Com muito alarde, seguido de Medida Provisória assegurando o estilo administrativo pós-64, a gerência petista aprovou o maior volume de “esvaziamento” de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), instrumento inventado em 1966 para suprimir (vinte anos depois de constitucionalmente assegurada) a estabilidade no emprego.
Para que o capital financeiro tenha mais liberdade em manipular até mesmo os miseráveis depósitos que substituíram as indenizações e passaram a garantir a alta rotatividade da força de trabalho, o montante de uso permitido do FGTS é o maior dos últimos dez anos: R$ 6 bilhões para 2004, dos quais R$ 3,6 bilhões serão destinados à “habitação popular”. O restante irá para saneamento básico (R$ 1,8 bilhão), operações especiais (R$ 450 milhões) e infra-estrutura de transporte urbano (R$ 150 milhões).
Em tese, o combate ao déficit habitacional para todos os trabalhadores brasileiros significa um investimento de R$ 13 bilhões anuais, durante vinte anos consecutivos. Isso representa um investimento total de R$ 260 bilhões para 94% das moradias destinadas às famílias que recebem até cinco salários mínimos.
Observadores do mercado imobiliário e da construção civil alertam que a notícia de aplicar mais dinheiro em 2004 do que em 2003 não assegura o acesso ao financiamento da casa própria. A burocracia, as restrições e os juros cada vez mais altos que o governo impõe desmascaram o caráter do crédito. Além disso, apostam que a população de baixa “renda” (até R$ 2 mil) encontrará mais dificuldade para o financiamento, mesmo que a Caixa Econômica Federal (CEF) tenha aumentado o crédito para 70% do valor de um imóvel usado. O de maior valor financiado por essa linha é de R$ 62 mil. Crédito máximo: R$ 43 mil. E o comprador terá de entrar com R$ 19 mil de recursos próprios.
Perfil empobrecido
O déficit habitacional no Brasil (para os cálculos oficiais) passa de 6,6 milhões de moradias. Em 2003 o governo programou o financiamento de 185.652 imóveis a um custo de R$ 2,89 bilhões. A meta também não foi atendida. O financiamento real foi de 145.585 imóveis. Quanto ao custo, que ficou em R$ 2,15 bilhões (este sim), foi coberto pelo FGTS contra R$ 362 milhões da Caixa Econômica.
O Perfil dos municípios brasileiros/2001, lançado em fins de 2003 pelo IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), contraria os estudos anteriores. A pesquisa, baseada em dados fornecidos pelas prefeituras, informou que já existem favelas em 23% dos 5.560 municípios brasileiros. Pior, o Ministério das Cidades garante que 85% destes 5.560 municípios comportam favelas e outras moradias em condições tão ou mais precárias. E os dados do Ministério são resultado de estudos sobre o Censo 2000, realizado pelo próprio IBGE.
Nos municípios com população superior a 500 mil habitantes, os pesquisadores registraram um crescimento de até 370% no número de domicílios cadastrados em favelas, entre 1999 e 2001.
As tais parcerias
Segundo o ex-ministro Olívio Dutra, “Nunca vai haver recurso suficiente num orçamento, nem da União, nem de estados, nem de municípios”, prevê, recomendando somar os recursos dos três orçamentos, municipal, estadual e federal, mais aplicações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), aos recursos da iniciativa privada e os externos. Tudo dentro de um marco regulatório para garantir o interesse social ou a parte (privada) do leão.
A perniciosidade das propostas do atual regime social e político para solucionar a questão da habitação e, ainda, quando se acrescenta a condição semicolonial, como no Brasil, é flagrante. Não é a habitação que resolve a questão social, mas é a solução da questão social (colocar nas mãos do povo trabalhador os grandes meios de produção e promover a independência nacional) que tornará possível resolver o problema da habitação.
Mas, justiça se faça, o governo não disse que pretende resolver seja lá o que for, ou, se quis dizer não conseguiu. O enunciado envolve: 1) afirmar que combaterá o déficit habitacional; 2) tornar permissível o saque de maiores volumes do caixa do FGTS; 3) contratar o capital externo para a cruzada da habitação.
É lógico que: 1) já disponibilizou o dinheiro sem dar a conhecer como vai devolvê-lo; 2) já começou errando nos cálculos; 3) não explica o desempenho das “parcerias”…
O advento do FGTS — suaves prestações depositadas para amortizar indenizações ínfimas correspondentes às futuras demissões de cada trabalhador registrado, obrigado a “optar” pelo Fundo desde o momento em que é contratado — contribuiu para inacreditáveis rebaixamentos dos salários e aumento do desemprego no estilo “rotatividade de mão-de-obra”, bem como a fabulosa elevação dos lucros do grande patronato.
