Nos dias 5 e 6 de novembro, o Rio sediou, no Cais do Porto, o Festival do Choro, o primeiro de proporções grandiosas e um marco fundamental na evolução do gênero no Brasil, e que, em seu formato, não deixou nada a dever aos grandes eventos que acontecem na cidade, com a diferença de ocorrer em um ambiente familiar, aconchegante, consistente.
Idealizado por Lúcia Romano, produtora que já havia levado a cabo outras iniciativas semelhantes — como o projeto Bossa Nova para Adolescentes —, o Festival pretendeu, nas palavras do jornalista e diretor musical do evento, Jorge Roberto Martins, “dar mais visibilidade ao choro”. Para isso, antes de mais nada, os produtores precisavam correr atrás de apoios e patrocínios, sem os quais, por mais que a vontade fosse grande, não poderiam avançar. Primeiro, brigaram pelo benefício da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Depois, conseguiram firmar uma parceria, o que permitiu pensar na realização de um Festival de razoável magnitude. Com a divulgação do evento, o interesse do público cresceu tanto que em apenas um dia de promoção pela Rádio Globo, para distribuição de ingressos, foram recebidas mais de 250 inscrições.
O festival contou com cinco apresentações por dia, sendo uma com novos artistas e quatro de profissionais já consagrados.
No primeiro dia, mesmo debaixo de chuva, o público não desanimou: 800 pessoas aplaudiram e ovacionaram as atrações que subiram ao palco. O Época de Ouro, que é o mais tradicional grupo de choro existente, deu boas-vindas aos espectadores. Concebido por Jacob do Bandolim em 1966, o grupo ainda tem em sua formação membros fundadores, como Dino Sete Cordas, César Faria e Jorginho. O Trio Madeira veio logo em seguida, mostrando músicas do primeiro CD gravado em 1997, cujo repertório inclui canções de chorões de vários estilos e origens, a exemplo de Ernesto Nazareth, Egberto Gismonti, Manoel de Falla e Scott Joplin.
Herdeiros da tradição, o Regional Carioca foi o terceiro a se apresentar, brindando o público com o virtuosismo de artistas que se uniram há apenas dois anos.
Maria Teresa Madeira entrou como uma prova de que o choro não é um gênero só de cordas e sopros, e sentou-se ao piano para tocar composições magistrais.
A noite terminou com o Sexteto Maurício Carrilho, que fez homenagem a Ademilde Fonseca e aproveitou a ocasião para fazer o lançamento do novo CD.
O segundo dia do evento, em termos de riqueza musical, não foi muito diferente do primeiro. Cerca de 1500 pessoas encheram as margens da baía. O violonista Turíbio dos Santos pisou no tablado por volta das oito, abrindo a noite em grande estilo. O ponto alto da apresentação ocorreu quando se juntaram a ele dez alunos da Escola de Música Villa Lobos, os villa-lobinhos.
Para quem não conhecia, o Tira Poeira, segundo grupo a se apresentar no dia 6, talvez tenha sido uma das maiores surpresas do Festival. Apontando novos rumos para o choro, o quinteto fez a mais antiga das músicas brasileiras soar incrivelmente moderna, inventiva e atual. Mostrando releituras de canções de Pixinguinha e Waldir Azevedo, além de uma versão chorona de Atrás da Porta, de Chico Buarque e Francis Hime, os jovens lançaram mão de ousadias harmônicas e arranjos absolutamente inusitados. Ao final do espetáculo, os insistentes pedidos de “bis” foram mais do que justos. Henrique Cazes entrou de maneira mais tímida, invertendo o clima deixado anteriormente. Autodidata, tocou cavaquinho ao lado de Marcelo Gonçalves, um dos mais requisitados violonistas de 7 cordas da atualidade. Água na Moringa foi o quarto grupo a se apresentar.
Ninguém poderia fechar um festival de choro dessa envergadura com mais luminosidade do que Altamiro Carrilho. Prestes a completar 80 anos, o flautista subiu ao palco esbanjando simpatia e senso de humor. Emocionou a si próprio e ao público em certos momentos, como na hora em que interpretou uma versão de Carinhoso, composta por ocasião da morte do Mestre Pixinguinha. Versátil, dedilhou, em sua “flauta mágica”, uma sorte de clássicos, músicas russas, cantigas populares, valsas, etc. Quando se despediu, deixou saudades e um gostinho de quero mais.
Uma exposição iconográfica do historiador e músico Sérgio Prata sobre a história do choro regional — de 1910 a 1990 —, com fotos inéditas, montada na entrada do Armazém; o luthier Rogério Santos, exibindo seus esqueletos de instrumentos num ateliê improvisado; e a noite de autógrafos, só com autores de livros sobre a música brasileira, deram um colorido todo especial ao festival. Segundo Jorge Roberto Martins, que apresenta um programa de música instrumental brasileira na Rádio MEC, o Festival dá seqüência a uma série de movimentos que surgiram nos últimos tempos e viram no choro não apenas uma função musical, mas também, sob uma perspectiva mais abrangente, uma função social e cultural. Um exemplo disso é a publicação Roda de Choro, uma revista que se dedicou a cobrir as manifestações do gênero, não tendo, entretanto, sobrevivido à fúria do mercado editorial. Além disso, alguns Festivais de Choro, de caráter competitivo, produzidos pelo Museu da Imagem e do Som em 1996 e em 2000, também se inserem nessa linha evolutiva. A Escola Portátil de Música tem, igualmente, cumprido um importante papel na formação das novas gerações de chorões.
O sucesso do Festival, portanto, reside no fato de que, além da oferta generosa de boa música, ele presenteou as pessoas com espetáculos de um gênero que é popular e sofisticado ao mesmo tempo, muito embora esses conceitos devam ser relativizados.
— A razão das rádios não tocarem música clássica não tem nada a ver com o grau de popularidade desse estilo, pois quando Vinicius de Moraes colocou letra em Jesus Alegria dos Homens, de Bach, todos passaram a cantá-la. — exemplifica o diretor musical, ansiando pelo dia em que o choro, bem como todos os ritmos genuinamente nacionais, será executado com mais frequência nas rádios.