser consumido, influenciando e controlando a procura dos que necessitam viver por suas próprias mãos.

Sede pode esperar dinheiro?

Hoje, quem estiver com sede não bebe água exatamente, porém os mais variados tipos de água multicolorida. Como com a manteiga natural — que qualquer um produz, técnica de domínio público —, surgem as margarinas de sebos não identificados, mas patenteadas. Um líquido desconhecido quanto à sua composição é campeão de vendas no mundo. Descobre-se a cada dia seguidas fraudes nada inocentes.

Para constatar a transformação dos hábitos e a intensificação de um consumo que não existia, temos uma experiência que pode ser feita, na maioria das cidades, mas que descrevemos em Porto Alegre, por ocasião do despudorado espetáculo promovido pelos banqueiros internacionais que o denominaram de World Social Forum — WSF, solenemente traduzido como Forum Social Mundial.

Tomamos uma decisão: não vamos comprar água para beber, afinal de contas é um desaforo ser obrigado a tal. Vamos procurar! Aonde encontraremos água no centro da cidade?

Nenhum bebedouro na enorme Loja Americana, apesar da enganosa indicação da gerência. Nas lojas de sapatos, de filmes e máquinas fotográficas, nas várias financeiras caçando incautos para aprisioná-los na rede de juros avassaladores, nos bancos estrangeiros. De uma maneira geral, em nenhuma grande loja podem ser encontrados bebedouros, um equipamento em extinção. Procuramos lojas de sanduíches. Pior: eles querem vender refrigerantes, sucos ou alguma garrafinha de água. Sem pagar, nem da torneira!

Nos restaurantes não há mais uma jarra de água filtrada, fresca ou gelada para matar a sede dos clientes. Querem empurrar as águas minerais com embalagens que provocam grave poluição e, observa-se, sem nenhum protesto das ONGs do ramo ecológico. Claro!

Pior, surgiu agora, a água purificada adicionada de sais. A água mineral nobre de São Lourenço, MG, é desmineralizada, adicionada de sais, patenteada e vendida pela transnacional Nestlé, que está destruindo o parque das águas da cidade, secando a suas nascentes.

Já a água Dasani, da Coca-Cola, usa aquela fornecida pelo serviço público (PE), engarrafada para ser vendida como se fosse água mineral (natural). Na Inglaterra, a mesma Coca bombeia água do rio Tâmisa que banha Londres, para vendê-la também sob a marca Dasani, marca mundial. E que poder detém essa marca, porque, mesmo em Londres, uma capital do Estado do bem-estar-social (concorria com o socialismo que perdurou até 1956), essa corporação especuladora impõe sua vontade criminosa, impunemente!

Nas lojas de conveniência, nos postos de gasolina, nas estradas, em alguns centros comerciais, o litro de água está, no mínimo, acima de três reais, freqüentemente a cinco. Vendem a garrafa de 200ml a R$ 1,00 e nós não percebemos a exploração absurda. Água mais cara que a gasolina; comparem os investimentos e os custos para obtê-las.

Isso mesmo, o bem essencial da vida, privatizado, na mão de transnacionais, virou uma mercadoria absurdamente cara.

E por esse preço ainda se dissemina a terrível poluição causada pelas embalagens (garrafas) plásticas para a água. Beba a água jogue fora a garrafa (o que fazer com ela, senão isso?), mas quanto tempo levará a natureza para transformar e assimilar esses recipientes lançados ao léu depois de usado o seu conteúdo?

De nossa parte não pode haver qualquer omissão. Seria imperdoável aceitar o absurdo das transnacionais das águas ocuparem, o que já fazem, os nossos mananciais, as fontes que temos, dominando pela desnacionalização os sistemas de águas dos municípios. Só para dar um exemplo: no Estado do Rio, a taxa mínima de uso da água era de R$0,39 reais e subiu, agora, para R$10,50. Este é o preço para os que não têm como pagar. E mesmo sem pronunciamento da justiça corta-se a água, porque o que importa para as transnacionais é a garantia de que o capital chegue e, imediatamente, seja feita a remessa de lucros para o exterior.

É o câncer do sistema financeiro chegando até ao bem essencial da vida: a água.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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