O velho pescador, pele curtida pelo sol, semblante fechado, conduz o cinegrafista pela Costeira do Pirajubaé, centro-sul da ilha de Santa Catarina. O olhar, límpido, às vezes se distancia. A câmera mostra casas de madeira, sem luxo mas sólidas e dignas,algumas já com sinais de desgaste. Nos planos do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF), órgão especializado da prefeitura, não há lugar para os pescadores na praia onde viveram seus avós.
“Há lugar — conta Elinton Lacerda, um dos realizadores do documentário Como um peixe fora d’água, produzido pelo Laboratório de Pesquisa em Imagem e Som (Lapis) do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) — para quadras de tênis, campo de golfe e marina para barcos de passeio. Especuladores compram os terrenos que os pescadores vendem ao preço da necessidade, depois que o local onde se reproduzia o camarão foi dragado para construir o aterro da via expressa que liga o sul da ilha ao centro”.
Durante décadas, os pescadores da Costeira abasteceram de camarão o Mercado Público de Florianópolis. Alcemir Martins, presidente da Aremar (Associação da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé), conta que entravam no bairro, em média, 10 mil reais por dia. Muitos viviam somente da pesca e da extração e todos dependiam delas. Agora, estão afogados em dívidas. Alguns mudam-se para o continente. Outros sobem os morros próximos dando origem a favelas.
Entre os mais jovens, o tráfico e o consumo de drogas explodiram. A Costeira é hoje um dos lugares mais violentos da cidade.
A força do dinheiro
Não se trata de um episódio isolado. Florianópolis vive a erosão de suas formas tradicionais de organização do espaço, decorrência da escolha da predação imobiliária como eixo principal da atividade econômica. O processo repete-se em outras praias: Jurerê, Ingleses, Santinho. As velhas habitações açorianas dão lugar a arranha-céus, mansões, hotéis de luxo.
Os ilhéus têm resistido dramaticamente. No fechamento desta reportagem, os moradores da Vila Santa Rosa, situada em um terreno pertencente à União e adquirido pelo Banco Santander, que o repassou a uma construtora, resistiam a uma tentativa de despejo.
Durante a discussão dos planos diretores de Ingleses e Santinho, as comunidades, com a assessoria do arquiteto Lino Peres, apresentaram propostas alternativas às do IPUF. Entretanto, a força dos interesses envolvidos tem feito com que prevaleça a perspectiva traçada por uma classe dirigente que passa, por ano, na ilha os três meses do verão: sua transformação numa espécie de Punta del Este brasileira.
Na Costeira, a extensão do aterro da Via Expressa Sul, que era de cem metros no projeto original — o que não causaria danos à reprodução do camarão — foi ampliada mais de seis vezes, por meio de uma emenda votada pelos vereadores na calada da noite.
O Costão do Santinho, resort cinco estrelas localizado no promontório da praia de mesmo nome, é alvo de um rosário de acusações do Ministério Público Federal, como invadir área de preservação ambiental e fechar o acesso à praia. O mesmo ocorre com o Florianópolis Shopping Center, às margens da Rodovia SC 401. Mais de 60% do território de Florianópolis é área de preservação sob jurisdição federal, mas a prefeitura, ilegalmente, fornece aos construtores as licenças que o IBAMA nega.
Da ganância ao colapso
A população e a atividade econômica sempre foram distribuídas de maneira homogênea em Santa Catarina. Florianópolis esteve assim, por muito tempo, a salvo de problemas comuns nas capitais brasileiras. Com a indústria espalhada pelo interior, suas funções eram as de sede administrativa e estação de veraneio. Nos últimos dez anos, a elite catarinense resolveu explorar a imagem de uma ilha da fantasia onde paulistanos ricos poderiam fugir daquilo em que haviam transformado sua própria cidade.
A taxa de crescimento populacional da ilha é hoje da ordem de 5% ao ano. Segundo o IBGE, ela contava, em 2005, 400 mil habitantes. A quantidade de turistas no verão aumentou de 200 mil, em 1986, para 580 mil em 2004 (números da prefeitura).
