Impossível explicar como um torneio de futebol possa ganhar o nome de festival. A menos que se conheça o proletariado, ou a sua parte já muito combativa — bem diferente da imagem que os ricos parasitas e asseclas fazem dos trabalhadores urbanos. E para início de conversa, quem entende de lazer, embora dele pouco possa desfrutar, é ele mesmo, o proletariado.
Quando irrompeu a fase mais aguda da luta pela redução da jornada de trabalho, no século 19, primeiramente na Europa, ela não se manifestou solitária. A campanha tomou corpo com os Três Oito : 8 horas de trabalho, 8 de descanso e 8 de lazer. Assim, seguidas às conquistas econômicas, nossos bravos avós se organizavam, eles próprios — além das mobilizações grevistas, portanto — em atividades de divertimento, recreação, saúde.
Em Belo Horizonte, onde o pessoal da construção civil e de outras categorias vivem momentos avançados de suas lutas, sem interferências espúrias, não estranha que a organização do futebol pelos trabalhadores expresse a unidade entre proletários compromissados com o povo em geral.
Quando o modelo adotado no esporte é o de alto rendimento, ele acaba se afundando no reconhecimento mascarado, traduzido em ascensão social, financiamento e altos custos, na restrição de faixas etárias, promoção de "talentos", publicidade, rivalidade exacerbada com presença da violência, treinamentos e torneios fatigantes, direção autoritária etc.
As organizações classistas, ao contrário, apresentam seus times com escalações que abrangem várias faixas etárias entre os adultos, diferentes níveis de aptidão e desempenho, maior esforço coletivo e criatividade, liberação de alegria e descontração.
O Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil de Belo Horizonte — STIC-BH — promoveu o I Festival de Futebol Popular, assim, reunindo 12 times da capital e do interior de Minas Gerais, nos dias 13 e 20 de março deste ano. A inclusão de todos substituiu a figura do campeão nas seis partidas disputadas — cada partida tinha seu patrono, o patrocinador, e seu homenageado, pessoa escolhida por ter afinidades, principalmente, com o movimento sindical — pela sua efetiva presença todos os times receberam troféus.
A idéia do festival surgiu depois de alguns jogos disputados pelo Marreta F.C., o time do STIC-BH, no interior de Minas Gerais, em cidades como Capim Branco, Nova Lima e Caeté.
— Resolvemos fazer uma confraternização com esses times de várzea e chamamos alguns patrocinadores para ajudar nas despesas. Durante o festival, todos os times se confraternizaram e aglutinaram, a partir do futebol, a luta classista. A luta do trabalhador é enriquecida com esse evento. Lá não existe distinção de classe, o futebol cria e mantêm uma visível solidariedade proletária entre os jogadores e todos recebem o mesmo tratamento dentro do time. Pode ser o médico do sindicato ou o servente de obras que a totalidade das pessoas tem o mesmo direito de participação — comenta Osmir Venuto, presidente do STIC-BH e técnico do time.
A principal idéia do festival é estabelecer e ampliar as relações de camaradagem com os times dos outros sindicatos e de instituições como a Rádio Favela FM — a rádio mais democrática de Belo Horizonte, extremamente popular pela audiência e pela presença dos ouvintes nas transmissões —, que já rendeu até mesmo um filme dirigido pelo cineasta Helvécio Ratton, Uma onda no ar. Um dos coordenadores e criadores da rádio, Misael Avelino dos Santos, diz:
— O Festival é importante porque o povo pode travar novas amizades e experiências, no gramado ou na beira do campo, e trocar informações sobre várias questões com gente da sua classe. E essa parecia ser a grande motivação do Aldeia Favela Clube, o time da rádio, que levou uma generosa torcida em dois ônibus lotados, em direção a São José da Lapa, MG, onde se localiza a sede do Clube Social do Sindicato dos Comerciários de BH, prontamente cedida pela categoria para a realização do festival.
Antecedentes com lutas
Um dos objetivos do Festival promovido pelo STIC-BH era comemorar os 9 anos de fundação do Marreta F.C. Criado em 1996, o time amador era da categoria infantil e ganhou destaque ao disputar e conquistar um gratificante terceiro lugar no campeonato do DFA — Departamento de Futebol Amador — em 1997, ano em que o time infantil jogou representando o Cachoeirinha Futebol Clube. No ano seguinte, o Marreta F.C. representou o 7 de Setembro — time que pertence ao dono do estádio do Independência, em BH — um favor pedido a esse último, uma vez que estava sem um grupo formado para disputar o campeonato e temia perder a licença nas futuras competições. Com um pequeno patrocínio, jogaram contra times bem mais preparados como o Atlético, Cruzeiro e América, o que resultou em uma classificação desfavorável. Além do mais, mesmo contando com o patrocínio e o incentivo dos pais que iam ver os filhos jogarem, eram muito grandes as despesas.
— Era preferível jogar no interior. Aqui sempre tinha que ter duas bolas novas, gastos com alimentação para as crianças, aluguel de campo, juiz, etc — relata Osmir — Além de ter de cuidar dos filhos dos outros, era tudo muito caro. A Federação só queria ganhar dinheiro com o negócio, enquanto nós queríamos apenas fazer um trabalho social.
