Às vésperas da Copa do Mundo o Jornal do Brasil publicou um quadro com o que seriam os dez melhores comerciais televisivos envolvendo o torneio. Uma breve análise da lista não deixava esmorecer a certeza de que o futebol não é exceção à regra do capital de transformar em mercadoria tudo o que encontra pela frente.
Pior ainda: o que se vende em nome do futebol são produtos — ou idéias — que pouco têm a ver com o esporte. Entre os dez mais do JB, os comerciais associavam prazeres a refrigerantes e cervejarias, outros anunciavam as maravilhas oferecidas por bancos ou empresas de telefonia.
Outros dois anúncios eram de empresas fabricantes de materiais esportivos. Um deles tentava vender produtos da transnacional alemã Adidas.
A peça publicitária mostrava um grupo de consagrados jogadores — pagos para calçar chuteiras com as três listras da marca — disputando uma partida de futebol com alguns meninos num cenário que sugeria um campo de várzea na periferia de algum país da América Latina.
Jogadores milionários e crianças miseráveis se divertiam e jogavam de igual para igual até que, de repente, uma mulher surgia de uma varanda e ordenava que seu filho fosse para casa. Ainda que a contragosto, o garoto pega a bola e vai embora, obedecendo a sua mãe.
Fim do jogo, com direito a feições contrariadas dos outros meninos, mas também dos atletas famosos que, péssimos atores que são, esmeravam-se na decepção autêntica da experiência lúdica interrompida. A seguir, a mensagem não poderia ser outra. "Nada é impossível".
O comercial não faz nada além do que rezam os princípios da publicidade, criando ilusões de igualdade, proximidade e, principalmente, de poder — com direito ao mais alto nível de dissuasão que o dinheiro pode comprar junto às mais gabaritadas agências de publicidade do mercado.
Mas como falar em poder se, sob a ótica da Adidas, os meninos pobres da América Latina jamais deixarão de ser enxergados como potenciais trabalhadores baratos ou meros personagens caricatos de um comercial?
Diante deles, o impossível é um conceito demasiado presente e cruel para ser usado como slogan na venda de bolas costuradas por asiáticos da mesma faixa etária.
Jõao da Adidas
Para a Adidas, no entanto, o impossível é uma idéia encarada com desdém. A empresa é tida como protagonista no desenvolvimento e consolidação de um modelo de gestão comercial e multinacional do esporte, bem como na transformação do futebol em um dos mais rentáveis espetáculos "midiáticos" da terra.
Assim, investiu muito dinheiro na mercantilização do esporte e muito esforço no tráfico de influência destinado a manter o controle das instâncias esportivas internacionais em suas mãos.
O jornalista britânico Andrew Jennings investigou e descobriu, por exemplo, que o ex-presidente da Federação Internacional de Futebol João Havelange também é um produto Adidas.
Segundo as provas levantadas por Jennings, o filho do fundador e ex-diretor da multinacional Horst Dassler comprou votos de delegados indecisos na ocasião da primeira eleição de Havelange para a presidência da Fifa, em 1974.
Dois anos depois, em 1976, Havelange retribuiu entregando a Dassler o poder exclusivo sobre a comercialização dos principais eventos futebolísticos mundiais, outorgando todo poder à empresa de marketing ISL — criada a partir da Adidas — inclusive com direitos contratuais que garantiam o monopólio da gerência econômica do futebol até as três décadas posteriores.
O mesmo artifício da compra de votos teria acontecido em 1998, quando Havelange elegeu seu braço direito, o suíço Josef Blatter, como seu sucessor no cargo que abandonava depois de quase duas décadas de mandos e desmandos. Dessa vez um herdeiro de Horst Dassler teria estado à frente das negociatas. Antes disso, ainda durante a gestão de Havelange, o próprio Dassler, antes de morrer, articulou para que Blatter, seu homem de confiança, ocupasse o cargo de secretário geral da organização.
A Adidas garantia assim, durante décadas, sua influência sobre a Fifa, esta todo-poderosa entidade sobre a qual o escritor uruguaio Eduardo Galeano disse certa vez que seria o FMI do futebol.
Essas e outras peripécias praticadas no âmbito da entidade reguladora do futebol mundial estão descritas do livro Sujo! O Mundo Secreto da Fifa, escrito por Jennings e lançado na Europa no último mês de maio.