Entre os setores mais favorecidos pelo FGTS está o da construção civil. Ela, por absorver grande número de trabalhadores na primeira etapa de uma obra, desde então, pode dispensá-los num segundo momento sem grandes despesas. Não sem antes se beneficiar dos depósitos do FGTS na Caixa Econômica. Coincide que os poderosos grupos do setor, entre as atividades mais inocentes, constroem, negociam imóveis e administram aluguéis.
O direito ao relento
A favela dos barracos de madeira e telhados de zinco, cantada em versos, românticos ou realistas, apareceu no tempo em que o êxodo rural se agigantou e os camponeses afluíram para cidades como o Rio de Janeiro, enquanto as habitações operárias eram destruídas em massa no Corte do Cantagalo, Vila Isabel, Tijuca, Jacarepaguá, na Praia do Pinto (Leblon) e até Campo Grande.
Gente que passou a infância na antiga favela da Praia do Pinto, que na década de 50 era considerada uma das maiores do Rio de Janeiro, acabou removida para a Cruzada São Sebastião — um conjunto habitacional construído em 1956 com financiamento da Igreja Católica — para que mais tarde o espaço se prestasse à especulação imobiliária, que lá implantou condomínios de luxo.
O engenheiro Manuel Francisco de Januário, ex-presidente da associação de moradores da Favela do Parque da Cidade, na Gávea, recorda que o governo simplesmente proibia a construção de casas de alvenaria na favela: “Havia morador que até tinha condição de fazer seu barraco de tijolo, mas não podia. E a casa de quem desobedecia era demolida. A lei era para valer e deu até em morte. Tinha uma tal de PV (Polícia de Vigilância) que tomava conta de tudo. Eles eram violentos e abusados, só vinham na hora em que os homens estavam no trabalho. O uniforme parecia até o da Gestapo.”
O Censo de Favelas de 1950 revelou que quase a metade dos 35 mil barracos na cidade eram feitos de paredes de madeira, cobertura de zinco e chão de terra. Havia outros tipos de materiais, como a telha, o papelão e até a palha, e o texto de apresentação do volume registrava:
A imprensa e o teatro em suas charges incumbiram-se de popularizar a bizarra arquitetura dessas habitações primitivas que apenas se diferenciam das residências do interior brasileiro pela extrema heterogeneidade dos materiais que a compõe. Na maioria, constam de um ou dois pequenos cômodos, com piso de terra, cimento, madeira ou de composição mista, fechados por tela, tábuas de caixotes, folhas usadas de zinco ou de latas, palha ou uma cobertura mista.
Manuel Francisco Januário recorda que, em determinado momento, o povo se revoltou: “O guarda 30 morreu em pleno Largo do Boiadeiro (na Rocinha) com um tiro à queima roupa e furado de peixeira.” Explica: só depois que terminou o governo Carlos Lacerda (1960-65), no antigo estado da Guanabara, “as coisas se acalmaram”.
A proibição de construir casas de alvenaria nos morros do Rio devia-se, na verdade, a um decreto que começou a valer a partir dos anos 50 e ganhou força durante o gerenciamento militar. O principal temor era de que o uso de tijolo garantisse aos moradores a propriedade definitiva das terras. Além disso, a grande maioria dos desabrigados havia se estabelecido em terrenos particulares ou da União. Para efeitos legais, a madeira e o estuque representavam um tipo de moradia temporária, mais fácil de remover do que colocar abaixo paredes de concreto.
Figura tradicional no Morro de São Carlos, no Estácio, o barbeiro Luís Nogueira, 86 anos, contou: “A gente vivia sob ameaça de remoção. Para construir com tijolo só pedindo autorização na polícia. Mas quase ninguém conseguia porque eles faziam um monte de exigências”, explica.
Terminada a fase da repressão do Exército e após o esvaziamento da política de remoções nos anos 70, as casas de alvenaria, aos poucos, passaram a dominar o cenário nos morros cariocas.
Já o Banco Nacional da Habitação (BNH), criado para financiar a casa própria com recursos do FGTS, foi um fracasso total. Tendo como agente financeiro a Caixa Econômica Federal — e como alicerce as cadernetas de poupança, juntamente com as mágicas das letras imobiliárias e a correção monetária —, suas iniciativas frustraram a classe média de Norte a Sul.
