Feudalidade e semifeudalidade em Nelson Werneck Sodré

Feudalidade e semifeudalidade em Nelson Werneck Sodré

Em 1962, Nelson Werneck Sodré lançou um livro denso e volumoso de considerável impacto no debate político e acadêmico: Formação Histórica do Brasil. Objeto de um fecundo amadurecimento teórico e intelectual, esta publicação também refletiu a leitura do autor sobre o modo de produção feudal no processo histórico brasileiro, sem falar que nela apresentou algumas singularidades importantes nesta construção teórica, resultado de amplas pesquisas ao longo de seu período como professor do ISEB.

A primeira delas foi o diálogo que Sodré estabeleceu com autores marxistas que não faziam parte do arcabouço reflexivo brasileiro à época, a exemplo de Mariátegui. A segunda, embora o debate sobre o feudalismo no Brasil fosse uma polêmica que tradicionalmente incorporasse intelectuais marxistas e não marxistas ao longo de nossa história, este monumental trabalho foi, em última instância, o epílogo de um longo processo de amadurecimento intelectual de Werneck Sodré sobre essa temática; reflexão essa que já estava presente nos artigos da juventude e que até se apresentou de forma conflituosa em alguns de seus trabalhos do período e maturação.

Digo isso na medida que, por um breve período de sua trajetória intelectual, o historiador mesmo sinalizou para a possibilidade de haver no Brasil uma fase Capitalista Mercantil presente no interregno de sua rotação ao debate marxista. Isso, evidentemente, não o livraria de críticas e equívocos de várias ordens, a maior, talvez a mais injusta, é a (des)qualificação de Formação Histórica do Brasil como a fundamentação teórica da linha política do PCB pós Declaração de Março de 1958, leitura ainda hoje percebida por muitos analistas contemporâneos. A despeito dessa polêmica, essas críticas não impediram que o livro ganhasse o debate público (apesar da considerável resistência ao autor e sua obra em determinados setores acadêmicos) e fosse sucessivamente reeditado ao longo dos anos seguintes.

Todavia, dentre suas várias teses e por não dizer polêmicas sobre sua obra, seguramente, esta sobre o modo de produção feudal foi a que mais tencionou o autor teoricamente ao longo de sua trajetória intelectual. Mas de que forma a questão sobre a feudalidade ou semifeudalidade se apresenta em sua reflexão? Embora a fecundidade do debate e a densidade de sua reflexão não permitem mais que alguns apontamentos preliminares no espaço de um artigo, vamos a alguns desenvolvimentos, particularizando duas mediações desse resgate. Inicialmente, o autor recupera a leitura que o desenvolvimento brasileiro foi extremamente desigual, comportando etapas históricas diferenciadas e paralelas ao mesmo tempo que, por extensão incorporou com nuances particulares, a transplantação de bases de uma sociedade — a feudal — que há muito deixava de ser referência nos países coloniais. Nisso incorre para este modelo de interpretação que, inicialmente, o escravismo veio ao encontro da necessidade de efetivação de uma produção em larga escala objetivando a exportação. Mas como bem ressalta o historiador, não foi o escravismo extensivo a todo o território brasileiro. No restante do Brasil, em especial a região amazônica, na área pastoril sertaneja e mesmo no sul do país, somente para citar algumas regiões, o processo foi diferenciado. Por exemplo, no caso das missões religiosas (jesuíticas ou vicentinas), ele sustenta a tese que a atividade produtora (ervas e especiarias), em alguns casos, destinava-se ao mercado externo como também ao mercado interno, mas com uma característica no plano geral, a produção, qualquer que fosse, era de reduzidas proporções quando comparado a produção do açúcar produzido em larga escala.

Daqui incorre a polêmica, se aqueles que trabalhavam eram escravos, produtores ou servos. E a mesma indagação remete as demais áreas sinalizadas acima, entre outras atividades como a economia pastoral sulina. Como a forma de produção nestas áreas não gerava excedente, o índio livre produzia de forma diferenciada, até porque ele não era um escravo.

Evidentemente isso não descartava, na interpretação de Sodré, que não houvessem outras situações específicas, formas mistas em que o escravismo também estivesse presente. Mesmo assim, nas regiões não destinadas à exportação, leia-se, áreas secundárias/subsidiárias como ele apresenta na sua obra acima citada, a relação de trabalho era diferencialmente outra na medida que a forma de remuneração era fundamentalmente em espécie. Werneck Sodré ressalta ainda em sua análise que a questão metodológica é fundamental para apreender este processo e nele não há etapismo histórico ou esquemático e sim, possibilidades concretas que remetem a singularidade de um modo de produção específico no Brasil. Por isso, ele pondera que, essa diferenciação tem que ser levada em conta na medida que no Brasil ocorreram — paralela e contraditoriamente em muitas ocasiões — formas de produção diversas. Sobre esse aspecto, há que estabelecer, como faz questão de sinalizar, uma leitura a partir dos paradigmas conceituais, mas que também, deve ser apreendida a partir da realidade concreta, algo já percebido, por exemplo, no exercício de sua função como oficial do exército no Mato Grosso nos anos 40, um estado particularmente isolado na virada dos anos 30/40.

