Fernando Gasparian: Um empresário que nunca se vendeu

Fernando Gasparian: Um empresário que nunca se vendeu

Foi ainda em outubro, no sábado dia 7, com 76 anos de idade, em São Paulo, vítima de distúrbios renais, no Hospital Sírio Libanês, que perdemos o Dr. Fernando Gasparian — um homem brasileiro na acepção da palavra, que durante toda a sua vida militou em defesa do país.

Capas de Elifas Andreato

Considerado um liberal à americana, conforme definiu seu filho caçula, Marcus Gasparian, Fernando era um industrial que não perdia de vista as possibilidades de ajustamento estrutural do sistema industrial, agrícola e comercial, inclusive o do comércio exterior. Sua concepção de desenvolvimento genuinamente nacional o levava a exigir profundas alterações na política, já que entendia perfeitamente que o conjunto de mecanismos públicos tinha por base as relações da vida social, o que exigia profundas mudanças nos planos econômico e político para que livrasse nosso país do sistema fundado no privilégio de uns poucos a custa da miséria de milhões e milhões.

Fernando Gasparian foi um representante da melhor estirpe do que tradicionalmente se chamava burguesia nacional, atuando como industrial, editor, livreiro, jornalista.

— Papai sempre esteve a favor do Brasil independente e democrático. Do ponto de vista empresarial, parafraseando Barbosa Lima Sobrinho, ele sempre acreditou que "capital se faz em casa". Por isso, defendia o desenvolvimento de uma política empresarial protecionista e a restrição de entrada de transnacionais no país — disse Marcus lembrando a discrepância na acessibilidade das linhas de crédito oferecidos aos grandes empresários estrangeiros em detrimento dos nacionais.

Prestes a se tornar ministro da Indústria e Comércio na administração do último presidente da República que este país conheceu, o Dr. João Goulart, foi impedido pela contra-revolução de abril de 1964 e por ela perseguido por todo o tempo em que perdurou o gerenciamento militar.

Ativo nacionalista e democrata, ele havia ficado à frente do Conselho Nacional de Economia nos primeiros anos da contra-revolução.

Numa época (décadas de 50/60) em que o setor que mais gerava empregos no Brasil era a indústria têxtil, Fernando Gasparian ousou ser empresário enfrentando a política entreguista e, por isso, teve seus negócios séria e irreversivelmente afetados. Por conta de perseguições do gerenciamento militar, mudou-se com a família para a Inglaterra, sobrevivendo no exílio por dois anos como professor de Economia Brasileira na Saint Antony University (Universidade de Santo Antônio), em Oxford, e depois na New York University (Universidade de Nova York), no USA.

Argemiro Ferreira*, o último dos editores de Opinião, semanário criado por Gasparian, recorda que, no último ano de sua permanência na Inglaterra, ele ficou muito abalado por causa da prisão e do desaparecimento do amigo Rubem Paiva, deputado federal com o qual promovia abertamente severas críticas ao sistema. Rubem permanecera no Brasil mesmo após a expedição do AI-5 — Ato Institucional Número 5—, e "morreu nas mãos de torturadores da ditadura, no Rio de Janeiro".

Marcus explica o momento:

— Em 1963, meu pai havia se tornado acionista majoritário de uma indústria têxtil chamada 'América Fabril', mas foi obrigado a vender suas ações a um preço irrisório por causa da perseguição política. Naquele tempo, era o Banco do Brasil que financiava os empresários nacionais e o governo passou a cortar o crédito da América Fabril. Uma empresa que tinha 5 mil funcionários. A situação chegou a um ponto tal que os demais acionistas pediram para que o meu pai saísse da empresa.

Os "investigadores" acadêmicos da história recente no Brasil não se atrevem a registrar, exceto algumas obras esparsas, a colossal destruição das empresas privadas brasileiras. Principalmente, desconsideram o fato de que a partir de abril de 1964, essa destruição seguiu-se da imediata transferência de capitais para as mãos das mais poderosas corporações estrangeiras. Ao apoderar-se do Estado brasileiro, a contra-revolução impôs, a ferro e fogo, a política de subjugação nacional. E, tal como as instituições políticas oficiais, o Brasil nunca mais recuperou as grandes indústrias genuinamente nacionais.

É no início dos anos 70 que Gasparian retorna com sua família à nossa pátria e lança, em novembro de 1972, um periódico semanal — o jornal Opinião — e consagrou-se, através dos anos, como um ponto de resistência à política entreguista e fascista no Brasil. Opinião se tornou prontamente o mais avançado jornal do país, surpreendendo pela aceitação e nível de jornalismo desenvolvido, ao que a ditadura respondeu com a mais impiedosa censura (a medieval censura prévia com as necessárias adaptações fascistas), além de apreensões, prisões (inclusive a do próprio Gasparian) e atentados às bancas de jornais e à redação.