Este ano, pelo menos 200 mil mutuários terão que renegociar os contratos habitacionais assinados sem cobertura do Fundo de Compensação das Variações Salariais (FC VS). A projeção é da Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação (ABMH). Segundo a entidade, esses mutuários teriam os contratos quitados neste ano, mas não é o que vai ocorrer, já que a maioria desses financiamentos chega ao fim com resíduo que representa quase o valor de dois imóveis. A entidade recorre à Justiça para não perder o imóvel, que poderá ser levado a leilão por falta de pagamento.
Eis como a circulação de capital, do trabalho tomado a outrem, cria a ilusão da “casa própria”.
Não existe refúgio
José Moreira Chumbinho
A prosperidade do monopólio imperialista reside na expropriação do excedente do trabalho fabril, a parte não paga ao operário, que é dividida entre os monopolistas estrangeiros e nativos na indústria, no grande comércio atacadista, sem esquecer os banqueiros, a oligarquia latifundiária e o restante da vadiagem. A sua circulação nada mais é que novamente a expropriação do trabalho alheio, sob os nomes de renda da terra, lucro comercial, juro de capital, impostos etc.
O capital monopolista, ao visar a terra, usa como seus tentáculos os especuladores nacionais, os latifundiários rurais e urbanos, além do aparato burocrático. Alcança o proprietário de uns quantos meios de produção sufocando-o com impostos (convertidos em juros) e demais artifícios de pilhagem, indo até ao gangsterismo. Ele expropria a terra inculta e a cultivada, as propriedades que têm benefícios, as terras públicas e o que encontrar, exercendo a mais exacerbada cobiça e usura que viram regra social e legislação.
Romantismo cruel e realismo
Há cem anos, já se concluía que a crise da habitação afetava profundamente, não apenas o proletariado, mas todas as classes oprimidas. Em economia política há um princípio que diz ser a privação de alimentos tão difícil de suportar, que ela só ocorre depois de ter havido muitas privações anteriores. E nesse ponto elas se agravam simultânea e ininterruptamente nos três aspectos da adaptação do ser humano ao meio geográfico: alimentação, vestimenta e moradia. Expulsos das melhores áreas, os verdadeiros construtores recorrem aos terrenos alagadiços, às encostas dos morros, aos morros, onde as classes dominantes não gastam um níquel em saneamento. É o refúgio possível com toda inquietação que lhes causam o esgoto a céu aberto, as alagações, os desabamentos, a repressão injustificada, a difícil obtenção de água potável, de iluminação e transporte; a vida por um fio. No entanto, assalariados e inquilinos do capital monopolista.
Dono de um papel
O pauperismo das massas é o habitat do capital monopolista e o destino a que não fogem os contingentes sempre maiores da sociedade com os seus respectivos imóveis expropriados, que passam a ter de seu apenas um papel, lembrança de uma residência de fato. Nos tais financiamentos, os assalariados pagam renda ao investidor, via órgão governamental de “crédito”, durante vinte anos, período em que o imóvel vai se desvalorizando, por deterioração, por manobras habilidosas de especulação imobiliária etc.
O honrado especulador se apropria de um terreno público, subsidiado pelo órgão de crédito do governo e cuja edificação faz aumentar o valor do solo sobre o qual o especulador passa a receber renda (que aumenta mais do que os salários). Evidente, o grande rentista, a priori, sabe que o mutuário, em geral, se torna inadimplente em questão de meses. O órgão público que diz financiar o imóvel, cúmplice do desemprego e do pauperismo, exige do candidato a mutuário comprovação de “renda” (salário) compatível, devidamente investigada. Ao cabo de alguns meses, vencido pela desvalorização do seu trabalho, o mutuário, legal ou ilegalmente, transfere o imóvel usado para outro futuro “inadimplente”.
Portanto, a renda do especulador não está condicionada às possibilidades de um determinado mutuário. Ao contrário, de forma habilidosa o capital financeiro, via cofres públicos, recolhe dos mutuários (associados doadores de rendimentos majorados) prestações corrigidas, cujo contrato volta ao ponto de partida no processo de inadimplência.
Restituído o capital investido (mais rapidamente quando se trata de empréstimo do exterior), ao qual se soma o lucro, o investidor prospera e o pelego garante sua vaga na máquina estatal.