A cidade estruturou-se em torno de turistas e imigrantes ricos vindos de São Paulo, Porto Alegre e outros lugares. Tudo é feito para eles, nada para a população local — muito menos para levas de desesperados que chegam de todos os cantos do Brasil, em especial do oeste do estado e da região de Lages, atraídos pela miragem do emprego fácil. Algumas praias (Jurerê, Santinho, Canasvieiras) sofrem um claro processo de elitização. Outras, como Itaguaçu e a Laguna da Conceição, são poluídas por dejetos lançados ao mar. Além do colapso físico da ilha, ocorre o colapso do modo de vida tradicional da cidade.
A despeito do baixo nível de renda e atividade econômica, Florianópolis sempre havia proporcionado à sua população mais pobre uma vida muito melhor do que capitais como São Paulo, Rio ou Porto Alegre. Os salários eram baixos, mas o custo de vida também e o mar estava ao alcance de todos. Até há pouco, o comércio não funcionava aos sábados e domingos e fechava cedo de segunda à sexta. Todos tinham tempo para o lazer. Hoje, restaurantes, supermercados, padarias e outros estabelecimentos abrem à noite e nos fins de semana.
A gaúcha Nair, de 42 anos, trabalha como garçonete. Ela chegou à ilha há dezoito anos.
— Antigamente — conta — eu saía do trabalho e ia para a praia com meus filhos às quatro da tarde. Hoje, isso acabou.
O discurso oficial é o de que isto serve para gerar renda e “dar emprego”. Assis Firmino Martins, pescador da Costeira, responde:
— Meu pai viveu 92 anos e nunca trabalhou como empregado.
Acostumados à autonomia social de que desfrutavam nas antigas comunidades pesqueiras, os chamados manezinhos resistem ao incremento da exploração, o que lhes vale dos patrões — em sua maioria, imigrantes — a pecha de preguiçosos. Para contornar a resistência dos nascidos na ilha, os empresários recorrem à mão de obra vinda de fora.
A renda per capita do município cresceu (chegou a duplicar entre 91 e 96). Mas o percentual de pobres passou de 38%, em 91, para 43% em 2000, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O número de pessoas vivendo em favelas aumentou na exata proporção da quantidade de turistas: 21.393 pessoas em 1987, 61.445 em 2004. Estas cifras, no entanto, escondem uma situação ainda mais dramática: grande parte dos que chegam à capital catarinense não consegue ficar nela devido ao custo de vida, que explodiu.
Por causa do valor dos aluguéis, muitos vão morar em cidades da região metropolitana, como Palhoça e São José. Na grande Florianópolis, onde o sistema de transporte coletivo é um dos piores e mais caros do país, isto é sinônimo de desemprego.
Foi justamente o problema do transporte que unificou os setores espoliados por este processo e estampou pela primeira vez nos jornais uma outra imagem de Florianópolis: a de um povo em luta.
Filhos da Novembrada
Em julho de 2004, a prefeitura decretou um aumento médio de 15,6% no valor das passagens de ônibus, que já haviam subido 230% entre 97 e 2003. Secundaristas e universitários saíram às ruas para protestar e receberam a adesão maciça da população. Durante dez dias, estudantes e trabalhadores pularam catracas, ocuparam terminais, quebraram ônibus e fecharam as pontes que ligam a ilha ao continente. Três mil pessoas marcharam sobre a principal delas, a Colombo Salles. A prefeitura, encurralada, cancelou o reajuste.
Estes acontecimentos trouxeram à lembrança dos ilhéus um outro episódio, pouco conhecido fora de Santa Catarina. Em 30 de novembro de 1979, a repressão a um protesto de estudantes da UFSC contra a presença do então presidente Figueiredo na cidade foi a gota d’água para que explodisse a revolta da população contra a gerência militar, no que ficou conhecido como Novembrada. Os ilhéus expulsaram o general e sua comitiva no braço. Até hoje, esta história é contada com orgulho em Florianópolis.
A situação se repetiu em junho de 2005. Apostando no refluxo da mobilização, o prefeito Dário Berger decretou outro aumento (8,8% em média). Os secundaristas e o Movimento pelo Passe Livre (MPL) imediatamente saíram às ruas para protestar. Eles foram reprimidos com muito mais violência do que em 2004.
