Ousar pensar, ousar sonhar e intervir são atributos cada vez mais raros entre os intelectuais, e poucos deles, na verdade, tem o compromisso de fazer contribuir o conhecimento para a transformação social. Nisto, alguns se destacam e acredito que Nelson Werneck Sodré foi um dos poucos que ousaram pensar o Brasil e procurar na apreensão de sua particularidade histórica, a elaboração de uma teoria de revolução com o objetivo de superar nossas debilidades neocoloniais.
A obra de Nelson Werneck Sodré é vasta e coerente, apresentando 56 títulos e milhares de artigos desenvolvidos historicamente e paralelamente — na condição de um intelectual engajado e de militar que deu baixa com a patente de General de Brigada. Nada isento de críticas e polêmicas, mas esta dupla relação vocacional sempre foi mediada pela política. Como tenente — na perspectiva ética e à esquerda do tenentismo — , observou a criação da ANL (Aliança Nacional Libertadora) nos anos 30 e, posteriormente, já como militante esteve engajado nas causas nacionais e socialistas; como autor consagrado de vários livros, contribuiu na teorização e no debate político nacionalista dos anos 60, ainda que isso tenha significado o fim de sua carreira militar.
Sodré atuou no pós-64 como um personagem decisivo na resistência à ditadura militar. Não há como negar, ele pagou caro pela coerência de suas convicções, sendo inclusive preso em 1964. Posteriormente, receberia de alguns radicais de ocasião — lembrando uma frase do escritor Antônio Cândido — a ignomínia presente em certos círculos acadêmicos que até se dizem de esquerda. Esta postura, bem pouco responsável de seus críticos, decorre de dois fatores umbilicais: o primeiro de uma vinculação histórica ao Partido Comunista Brasileiro e a segunda pelo fato de sua obra ser decorrente da elaboração de um militar outsider da universidade, e, portanto, da crítica autorizada que a universidade autoritariamente se credencia.
Sodré é um dos últimos representantes de uma geração de intelectuais públicos, formados extra-muros universitários, que atingia com suas obras parcelas significativas da sociedade — bem diferente da maioria dos intelectuais contemporâneos cujo exercício de suas atividades desenvolvem-se intramuros, desconhecida do grande público.
Percebe-se ser de boa hora colocar um debate sobre o autor e sua obra, nas várias possibilidades postas. Uma que penso venha ser determinante: a que recupera na polêmica de suas posições e no pioneirismo de suas teses, apreender um eixo de valorização de um componente axial do pensamento social brasileiro. E isto remete a uma outra proposição, que se insere a partir desta e de uma reavaliação de sua obra, em particular, que bem sinaliza para um outro aspecto de sua reflexão e de suas preocupações: valorizar o Brasil como projeto de nação. Nesse sentido, temos uma particularidade deste debate, no que é central em suas teses, o feudalismo; apesar de haver mais de uma dezena de sólidas referências deste debate — a maioria virtualmente antípoda uma das outras; em que pese, algumas teses sejam meras derivações.
Todavia, não deixa de ser instigante uma questão: somos capitalistas desde a colonização; ou quem sabe, o que prevaleceu desde 1500 foi um modo de produção pré-capitalista mercantil? Talvez possamos contabilizar uma terceira variante e que remete a uma especificidade: tivemos um modo de produção escravista colonial. Mais recentemente, apareceram análises sobre uma possibilidade de termos tido um capitalismo tardio, ou mesmo hipertardio.
Curiosamente, um virtual consenso ideológico foi construído em algumas universidades quando da rejeição do feudalismo como uma possibilidade concreta no país, ou mesmo algo factível historicamente, em particular no pós 64.
Poucos intelectuais foram identificados e, de certa forma, penalizados com este conceito, via de regra, também quase nada compreendidos quanto à sua correta formulação como aconteceu com Nelson Werneck Sodré.
Mas ao nos depararmos com formas escravistas ainda presentes no cenário rural brasileiro, e não necessariamente em regiões isoladas, e também próximas das áreas mais ricas do país; é sugestivo pensar que a discussão dessas formas de exploração escravista remete conceitualmente para sua factibilidade e os mesmos ganham um NEO ou uma adjetivação à frente (neo-escravismo ou escravismo da dívida), como se essas formas se diferenciassem substancialmente das antigas.
Paralelamente, o conceito de feudalismo também é retomado em muitas análises recentes; seja por um lado, ao referirmos ao modo de vida de determinados enclaves de setores da classe média urbana; ou por outro, nos muitos exemplos de relações de trabalho análogas às relações de servidão — como o trabalho por casa e comida muito freqüentes no campo e nas cidades nos últimos tempos, sem salário ou salário irrisório abaixo do mínimo. Mais recentemente, o filósofo Antônio Negri sinalizou o fenômeno da refeudalização como uma possibilidade concreta em desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, evidentemente, com outros pressupostos.
São muitas as possibilidades de apreensão desta polêmica no processo histórico e contemporaneamente, mas é a partir dos anos 50 que encontramos a intelectualidade brasileira expressando um marxismo como razoavelmente autônomo em relação às variantes originadas da Internacional Comunista. Nesta polêmica, dois nomes se destacam: Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, ambos historicamente vinculados ao PCB, mas com trajetórias diferenciadas neste processo. O curioso é que Sodré também se destacou particularmente pelo papel que desempenhou na formulação da orientação política da frente única, sem, no entanto, ter ocupado posições dirigentes no PCB. Em razão disso e da subsequente derrota com o golpe de 1964, alguns setores políticos e universitários procuraram valorizar as teses de Caio Prado Jr. , e ignorar, em grande medida, as geniais intuições de Sodré.