O autor desnuda em 462 páginas uma organização mafiosa que, de braços dados com meia dúzia de transnacionais, instaurou a era do futebol-negócio, desfigurando em nível planetário a representação do esporte como importante aspecto cultural de celebração de identidades nacionais e regionais.
A Fifa entrou com uma ação judicial para impedir a circulação do livro, mas, diante das críticas, foi obrigada a voltar atrás em sua tentativa de silenciamento.
O livro de Jennings vem abalar ainda mais o prestígio de Joseph Blatter e de toda rede de poder que construiu em torno de si, exatamente quando contava com a Copa do Mundo para fazer fumaça às acusações de responsabilidade nos escândalos de manipulação de resultados em vários países europeus.
Blatter está à frente de um grande negócio com possibilidades maiores ainda de já ter se transformado numa enorme máfia. Sua vida e sua maneira feudal de enriquecer com o cargo que ocupa foram retratadas no documentário Intocável, dirigido em 2004 pelo alemão Jens Weinreich, um jovem e obstinado jornalista investigativo do Berliner Zeitung.
Weinreich, que também é autor de vários livros sobre corrupção no esporte, lembra que uma das características do funcionamento da Fifa é a auto-suficiência, operando exclusivamente mediante suas próprias leis, cujo princípio maior é não recorrer a qualquer outra instituição para tratar de suas questões internas ou assuntos relativos ao futebol.
O senhor Blatter costuma dizer: "Se temos problemas em nossa família, resolvemos os problemas em família".
Uma frase que não ficaria mal na boca de algum dos mais caricatos personagens da literatura sobre a máfia.
"Amigos da rede Globo"…
Mas num setor cuja movimentação financeira ultrapassa os 50 bilhões de dólares anuais, cuja entidade máxima de regulação não divulga sequer os rendimentos dos 24 membros de seu conselho executivo, cujos principais patrocinadores são transnacionais fabricantes de produtos que nada têm a ver com a prática esportiva, nesse cenário, é mais natural do que espantoso que o mundo do futebol esteja mergulhado em fraudes, subornos, tráfico de influências, prostituição e racismo.
Segundo Jens Weinreich, o sistema favorece oportunidades de realização de negócios sujos. Ele diz que a combinação de esporte, política, mercado e meios de comunicação é um território maravilhoso para trapaceiros em todos os níveis.
A principal razão para o surgimento de tantos casos de corrupção é o fato de o futebol mundial ser um negócio multimilionário. É claro que isso não implica em dizer que se deve isentar as pessoas de suas responsabilidades individuais. Mas a corrupção no futebol é frequentemente apontada como um fenômeno restrito aos jogadores e dirigentes. É muito mais que isso. Os casos realmente grandes envolvem crime internacional, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e corrupção política.
Pouco antes do início da Copa do Mundo da Alemanha, a Transparência Internacional publicou um relatório sobre corrupção do esporte. A compilação de casos é extensa.
Na Itália, os torcedores que compram antecipadamente um lugar cativo nos estádios para assistirem aos jogos do seu clube durante todo o campeonato agora descobrem que foram passados para trás. A Juventus, clube de Turim campeão do último torneio nacional, foi para a segunda divisão devido a um esquema de fraudes nos resultados de jogos.
Entre os acusados de influenciar no placar a fim de garantir a vitória não no campo, mas nas casas de apostas, está o goleiro da seleção italiana, Gianluigi Buffon. O capitão da Squadra Azurra, Fábio Cannavaro — campeão da última Copa -, está sendo investigado por burlar contratos. Além da Juventus, outros clubes tradicionais como Sampdoria e Milan — propriedade do ex-primeiro ministro Silvio Berlusconi — também foram punidos.
Casos de resultados comprados por apostadores apareceram também na Bélgica, Portugal e na própria Alemanha, país organizador da Copa. No Vietnã, jogadores da seleção nacional foram parar na cadeia por participarem de esquemas semelhantes.
A prisão foi também o destino do árbitro Edílson Pereira de Carvalho, que confessou a manipulação dos resultados de 11 jogos do Campeonato Paulista de 2005 e outros tantos do Campeonato Brasileiro do mesmo ano.
Edílson conseguiu sua liberdade e escreveu um livro sobre os bastidores do esquema de apostas pela internet do qual participava.