No Marreta, todos os meninos do time infantil eram encaminhados para a escola. Nenhum deles podia deixar de estudar e, graças a isso, alguns hoje são músicos e engenheiros bem sucedidos, outros se transformaram em profissionais do futebol, entre massageadores, treinadores de goleiros e atletas profissionais como o Braite, um dos jogadores do time infantil, que hoje joga no Goiás. — Quando os garotos jogam, o custo é bem maior, cerca de 2 mil reais por partida, uma vez que é preciso um trabalho de acompanhamento, gastos com campo e arbitragem, transporte, etc. — comenta o versátil José Júlio que, além de jogador, é coordenador do atual time e advogado do STIC-BH. Ele relata como era frustrante ver que todo aquele trabalho não encontrava respaldo. A imprensa não cobria os campeonatos, os times grandes e estruturados não davam (e ainda não o fazem) valor ao trabalho e reconhecimento ao esforço dos meninos:
— A Federação cobra a mesma taxa dos pequenos e grandes times, os ex-jogadores como o deputado João Leite não ajudam em nada, apenas fazem política. No futebol de base — de equipes infantis e juvenis — os grandes times não têm humildade para aceitar os jogadores dos outros plantéis, por melhores que sejam.
Para José Júlio, eles vêem trabalhos como o do Sindicato na condição de concorrentes e querem fazer com que os meninos deles sejam os melhores. Por isso, os grandes times de hoje não revelam nada de suas categorias de base. Os meninos que jogam nas equipes de base são todos indicados por figurões dentro da diretoria dos clubes maiores, são filhos do dentista, do advogado do clube e assim por diante. Os meninos de famílias empobrecidas, que vão participar da "peneirada" onde os olheiros dos times procuram novos talentos, enfrentam várias dificuldades para chegar ao treino, enquanto que o influente ruim de bola entra pelo portão principal e não é tirado do time, por pior que seja, uma vez que os treinadores não querem desagradar seus diretores.
O time infantil já não existe mais. Hoje o Marreta F.C. é composto por trabalhadores do Sindicato e operários da construção civil de Belo Horizonte e não está filiado a nenhuma Federação ou órgão responsável em regulamentar os clubes amadores. São amadores por conta própria. E muito bons de bola.
Social para nós
Em 2004 o Marreta F.C. voltou à ativa para participar dos jogos de várzea. Da intenção de confraternização, uma "peladinha", realização restrita, hoje se transformou em jogos bem estruturados, times fortemente organizados, com menos despesas, e todas elas divididas entre os jogadores que podem contribuir e que conta com a presença dos operários.
Osmir Venuto e José Júlio concordam:
— O time hoje é importante para unir o pessoal, organizar os trabalhadores. Muitos deles moram na periferia, como no Morro Alto — região extremamente perigosa, no norte de Belo Horizonte, dominada pelo tráfico — e, utilizando parte do seu tempo com o lazer, organizado por eles próprios, vivem grandes momentos distantes da brutalidade e da repressão.
O clube agora é patrocinado pela PAZ, uma empresa que, em 1989, implantou um seguro de vida na construção civil e que fornece os uniformes, o que alivia, em cerca de 70%, os gastos atuais do time.
Futebol é para isso
— Afinal, além de dar oportunidade para todos, o time também quer se manter forte nas partidas — conta Osmir.
Os que saíram do time e os que não são escolhidos acabam virando fiéis torcedores e participam das "peladas". O time não treina frequentemente porque não têm campo próprio — só quando conseguem um salão emprestado ou quando o Sindicato dos Trabalhadores em Transporte de BH e Região — STT RBH — empresta o campo do Celfos, o clube do sindicato onde fazem as "peladas" —, trabalho que dá mais satisfação e conforto que os treinos diários.
— O grande futebol só pensa em ganhar dinheiro e o pessoal aqui só quer saber da convivência amigável com o pessoal da sua classe e se divertir — afirma Osmir, quando compara a sua equipe às profissionais.
E é brincando e se divertindo que muitos encontram a infalível solidariedade proletária diante dos problemas do cotidiano. É o caso de um dos jogadores que perdeu o filho de maneira trágica e, sofrendo de depressão, tornou-se alcoólatra. Hoje, depois de entrar para o time, leva a família aos jogos onde passam o tempo juntos e já freou bastante a bebida. Com a ajuda de psicólogos do STIC-BH e do futebol, aos poucos ele se recupera e todos em sua casa são extremamente agradecidos ao clube e ao sindicato.
O trabalho em equipe apresenta resultado de várias maneiras. O time tem jogadores mais novos e alguns mais velhos. Os mais novos superam a deficiência dos mais velhos, mas mesmo assim, existem os ansiosos que cobram dos colegas. Segundo José Júlio, tem um que é boa pessoa, nunca faltou a um jogo sequer, mas é difícil de aguentar no gramado, cobra muito dos colegas. Mas diante do trabalho em equipe ele percebeu que o significado é mais do que buscar a vitória, como por exemplo dar oportunidade a todos de jogarem.
Misael Avelino, da Radio Favela, aplaude a sinceridade e a solidariedade do pessoal, que revela isso através da escola, da rádio e do time, recordando que alguns, como Marquinhos, 45, jogador do Aldeia Favela Clube, livraram-se do álcool graças à organização proletária no esporte. Também através dele, muitos têm a oportunidade de viajar e mesmo de frequentarem um clube e uma piscina, como alguns nunca haviam feito. Durante o Festival, o time foi convidado para disputar jogos até o final de agosto.
Nos interiores, todo mundo tem telefone de todo mundo e os jogos são facilmente combinados. O Festival de Futebol se tornou uma grande atração. Existe um prestígio em jogar amigavelmente, com uniforme bonito, sem digladiar, com juízes profissionais contratados na Federação Mineira de Futebol — que já apitaram até mesmo jogos do Atlético, enquanto que os bandeirinhas sempre participam das partidas do Mineirão. O uso da flâmula foi resgatado, o que embeleza ainda mais os encontros amigáveis e chama a atenção de todos.