Em 1348, a peste negra dizimou as populações urbanas e rurais portuguesas. Em 1375, dom Fernando regulamentou através da Lei das Sesmarias a distribuição de terras abandonadas entre os apaniguados do Reino. As concessões eram livres de ônus, fora a obrigação de explorá-las em prazo determinado.
A doação sesmeira foi a responsável pela introdução da desconhecida apropriação privada da terra nessas regiões do sul do Equador, onde, por trazerem a civilização cristã às populações locais, os lusitanos consideravam-se com o direito a tudo, inclusive de não pecar ao transgredir o sexto mandamento com as gentis mulheres do lugar.
Fundar a desigualdade
No Brasil, o padrão colonial sesmeiro foi propriedade de três léguas de campo — treze mil hectares de terras contíguas. Portanto, tratava-se de dom que jamais se destinou aos que pretendessem viver do esforço de seus braços. O que se queria era simplesmente fundar no Novo Mundo a sociedade de classes vigente no Velho Continente.
A introdução da propriedade privada no atual Rio Grande do Sul foi mais tardia do que nas demais regiões da colônia. Apenas nos anos 1730, moradores de Laguna, retirantes de Sacramento, homens bons chegados do Rio de Janeiro, etc., requereram e obtiveram das autoridades doações sesmeiras no litoral sulino.
Comumente, os pedidos destinavam-se a legalizar estabelecimento já existente em Torres, Tramandaí, Osório, Viamão, Rio Grande, etc. Essas primeiras estâncias apoiavam as tropas que seguiam para Laguna, sobretudo para abastecer em carne e mulas as dinâmicas regiões das minas gerais, onde, devido ao clima hostil e pastos nativos escassamente nutritivos, a criação de gado era pouco desenvolvida.
Em geral, os pretendentes a sesmeiros declaravam que possuíam os recursos para povoar com cativos e gados as terras desocupadas que reivindicavam. Era apenas forma retórica, propor ou pretender que as terras queridas fossem devolutas.
Primeira colonização
A ocupação humana do Sul do Brasil teria se iniciado há mais de doze mil anos. Portanto, quando espanhóis e portugueses interessaram-se por essas regiões, nelas viviam há milênios povos pertencentes a três grandes complexos civilizacionais.
Nos territórios florestais do norte do atual Rio Grande do Sul viviam, sobretudo, comunidades de língua jê, especializadas na exploração das florestas e na coleta de pinhões. Os campos abertos sulinos eram o domínio de povos pampeanos, que se tornaram exímios cavaleiros após dominarem os animais introduzidos pelos europeus nos pampas, a partir de fins do século XVI.
No litoral, nas margens das lagoas, nos vales dos grandes rios viviam os povos guaranis, últimos chegados à região, onde teriam introduzido as práticas horticultoras, descobertas por seus ancestrais nas florestas amazônicas.
As aldeias jês, pampeanas e guaranis dominavam grandes extensões de terras, necessárias para sua sobrevivência. Esses territórios comunitários, comumente disputados, eram explorados de forma familiar e associada. A propriedade privada da terra era desconhecida por essas comunidades.
Sete povos missioneiros
A economia pastoril sul-riograndense, com seus rodeios, vacarias, estâncias e currais, foi continuação da criação missioneiro, consolidada com a fundação dos Sete Povos Missioneiros, a partir de 1682, no noroeste do Rio Grande. As estâncias e fazendas guaraníticas eram bens comunitários das diversas missões.
Nos pampas da América do Sul, a gênese e consolidação da sociedade pastoril ibérica processaram-se através da mesma expropriação violenta dos gados, das terras e do massacre, da expulsão e da subalternização das sociedades nativas.
No Uruguai e na Argentina, esse processo, respectiva e sugestivamente denominado de “limpeza dos campos” e de “guerra do deserto”, foi longamente tratado pela historiografia platense em geral desde o ponto de vista das classes senhoriais crioulas.
A fina hipocrisia das elites luso-brasileiras levou a que não se registrasse na historiografia a gênese politicamente pouco correta da fazenda sul-riograndense. Esse processo de sacralização completou-se com o desconhecimento da presença sistêmica do cativo campeiro nas grandes fazendas pastoris.
História geral
Apenas o longo rosário de violências que transpassou dolorosamente a história pastoril sulina explica por que sequer possuímos um esboço de uma história geral da fazenda, apesar da economia criatório ter constituído a primeira base material da civilização sul-brasileira.
Os pampeanos foram massacrados, escorraçados para a banda oriental, reduzidos a trabalhadores administrados, subalternizados. Os jês foram perseguidos por milícias públicas e civis. Foram executados nas entranhas das florestas pelos terríveis bugreiros para que seus territórios ancestrais fossem entregues aos colonos estrangeiros.
Os guaranis começaram a perder suas fazendas comunitárias após a derrota da grande guerra nacional missioneira de 1753-55, travada contra a fina flor dos exércitos ibéricos. A expropriação completou-se com a conquista das Missões, em 1801, pelos luso-brasileiros.
A privatização dos territórios comunitários impedia igualmente que o nativo realizasse a produção e reprodução tradicional dos bens materiais necessários à sua existência. Assim, obrigava-o a empregar-se como peão assalariado na fazenda formada nas terras que lhe pertencera comunitariamente.
Primeiras cercas
Durante século e meio, as imensas estâncias que se esparramavam pelos territórios sulinos tiveram como divisas cursos de rios, matos, cerros, quanto muito, algumas valas. Nas suas fronteiras, posteiros esforçavam-se para que os gados não adentrassem as propriedades vizinhas.
Apenas nos anos de 1870, as fazendas sul-riograndenses começaram a cercar-se; primeiro, com arame liso, a seguir, farpado, como o que ocorrera alguns anos antes nos campos uruguaios e argentinos. Salvo engano, também não há estudos monográficos sobre esse processo e suas importantes consequências sociais e econômicas.
O cercamento com arame de campos, invernadas, potreiros e currais, transformou em intruso o gaúcho errante que atravessava os campos indivisos abatendo gado para ter carne para comer e couro para vender. Expulso para sempre dos campos agora cercados, embretado na fazenda e no galpão miserável, concluía-se a metamorfose do índio gaudério em peão assalariado pobre.
Ao reduzir a necessidade de trabalhadores pastoris, as cercas teriam também permitido que milhares de peões negros campeiros fossem vendidos a alto preço para os cafeicultores paulistas. Os recursos obtidos na venda dos trabalhadores gaúchos escravizados teriam financiado eventualmente o próprio cercamento dos campos pelos fazendeiros.
Acumulação originária
O longo e doloroso processo de acumulação originária da economia pastoril mercantil sulina, realizado através da expropriação das terras, gados e domínio da força de trabalho americana, desenvolveu-se no contexto da absoluta legalidade jurídica e institucional, já que as elites lusitanas jamais reconheceram o domínio do índio sobre os territórios comunitários.
Portanto, quando o nativo mobilizou-se para defender ou recuperar suas terras ancestrais, foi morto, reprimido ou escravizado, por levantar-se contra as leis e a ordem de um império que só reconhecia e reconhece a cidadania aos súditos e aos amigos do rei.
*Mário Maestri é professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF (Universidade de Passo Fundo). Autor de Deus é grande, o mato é maior! Trabalho e resistência servil no Rio Grande do Sul (Passo Fundo: EdUPF, 2003), dentre outras publicações. E-mail: [email protected]