A despeito dessa resistência em debater essas questões, suas obras tiveram um vigor considerável, sendo objeto de sucessivas reedições sinalizadas em três livros referenciais — Introdução a Revolução Brasileira, 1958, Formação Histórica do Brasil, 1962 e por fim, História da Burguesia Brasileira, 1964.
Mas, fundamentalmente, foi o conceito de feudalismo como uma transposição do modelo europeu que ficou identificada equivocadamente como sendo o pensamento do autor. Não somente este aspecto, pois há outros.
Outros aspectos muito criticados e pouco debatidos podem ser observados na polêmica categoria de nação, associada na obra de Sodré a um caráter evolutivo e processual da etapa burguesa no processo revolucionário brasileiro. O historiador igualmente apontava para o papel do latifúndio e do imperialismo como obstáculos no desenvolvimento econômico nacional. Daí as polêmicas provocadas ao advogar a tese de que frações da burguesia poderiam se situar no campo revolucionário de um cenário “antiimperialista e democrático”, na medida que projetava um desenvolvimento capitalista autônomo no Brasil.
Especificamente, o ponto mais polêmico de toda a discussão é a chamada regressão feudal, que caracteriza o processo de passagem do trabalho escravo ao trabalho livre. Isso tudo foi interpretado como teses que tinham a fundamentação teórica da política do PCB. Na verdade, essas teses — Feudalismo, História Nova, Exército Democrático, Burguesia Nacional, entre outras —, já eram pioneiras e originais, anteriores à sua aproximação com o marxismo, mas seguramente elaboradas numa perspectiva da questão nacional.
O feudalismo foi, sem dúvida, o objeto maior de tensão entre suas formulações, particularmente no momento em que estabeleceu uma presença mais próxima com o debate marxista.
Sodré chegou mesmo a advogar a tese de um capitalismo mercantil, sem muita fundamentação e, a partir dos anos 60, o autor reencontrou a concepção de um modo de produção feudal no Brasil, algo que apreendeu em suas andanças pelo interior, no exercício de suas funções militares, e que daria uma nova substância teórica com autores marxistas renovadores. Ou seja, embora já fosse do PCB, desenvolvia todo um conjunto de reflexões autônomas à política do partido, dessas teses ele nunca abdicou.
Nos anos 90, em um de seus últimos trabalhos publicados, Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil, Sodré nos apresenta mais uma vez o significado do feudalismo em nosso processo histórico. Inicialmente, Nelson Werneck Sodré valoriza neste trabalho contemporâneo, a antiga polêmica sobre a questão, e, mais uma vez, não admite a possibilidade de o capitalismo ser uma realidade advinda do início da colonização no Brasil. Sempre afirmou que não havia uma possibilidade na perspectiva de termos um capitalismo anterior aos próprios países capitalistas.
Na sua interpretação, se o Brasil era um país capitalista desde o século XVI (como muitos intelectuais advogavam), ele argüía como era espantoso que tivéssemos estudado a revolução francesa (século XVIII) ou mesmo a revolução inglesa, cuja primeira etapa datava do século XVII e éramos capitalistas antes dos franceses e dos ingleses.
Nesse sentido, como um argumento em contrário, tínhamos então uma burguesia que era classe dominante na fase colonial e que antecedia historicamente também a burguesia francesa e a burguesia inglesa. Para Sodré, isso era uma deturpação do marxismo e, lamentavelmente, corrente no ensino no Brasil. Ao mesmo tempo, sinaliza o absurdo da concepção de que tais conceitos e categorias façam parte do marxismo, e, particularmente, a tese principal: o capitalismo brasileiro originar-se já na fase colonial.
O autor recupera, mais uma vez, a tese da existência de uma particularidade histórica brasileira, configurada na presença de relações feudais e vem inclusive a admitir a existência de restos feudais contemporâneos em nosso processo histórico, o que, de forma alguma sugere ser uma transposição de um modelo clássico — como pode se verificar em alguns outros autores, a exemplo de Alberto Passos Guimarães que aponta o modo de produção feudal como uma característica presente desde o descobrimento do Brasil, secundada economicamente pelo escravismo, debate este que adquire contornos variados e diferenciados ao longo de nossa história.
O historiador admite que a existência de realidades tão diferenciadas refletia-se, ao que parece, em graus variados, na estrutura política e administrativa, e principalmente, nas relações sociais entre as pessoas livres, ao trabalho livre e nas formas particularizadas daquilo que poderíamos chamar de relações de servidão, presentes em alguma medida em nossa história.
É nesta perspectiva que se pode apreender em sua obra, o conceito de feudalismo e sua originalidade como pensador, significando propiciar uma nova substância diferenciada dos clássicos. Sodré até poderia dar outra interpretação àquilo que denominou áreas secundárias, mas, conceituando-as como feudalismo, dissocia-se também das pontuações de uma interpretação marxista e, portanto, das teses da Internacional Comunista e do modelo democrático burguês, que, em geral, é associada à fundamentação das teses do autor.
Em que pese a sintética exposição sobre a questão, sua reflexão teórica posterior — como pensador marxista — terá como expressão mais elaborada de feudalismo, e como referencial de sua tese no Brasil, um autor que Sodré foi igualmente pioneiro em apreender: Mariategui.
Não há dúvidas, de que esse aspecto já era uma polêmica processual e em construção em sua obra, e tais tensões e impasses teóricos ainda estarão presentes até 1958. Foi a partir daqueles apontamentos e aquela experiência que propiciaram ao autor elementos de reflexão para se pensar Revolução Brasileira como categoria de análise. Este é um outro debate, mas é seguramente o desafio atual.
Patriota, revolucionário. Não é apenas um teórico, mas uma das personalidades que erigiram o pensamento brasileiro.