— A proposta do jornal nunca foi comunista. Mas era a de abrir espaços para um debate nacional e, acima de tudo, insurgir contra a ditadura. A idéia foi abraçar a pluralidade ideológica, o que fez com que ele abrisse espaço para artigos e notícias bem mais à esquerda. O jornal era a única voz que destoava dos outros. Mas nunca foi uma publicação de orientação comunista — enfatizou Marcus.

E cai a máscara…

Após um período de censura velada e de ações arbitrárias compreendendo desde a apreensão, sob falsas alegações, dos caminhões que transportavam exemplares de Opinião aos mais covardes atentados às bancas de jornais, incendiando algumas delas, e proibição às gráficas de imprimir o periódico, a partir de 1974 o governo impôs a censura prévia ao jornal, cuja distribuição só era feita após a liberação pelos censores.

A Constituição, que a contra-revolução no poder dizia garantir, proibia formalmente esse tipo de censura, sempre negada pelo fascismo, embora o advogado Adauto Lúcio Cardoso, levantando preliminar de inconstitucionalidade no Tribunal Federal de Recursos tivesse provado o contrário e ganho a causa em 1973, porém, conta Argemiro Ferreira, no dia seguinte, o general que ocupava a Presidência da República, Emílio Garrastazu Médici, anulou a sentença. Ainda assim, tornou-se público o despacho secreto do mesmo general, expedido em 1971, para instituir a censura prévia.

"O Estado de S.Paulo, de Ruy Mesquita, por exemplo, se recusou a acompanhar a ação, sob a alegação de que o próximo general, Ernesto Geisel, 'planejava levantar a censura do Estadão'", recorda Argemiro.

Em 1975, Fernando Gasparian, através da editora Inúbia, deu entrada em uma ação na justiça sob alegação de que o governo censurava o jornal, com o agravante de que o fazia de maneira prévia. O reclamante obteve o ganho da causa, o que obrigou o Estado a admitir publicamente que exercia a censura na imprensa. O episódio alcançou repercussão mundial, de tal forma comprometedora que arrastou ao flagrante delito a doutrina, difundida e empregada pelos USA, de que o fascismo seria a salvação dos países da ameaça do comunismo.

Cisão do Opinião

Finalmente, em 1975, o Opinião recebeu o mais duro golpe: por divergências internas com Gasparian, seu editor, Raimundo Pereira, acompanhado de outros da equipe, saiu para fundar o 'Movimento', periódico paulista custeado pelo empreiteiro Sérgio Mota. Deu-se, assim, a 'quebra' do jornal.

— O meu pai sempre deu muita liberdade para os jornalistas. Mas, num certo momento, percebeu que o jornal perdia o foco por conta de opiniões políticas que se afastavam da linha editorial. No intuito de preservar os objetivos centrais do Opinião — insurgir contra a ditadura e ceder espaço para a pluralidade de idéias — Argemiro Ferreira foi contratado como editor — explicou Marcus.

Opinião foi o representante oficial dos diários francês Le Monde e inglês The Guardian, além da edição quinzenal do "The New York Times", mas, sofrendo toda sorte de sabotagens, teve que cerrar suas portas em 8 de abril de 1977.

Grandes conquistas

Além da incansável disposição de consagrar-se à luta em defesa dos interesses nacionais, características de Fernando Gasparian, a sua visão crítica da economia e da politica foi a responsável por alguns avanços nas áreas pelas quais ele passou.

Na indústria, demonstrou o potencial nacional, inclusive adaptando tecnologia para a sua empresa, 'América Fabril' (sem, entretanto, torná-la dependente da técnica produtiva dos monopólios estrangeiros); desenvolveu padronagem brasileira e trouxe à voga até mesmo outra proposta de desfile. Assim, tínhamos, ao fim dos anos 60, modelos que, sob a direção do teatrólogo Flávio Rangel, expressavam o potencial industrial do país, e mesmo concepções estilísticas que falavam de ideais de liberdade e democracia nas passarelas.

Do ponto de vista da imprensa democrática, Gasparian, ao criar o Opinião, trouxe à tona uma marca única que reunia em um mesmo periódico jornalistas e acadêmicos. Nessa empreitada, pensadores das Universidades ganharam espaço e tornaram-se reconhecidos nacionalmente, com as idéias que defendiam na época. Entre eles: Fernando Henrique Cardoso; Francisco Weffort; Paul Singer, Celso Furtado etc.

O discurso e a crença

Nacionalistas e favoráveis à legalidade, Gasparian e alguns de seus contemporâneos de luta — José Ermírio de Moraes, Severo Gomes, Pedro Simon, entre outros — na década de 70, criaram, dentro do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) sua ala autêntica, o "MDB autêntico", que tinha por objetivo opor-se à política entreguista da gerência militar, às suas claras intenções de privatização e desnacionalização, como também à inflexivel prática de pagamento da dívida externa. Gasparian manteve até o fim os ideais da independência do Brasil — ao contrário de muitos que estavam na mesma fileira e que apenas mantinham discurso político, como a triste figura do ex-professor de sociologia da USP (Universidade de São Paulo), Fernando Henrique Cardoso, que ocuparia por oito anos a Presidência da República que, mais do que dizer sim à desnacionalização, realizou-a a "preço de banana".