A repressão fez com que a revolta se alastrasse como rastilho de pólvora. Os bolsistas da UFSC, já mobilizados internamente contra a reitoria, fundiram suas bandeiras às de toda a população e se transformaram em uma das forças propulsoras do movimento. Logo foi a vez dos sindicatos — inclusive o dos Trabalhadores do Transporte Urbano de Passageiros da Região Metropolitana de Florianópolis (Sintraturb) e associações de bairro — agrupadas na União Florianopolitana das Entidades Comunitárias (Ufeco).
Foi particularmente alta a participação dos moradores dos morros. O Terminal Canasvieiras permaneceu bloqueado e as vias de acesso às pontes estiveram fechadas.
“Amanhã vai ser maior”
Uma das bandeiras da revolta de 2005 era a encampação dos terminais que estavam sob administração das próprias viações. Outra era a redução e unificação das tarifas, que variavam de R$ 1,55 (continente) até R$ 2,75 (norte da ilha). Após três semanas de batalha campal, a prefeitura cedeu às reivindicações.
Embora os empresários tenham conseguido, em fevereiro deste ano, emplacar um aumento no continente usando a unificação como pretexto (o valor foi fixado em R$ 2,00 em dinheiro ou R$ 1,75 para quem use cartão e a tarifa social, das linhas que atendem algumas comunidades pobres, em R$ 1,30 ou R$ 1,10) e ampliar o tempo de uso dos veículos, o saldo político é de vitória popular.
O desfecho das Revoltas da Catraca abre a perspectiva de construção de um programa que se contraponha ao atual modelo de ocupação e divisão do espaço da ilha. Na vanguarda do movimento, Sintratub e Ufeco já falam em tarifa zero e financiamento do transporte público através de impostos.
Significa também a derrota de esquemas de poder tradicionais (a família do prefeito é proprietária da viação Imperatriz; a de sua antecessora, Angela Amin, controla a Transol). O ciclo de lutas aberto pelas radicais alterações introduzidas na dinâmica de Florianópolis nos últimos anos põe em xeque a oligarquia local.
A resposta tem sido a repressão. É digno de nota, contudo, que a oligarquia não conta sequer com o apoio de todo o efetivo policial. A Associação dos Praças de Santa Catarina (Aprasc) participou das Revoltas da Catraca, inclusive ajudando a fechar as pontes e tomar a Câmara Municipal em 2004. Em 2005, lançou um manifesto repudiando o uso da polícia como instrumento de manutenção de uma ordem social injusta. Seu presidente, o sargento Amauri Soares, tem condenado sistematicamente o uso da instituição para reprimir movimentos populares.
Do final de 2005 a abril deste ano, estudantes, camponeses sem terra e sindicalistas uniram-se para protestar contra a condenação de Soares a oito meses de prisão pela Auditoria Militar. O sargento foi acusado de difamação por denunciar no jornal da Aprasc o roubo de equipamentos de direção hidráulica de viaturas por oficiais —, o que se comprovou ser verdade. No dia 8 de abril, o Tribunal de Justiça manteve a condenação.
Mas a repressão interna não é privilégio da PM. A imprensa catarinense também tem apertado o cerco sobre seus trabalhadores. O Diário Catarinense, pertencente ao maior grupo de comunicação do sul do país, a RBS, demitiu em fevereiro o fotógrafo Cláudio Silva. Ele havia registrado em sua máquina as imagens da repressão policial a uma manifestação contra o aumento embutido na unificação das tarifas no dia 16 de fevereiro. Silva foi preso e teve seu material destruído, mas o jornal optou por rifá-lo em nome do bom relacionamento com a oligarquia.
Caso semelhante ocorreu com Alex Antunes, cinegrafista da TV Floripa. Ele filmou estudantes sendo espancados por policiais durante a Revolta da Catraca de 2005.No dia seguinte, a direção da emissora recebeu a visita de representantes do sindicato patronal dos ônibus. As imagens passaram a sofrer censura interna e Alex foi demitido.
Ele levou consigo, porém, a fita com o registro da repressão. As imagens — que valeram ao cinegrafista o Prêmio Vladimir Herzog, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo — estão em um documentário produzido por ele e outros militantes e profissionais da área. O nome? Amanhã vai ser maior.