Fascismo escancarado: a proibição do direito de greve

rosa maria

Fascismo escancarado: a proibição do direito de greve

Em 25 de outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) regulamentou o fim do direito de greve do serviço público. Para o STF, enquanto o Congresso Nacional não disciplinar a questão através de uma lei específica, vale a lei 7.783/89 que cerceia o direito de greve no setor privado. Atualmente, há dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Ambos criminalizam e restringem o direito de greve.

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Rosa Maria é professora de direito do trabalho e Auditora Fiscal do trabalho

O ministro Eros Grau afirmou que as greves que prejudicarem os serviços prestados ao público serão considerdas ilícitas. Desta forma, todas as greves do funcionalismo público podem ser consideradas ilegais. A greve é o direito legal de incomodar, de paralisar um serviço. Se a greve não incomoda ninguém, ela não tem efeito, não é instrumento de pessão.

Esta iniciativa caminha no sentido de criar obstáculos a todas as greves, tanto no serviço público quanto no privado. No serviço público, muito tem se falado sobre a proibição das greves nos serviços essenciais. O problema é que todo serviço público é essencial, os administrativos, de saúde, educação, etc. E, além disso, serviços essenciais também são prestados por entidades privadas, acabando por restringir a greve nos dois setores.

Os Projetos de Lei anti-povo que regulamentam o direito de greve dos servidores públicos estão prestes a serem votados. Há um projeto no Senado (PLS 84/07) e outro na Câmara dos deputados ( PL 4.497/01).

Os dois Projetos definem as atividades essenciais, que em caso de greve, devem manter 45% dos serviços funcionando. As atividades são: urgências médicas à manutenção da vida, serviços de necropsia, liberação de cadáveres, exame de corpo de delito, distribuição de medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS); serviço de controle do tráfego aéreo, atividades policiais de segurança pública e penitenciária; representação diplomática; rodovias, portos, ferrovias e transporte público; inspeção agropecuária e sanitária; fiscalização tributária alfandegária; fornecimento de água, energia elétrica e serviços de telecomunicações.

O PL 4.497/01 prevê a contratação de funcionários temporários para suprir a demanda nos casos de greve. O Projeto, reformulado pelo deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) também institui punições para o que chama de "greve abusiva". Para ele, são: paralisação que não atenda às formalidades da lei ou que se recuse a prestar os serviços essenciais à população, conforme a lei, e manutenção da greve após acordo ou decisão judicial. Em caso de abuso, o trabalhador pode ser supenso por 90 dias e até demitido. Os sindicatos que tiverem as greves consideradas abusivas podem pagar 30 mil reais de multa/dia.

Os dois projetos são extremamente lesivos aos trabalhadores e anulam o direito constitucional de utilizar a greve como instrumento de luta por melhores condições de trabalho e de vida. Eles praticamente inviabilizam a greve, obrigando quase metade dos funcionários a continuar trabalhando, definindo quase todos os serviços como essenciais, punindo os trabalhadores e seus sindicatos.

Sobre este assunto, leia a entrevista com a professora de direito do trabalho e Auditora Fiscal do trabalho, Rosa Maria Campos Jorge.

Trabalhador nenhum pode
admitir o que está acontecendo
mesmo que venha de um governo
que se diz ligado ao sindicalismo

AND – Como você vê o direito à greve?

Rosa – A minha visão é a de quem observa por dever de ofício o que ocorre no mundo real, na relação entre patrão e empregado. O trabalhador não possui muitas armas para se defender. Ele desenvolve a capacidade de se unir em torno de sua organização que é o sindicato. A grande arma para exigir um tratamento justo é o direito de greve. É lógico que o direito de greve não pode ser limitado ao sabor, justamente, daquele contra o qual ele precisa ser exercido, que é o patrão explorador.

AND – Como você analisa a atual discussão sobre a necessidade de uma lei de greve para o servidor público?

Rosa – Eu não acredito na lei de greve. Ainda não vi uma que realmente tratasse da questão do ponto de vista das relações de trabalho mais justas.

AND – Qual é o problema em relação à negociação coletiva?