Opinião superou — em vendagens, aceitação, prestígio e credibilidade — todas as expectativas. Honras aos jornalistas e ao proprietário do periódico. Mas, e o povo? Este exigia um jornal, finalmente, que correspondesse às suas ansiedades, porque é para ele que se tem que fazer jornais. Assim foi que os jornalistas do Opinião e o empresário Gasparian exerceram o papel mais digno na imprensa brasileira da época.

Em 1986, Fernando Gasparian foi eleito deputado federal constituinte, pelo partido originário do MDB, o PMDB, Partido do Movimento Democrático Brasileiro. Entre outras realizações, ele implementou o dispositivo constitucional que limitava a cobrança de juros pelos bancos em até 12% ao ano. Posteriormente, o dispositivo, constante na Constituição, foi revogado por conta de uma manobra dos banqueiros — e o obséquio dos colaboracionistas.

Decepcionado com a vulnerabilidade que encontrou em seus companheiros de ideais que, seduzidos pelo "milagre" econômico dos anos 70 e outras conveniências abdicaram das metas propostas no MDB Autêntico, Gasparian passou, com o fim de seu mandato em 1990, aos bastidores da vida política e econômica do país.

Inusitados e admiráveis

Fatos curiosos, durante as décadas de 40 e 50, revelam o admirável envolvimento de Fernando Gasparian nas mais sentidas causas nacionais. Ele esteve envolvido na campanha O Petróleo é Nosso, que originou na fundação da Petrobrás e na assinatura do monopólio brasileiro da exploração do petróleo em seu território.

Nos anos 70, paralelamente ao Opinião, Gasparian lançou o Cadernos de Opinião, a revista Argumento, adquiriu a editora Paz e Terra e Graal.

O Cadernos de Opinião era uma publicação mais robusta e acadêmica de periodicidade irregular. Teve seu primeiro número lançado em maio de 1975 e sua publicação proibida no segundo número, por causa da conferência de um cardeal da igreja católica, por sinal um ex-integralista, Dom Hélder Câmara, que se via obrigado a questionar a ausência da liberdade de expressão do sistema ditatorial —sistema este, até então, apoiado pela Igreja . A partir desse momento, tem início a distribuição dos Ensaios de Opinião, que nada mais era que o Cadernos com outro nome.

No intuito de fazer essa correlação, a numeração dos Ensaios era sempre (2 + o número da edição). Os Ensaios vão até o número (2+9). Na edição 12, o Ensaios volta a se chamar Cadernos de Opinião resistindo até o número 14, publicado em fins de 1979.

A revista Argumento, de periodicidade mensal, tem seu lançamento datado de outubro de 1973, com apenas quatro números publicados.

Atualmente, a família Gasparian publica as revistas "Argumento" e "Política Externa".


*Depoimento de Argemiro Ferreira, o último editor de Opinião, prestado ao Observatório de Imprensa, em 10 de outubro de 2006, sob o título O valente editor e o desafio de Opinião.

Cronologia das publicações:

Editora Saga

Pouco depois do golpe de 1964 Gasparian assumiu a editora Saga. Mais tarde, comprou a Paz e Terra, de Ênio Silveira, e criou a Graal com o ex-deputado (cassado) Max da Costa Santos.

Editora Paz e Terra e Graal

aproximadamente 2.000 títulos. Adquirida a Paz e Terra, de Ênio da Silveira, criando a Graal, associado ao ex-deputado (cassado) Max da Costa Santos.

Opinião

Primeiro número em novembro de 1972. Último número ( nº 231 ) em 8 de abril de 1977.

Revista Argumento (somente 4 edições)

mensal. De outubro de 1973 até fevereiro de 1974 ( censurada ):

Cadernos de Opinião

em princípio mensal e mais acadêmica que o jornal, mas sem periodicidade por causa da censura. Número 1 em maio de 1975 , proibida no número 2 por causa da conferência do Cardeal D. Hélder Câmara.

Surge então:

Ensaios de Opinião

com outra numeração [(2+1) (2+2) ( 2+3 ) (2+4)] até o 2+9 quando volta a ser

Cadernos de Opinião

do número 12 ao 14, sendo este o último número, em outubro/novembro de 1979 .

Revista Política Externa

trimestral, volume nº 1 em junho/julho/agosto de 1992 e a edição seguinte em dezembro/janeiro/fevereiro 2006/2007. A mudança de projeto gráfico ocorreu em junho de 2003.

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