Diante de tamanha desmoralização, a Fifa reagiu com um pitoresco sistema de alerta batizado de Fifa Early Warning System, uma espécie de agência especial para monitorar apostas "suspeitas" na Copa do Mundo.
Em 1993, no entanto, partiu da própria Fifa o projeto de sistema mundial de apostas capitaneada pela entidade, que seria chamada de Fifa Club (!).
As articulações frustradas para a implementação da gigantesca loteria contaram com as atuações de João "Adidas" Havelange, do presidente da CBF Ricardo Teixeira — alvo de CPI no Brasil — e da ISL, a empresa de marketing esportivo criada pela Adidas cuja falência em 2001 trouxe à tona um gigantesco esquema de propinas a altos executivos da Fifa, num lamaçal onde aparece até 45 milhões de dólares oriundos da TV Globo numa conta secreta em Liechenstein.
Território de trapaceiros
As contas da falida ISL, aliás, são objeto de uma grande operação de investigação por parte da polícia suíça. Jens Weinreich usa a ironia para resumir 30 anos de formação de quadrilha:
Os dirigentes da Fifa e os réus da ISL mantém boas relações… Mas não apenas os ex-sócios e ex-diretores da ISL são de casa. Empolgadas por pesquisas que indicam maior índice de confiança do consumidor em marcas que patrocinam eventos como a Copa do Mundo, 15 das maiores transnacionais do planeta não pouparam dinheiro para terem seus logotipos em lugares privilegiados nos estádios, bem ao alcance das câmeras.
Só com patrocínios, estima-se que a Fifa tenha arrecadado cerca de 300 milhões de dólares. A Adidas continua tendo papel preponderante na farra milionária — ainda que, hoje em dia, tenha a companhia da Nike no topo das transnacionais a comandar o esporte mundial.
No entanto, Jens Weinreich afirma que não há transparência nas contas e ressalta que boa parte dos bilhões de dólares que circulam anualmente nas mãos de dirigentes e multinacionais é dinheiro público.
— A maioria dos dirigentes e políticos ligados ao esporte sustentam que os patrocinadores pagam grande parte dos custos dos grandes eventos. Mas isso não é totalmente verdadeiro. Por que a Fifa e o governo alemão não disponibilizam um demonstrativo detalhado dos gastos com a Copa do Mundo?
Joseph Blatter, porém, há poucos dias da Copa, obrigou todos os participantes do torneio a assinarem uma declaração semelhante ao juramento olímpico, cobrando dos súditos a ética que não tem condições de pôr à prova.
O arroubo de Blatter em busca da ética esferográfica soa ridículo quando um alto dirigente da Fifa, questionado sobre o silêncio da entidade em relação à possibilidade de exploração maciça de mulheres no mercado de prostituição durante a Copa, respondeu com arrogância e autoritarismo dizendo que zelava pelo futebol, e não pela moral e pelos bons costumes.
Nem uma coisa nem outra. A Fifa zela, antes de mais nada, pelas condições propícias para que o futebol esteja cada vez mais à mercê do capital monopolista.
Hoje, os clubes são negociados nas bolsas de valores, e muitos jornais esportivos estampam em suas capas matutinas as cotações do encarramento do pregão do dia anterior. Leitores, torcedores, investidores, consumidores ou apostadores?
O treinador de Portugal, o técnico brasileiro Luis Felipe Scolari pode ser considerado o sinal dos tempos em pessoa. Além de estrelar uma campanha publicitária conclamando os portugueses a assistirem os jogos da seleção na maior rede de televisão privada do país, Felipão protagonizou também, há poucos dias da Copa, um comercial de uma operadora de cartões de crédito.
No filme, o técnico-propaganda dizia uma frase de efeito imediatamente associada às vantagens que a empresa assegurava oferecer. A curiosidade é que, no dia anterior, durante uma entrevista veiculada nos quatro cantos de Portugal, Felipão já dizia "espontaneamente" a frase do comercial que só estrearia poucas horas depois.
Na melhor das hipóteses, foi a mais rápida produção que se tem notícia de uma peça publicitária para a TV — desde o insight de um grande oportunista do marketing atento à programação esportiva até as gravações apressadas depois de reunir instantaneamente a equipe necessária para a proeza.