Rosa – Não existe nenhuma legislação, tanto para o setor privado quanto para o público, que estabeleça os parâmetros de uma verdadeira negociação coletiva. Houve uma tentativa do governo atual, em seu primeiro mandato, com a criação de uma mesa nacional de negociação para os servidores públicos e que praticamente não funcionou. Ela foi chamada por muitos como "mesa nacional da enrolação" porque muitas categorias negociaram e discutiram questões importantes como plano de carreira, mas a discussão não foi avante e em alguns casos o governo voltou atrás e agora não quer cumprir os compromissos que assumiu.

AND – Pela Constituição os servidores públicos têm que ter um aumento anual, mas sempre vemos os servidores fazendo greve por questões salariais. Por que isso acontece?

Rosa – Os servidores públicos têm direito a um reajuste anual para recomposição das perdas salariais, mas isso não está claramente definido. Porque não falam em regulamentar isso? O presidente dá 0,01% de aumento para dizer que cumpriu o que a Constituição prevê. Isto foi uma piada, um absurdo e muitos servidores procuraram uma forma de devolver esse grande reajuste, essa esmola. E quando o governo faz isso ele tem o apoio dos grandes empresários. Esses apóiam o governo, no sentido de não dar nada para os servidores públicos. É essa a questão. Não existe parâmetro para a negociação coletiva no serviço público. Por isso, quando os trabalhadores querem negociar recorrem à greve.

AND – No caso da negociação coletiva, se houver um sindicato pelego, isto pode representar perdas ao trabalhador.

Rosa – É por isso que trabalhamos contra o projeto do acordado acima do legislado. Nós ainda temos uma legislação trabalhista que tutela o trabalhador. Ela não dá ao trabalhador o direito de renunciar aos seus direitos porque entende que o trabalhador, premido pelas necessidades, pode renunciar a eles para ter o principal, que é o direito, pelo menos, de comer. A exceção é quando há acordo ou convenção coletiva de trabalho. Enquanto a legislação não for modificada neste sentido, aquilo que for acordado, do ponto de vista legal, só pode ser melhor do que o que já existe.

AND – Como você vê a discussão da lei de greve do servidor público neste cenário de movimento sindical dividido?

Rosa – Eu acho perigosa a situação do servidor público. No governo anterior, nós tínhamos uma oposição mais forte, uma fundamentação teórica que está sendo negada hoje pelas mesmas pessoas que a defenderam.

E aí chega com um discurso que a gente rechaça. Trabalhador nenhum pode admitir o que está acontecendo mesmo que venha de um governo que se diz ligado ao sindicalismo. Isso não dá a ele o direito de negar tudo que os sindicatos e os trabalhadores conseguiram com muita luta. Eu acho que o Luiz Inácio não pode justificar esta lei, afirmado que só ele estaria autorizado a fazer isso, porque vem do sindicato. Ao contrário, ele está usando uma falácia para realmente convencer quem ainda não está convencido de que esta lei é a melhor saída.

Ainda acredito muito no movimento sindical, apesar das divergências e divisões.

AND – Quais os problemas atuais do movimento sindical?

Rosa – Os movimentos sociais estão muito tímidos e o sindicalismo muito enfraquecido. Algumas instituições, como a terceirização, têm contribuído enormemente para isso… Também a "privatização", o "enxugamento da máquina estatal"… Esses processos, que se iniciaram na década de 90, no Brasil, enfraqueceram a administração pública. Eles enlamearam o nome do servidor público, colocaram a estrutura do Estado como um grande elefante branco, ineficaz. Para quê? Para que a "iniciativa privada" assumisse diversas funções que são do Estado, como a saúde e a educação.

AND – O ministro do planejamento afirmou que greve tinha que ter limite. Como você vê a intenção da atual gerência de regular o direito à greve?

Rosa – A intenção do governo é clara. Ele quer barrar toda e qualquer resistência. Na verdade, alguns setores do governo acham que o servidor público tem mais direitos em relação a quem está na iniciativa privada, o que em certa medida está certo. O trabalhador de empresa privada já perdeu muitos direitos. O que não quer dizer que tenhamos que igualar o servidor público ao patamar do privado. Ao contrário, o servidor privado precisa ter mais direitos.