Paralelamente, Sodré igualmente afirmaria que a definição de uma relação feudal não pode ser somente aprendida pelo quesito renda, mas também pelo laço de dependência social. E neste quesito último é que sugestivamente — dialogando com o autor e sua obra — pode-se remeter para a hipótese de sua existência em formas análogas de trabalho servil nos dias atuais como já sinalizamos em artigo anterior. Essa tese pode ser apreendida ao longo da história brasileira advinda desde a colonização, quando milhares de escravos brasileiros ficaram sob a dependência dos antigos senhores, a partir do momento que estes últimos perderam a condição de senhores com a abolição, mas o fato não transformou os ex-escravos automaticamente em trabalhadores assalariados. Mais recentemente, essa é uma tese que adquire alguma razoabilidade a partir de formas variadas de prestação de serviços nas cidades ou no campo quando a remuneração é, de alguma forma, em espécie.

Nesta linha de interpretação, a segunda mediação refere-se a uma categoria de análise original inserida neste processo histórico e que, curiosamente, também adquire certo grau de razoabilidade contemporânea. Vamos por partes: a partir do decréscimo da escravidão e a conseqüente abolição em perspectiva já no final do Império resultou em um processo de transição por ele denominado de ' Regressão feudal ', que, se veio a ser uma particularidade de nosso processo histórico; concomitantemente, também podemos apreender sua ocorrência contemporânea a partir de uma característica correlata e quase não alterada ao longo de nossa história: o monopólio da terra. Esse processo e o quadro fundiário já era uma característica da fase da independência, quando a classe senhorial brasileira, herdeira de um aparelho burocrático e ideológico, conseguira estruturar nacionalmente o Estado brasileiro, a despeito das muitas tentativas de rebelião regionais ou mesmo debilidades de várias ordens onde o poder público esteve ausente.

Por essa razão, ocorre na segunda metade do século XIX e já objetivando uma saída do trabalho escravo que se configurava em um horizonte não muito distante, a transição para a incorporação de novas áreas a etapa de servidão paralelamente ao avanço do trabalho livre, sendo que, neste processo a população escrava evoluiu em ambas, em que pese, quanto ao último (trabalho livre) de forma reduzida e lenta. O trabalho livre fora naquela ocasião quase que expressão somente da imigração. Mas, o avanço que se verificou o processo capitalista no Brasil daquele período ocorreu osmoticamente com a intocabilidade da questão fundiária e que, teve por resultado — na sua leitura — o fenômeno de transição de vastas áreas antes escravistas a um regime de servidão e ou semi-servidão. Isso significou em outras palavras, uma conseqüente alteração das relações de trabalho escravo que ' evoluiu ' para uma outra específica que pode ser até admitida como livre, mas não necessariamente assalariada . Daí o fenômeno que resultou no fim da abolição, dissociado do equacionamento da questão fundiária em sua interpretação na Regressão Feudal, em uma relação de trabalho característica da servidão.

Como sinalizado, muitas dessas reflexões foram pautadas num primeiro momento na sua vasta experiência como militar que serviu em lugares distantes e isolados no Brasil dos anos 30 e posteriormente, na condição de intelectual, e que seria fundamentada com uma análise mais elaborada em que o autor operou com categorias marxistas, estando Werneck Sodré inserido no intenso debate político nacionalista dos anos 60. De qualquer forma, em muitas daquelas reflexões, Sodré demonstraria a factibilidade dessa tese pela presença de outras expressões daquilo que sinalizou como possibilidades de um feudalismo não codificado, expresso nas oligarquias regionais e locais, nas forças paramilitares, nas fazendas e currais eleitorais.

Curiosamente, nada sugestivo de sua ausência no Brasil ou mesmo da presença de aspectos correlatos à Regressão Feudal expressos ainda nos dias de hoje. Na medida que também encontramos formas de trabalhos entendidas como características do regime da servidão e paralelas àquelas, podemos sinalizar como servis ou próximas, outras similares nos centros urbanos e nas áreas rurais, já que o pagamento é em grande medida espécie ou nem isso (leia-se, não há relação monetária ou assalariada); podemos avaliar a hipótese de sua operacionalização — a Regressão Feudal — como uma das categorias factíveis na reflexão sobre o feudalismo no Brasil; sem deixar de mencionar a escandalosa existência de formas análogas de trabalho escravo no campo brasileiro ao longo do século XX.

Mas isso tudo ainda está presente na virada do século XXI quando a agenda política e social sugere que esta pouco se diferenciou daquela dos anos 60, em especial, quando percebemos a ausência de uma reforma agrária e a conseqüente manutenção do quadro fundiário; a lacuna de um debate sobre um projeto de nação associado a um componente popular; a presença do imperialismo atuando de várias formas, particularizando desta vez um olhar — ecológico ou indígena — sobre a Amazônia brasileira, bem como em outros setores da economia nacional; enfim uma agenda daquilo que Sodré denominou como um longo processo de uma fase histórica de nossa inconclusiva e necessária Revolução Brasileira. Uma idéia, um projeto nacional, democrático, um sonho de se batalhar e construir…

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