Os sindicatos têm que retomar um papel mais ofensivo, não só tratando de garantir o pouco que têm, mas exigindo mais. Eles têm que exigir salários dignos, que a jornada de trabalho seja reduzida, que a hora extra seja proibida, etc. As pessoas têm que ter direito à vida além do trabalho. Mais que isso, nós precisamos ter jornadas menores para ter emprego para todos.

AND – O governo afirma que quer limitar a greve do serviço essencial porque a população é quem tem sofrido com as paralisações no serviço público.

Rosa – O direito de greve por esta visão do "eu não fui atendido" é uma imagem distorcida da realidade, em que o interesse individual prevalece sobre o direito coletivo.

Nenhuma injustiça pode ficar impune, mas aquelas que, muitas vezes, acabam ficando em evidência no monopólio da imprensa não têm muito a ver com a globalidade do sofrimento pelo qual passa o nosso povo.

Claro que um contingente deve ser destacado para atender o que realmente for emergencial. Mas, não é preciso uma lei para isso, já que a própria lógica grevista, e o respeito que o movimento tem com a população, jamais descuidou desse aspecto. Afinal, quem faz greve sai do próprio povo oprimido e conhece muito bem a realidade do atendimento no serviço público. Outra coisa: não há e nem haverá nenhuma lei que verdadeiramente impeça greves. Nesse caso, o direito de greve é o direito legal de incomodar.

AND – Aprovada a restrição do direito de greve dos servidores públicos, ela de fato vai atingir a todos os trabalhadores?

Rosa – Com certeza. Todas as vezes que se abrem brechas para retirar direitos de alguém, pode ter certeza de que você, sendo trabalhador, mesmo da empresa privada, será atingido. Eles vão ter dificuldades para aprovar essa medida. Não fomos vencidos de vez. A resistência ainda está tímida, mas existe. Eu acredito no poder dessa resistência.

AND – Alguns sindicalistas têm afirmado que se houver cerceamento do direito de greve há a possibilidade de greve geral. Como você avalia esta possibilidade?

Rosa – Sem dúvida que é preciso preparar o terreno para uma coisa muito forte. E o grande patrão tem medo do trabalhador. O trabalhador é que não sabe a força que tem.

AND – Há alguma possibilidade de modificação na Constituição Federal, já que o direito de greve é cláusula pétrea (não pode ser modificado)?

Rosa – A gente não pode afastar essa possibilidade. O Congresso quer "limitar o direito de greve" no setor público porque também se opõe a ele no setor privado. Teria que propor Emenda Constitucional porque a Constituição fala em regulamentar, não em restringir. Também o Supremo Tribunal Federal [que julga todos os processos em última instância] é formado por uma parcela significativa de pessoas indicadas pelo atual governo e essa parcela está muito comprometida com quem a indicou.

AND – Como você analisa a lei atual — do setor privado — que vai ser utilizada por analogia ao setor público?

Rosa – O excesso de formalismo nesta lei é justamente para impedir que a greve aconteça. Não é dado a nenhuma lei o direito de restringir o que a Constituição não restringe. Duvido mesmo que algum sindicato tenha seguido literalmente todos os passos que essa lei determina para a deflagração da greve porque tornariam impossível o exercício do direito. Nem por isso as greves foram declaradas ilegais.

Não tem como aplicar essa lei de greve. Esta discussão está completamente equivocada, foi colocada de forma oportunista e não atende aos interesses dos trabalhadores nem da sociedade. Ela só atende aos interesses do grande capital. E o Estado está fazendo essa discussão em nome de uma parte desse grande capital.

AND – Nós ainda temos uma legislação que penaliza os grevistas. Como você vê a questão da criminalização da luta sindical e da criação pelo Estado de um aparato repressivo e de intervenção no movimento grevista?

Rosa – Isso é um retrocesso. A criminalização, hoje, significa voltar às degradantes condições de 1886, razões pelas quais o 1º de Maio foi instituído, e a todas as razões que, em nossos dias, com ou sem lei, os trabalhadores têm que fazer greve.

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