O programa do governo de Luís Inácio para combater a fome foi anunciado e, desde então, tem tido a mais ampla divulgação no Congresso e nos meios de comunicação em geral. Toda a população brasileira, e não só ela, tem tomado conhecimento disso. Polêmicas surgiram quanto à sua concepção e aplicação. Os grandes meios monopolísticos de divulgação — apelidados pelos convertidos de “mídia” e, que por sua própria natureza, são reacionários —, têm insistentemente divulgado e atuado na polêmica buscando reforçar a direção do programa de combate à fome, segundo os interesses das classes dominantes e das frações que representam.
A Igreja Católica, através de suas pastorais, se insurgiu contra o que considera formas de propiciar o clientelismo político e a corrupção. Alguns reclamam dos métodos, da vagareza e até mesmo das trapalhadas de ministros e altos funcionários em suas desencontradas declarações. O problema se acha naqueles que têm diferentes expectativas sobre o programa, que está em marcha e é o que é: a mesmice; o tráfico com a miséria do povo.
A fome no Brasil é o resultado do domínio continuado dos sistemas de espoliação e opressão secularmente vigentes no país. Antes, sob o jugo do velho colonialismo de Portugal, depois, com a independência em 1822, sob o semicolonialismo inglês que se desenvolve para o tipo novo capitalista-imperialista de dominação. Mais tarde, a partir da Segunda Guerra Mundial, a dominação semicolonial do país passa à hegemonia do imperialismo ianque. Tais sistemas de dominação do país sustentaram e mantiveram, até os dias atuais, sucessivos regimes de exploração, miséria e fome do nosso povo. Dizimaram a imensa maioria da população indígena, criaram e mantiveram por três séculos e meio, o mais odioso sistema de escravidão no país, engendraram e desenvolveram um capitalismo atrasado e burocrático, assentado sobre as bases podres do regime servil latifundiário, que tem condenado gerações de dezenas de milhões de camponeses sem terra à ruína e miséria completas. Dezenas de milhões de operários, sob o mais tacanho e aviltante arrocho salarial, ao crescente e massivo desemprego crônico, ampliando um contingente de milhões de párias, além de empurrar o país para a mais completa e abominável subjugação.
Portanto, este é um problema de fundo, estrutural, montado e sustentado a ferro e fogo por quase cinco séculos. Algo, muito além de estrepitosas campanhas, se faz necessário para erradicar a fome no país. E isto, por si só, basta para desmascarar toda demagogia do projeto de nome tão pomposo: Fome Zero. Como é possível a fome baixar a zero, hoje, neste país?
Os apologistas da fome chamam-na de “desnutrição crônica” e — embora milhões tenham suas vidas comprometidas por ela, embora muitos até se lancem na criminalidade para dela escapar, e dela muitos continuem morrendo em decorrência direta — já decretaram o seu fim. E há quem, astutamente, sentencie com uma ribombante exclamação: Fome zero!!!, ao mesmo tempo em que mantêm e renovam acordos criminosos e esfomeadores com os banqueiros internacionais. São os mesmos que propõem uma “reforma” da Previdência Social destinada a tirar da boca dos pobres para cumprir acordos que, antes, buscando notoriedade, condenavam. São os mesmos que propõem a “reforma” da legislação trabalhista para apaziguar o empresariado ganancioso, voraz e aprofundar ainda mais a cruel exploração que a classe operária (de onde se jacta ter vindo o presidente) e os demais trabalhadores se vêem submetidos. São os mesmos que propõem um salário mínimo de R$234, que cortam R$14 bilhões do orçamento nacional e os gastos sociais para adular a banqueirada que se alimenta do suor e do sangue do nosso povo, da dor e das lágrimas de nossas crianças, da miséria e penúria de nossos idosos.
Que “fome zero”, senhores? Onde?
Muitos argumentam que o PT, diferentemente de outros partidos burgueses, tendo origem na luta dos trabalhadores e mantendo vínculos com os movimentos sociais, não cairia na tentação do populismo e da demagogia barata. Mas, é preciso observar que o PT é um partido operário burguês que se propôs, através do sistema eleitoral vigente, assumir a gestão do Estado das classes dominantes reacionárias; que construiu sua trajetória na oposição, via radicalismo pequeno-burguês, a esse Estado, e agora se une a ele; se identifica com ele num momento particular de sua crise, em meio à situação mais grave que se desborda a crise mundial do capitalismo. As classes dominantes necessitam de novos meios para explorar mais o povo e, ao mesmo tempo, dar credibilidade às suas instituições para perpetuar a sua dominação. E contam com os aplausos dos agregados democratas de última hora e comunistas amansados.
Por um lado, nada mais conveniente que um partido deste tipo, com credibilidade para realizar as reformas necessárias, enfrentar a crise e manter o continuado domínio de tais classes, com a aparência da mudança. Por outro, a divisão profunda no seio das classes dominantes agudizadas pela crise não pode cessar sua pugna interna. Colocado nesta situação, arrastado cada vez mais para o topo do Estado, chamado e condicionado pelas esferas de poder do sistema de Estado burguês-latifundiário, cada vez mais assumirá a missão a que está destinado. Daí, que é próprio do oportunismo agir de forma oportunista. Frente a tão grave e dramático problema como é a fome em nosso país, colocar-se de forma tão publicitária e arrematada Fome Zero já cheira a demagogia. Fazê-lo, e manter toda uma política que é a causa estrutural da miséria e fome, já é puro oportunismo.
Claro que toda a cúpula do PT e as lideranças que o seguem sabem muito bem disto. Os iludidos e inocentes não pertencem às cúpulas nem às suas lideranças. O governo e o PT dizem: “O Brasil precisa mudar, o povo nos elegeu para fazer mudanças. A mudança está ao norte. Vamos para o norte, mas não podemos ir de um só pulo, é preciso dar alguns passos, fazer uma transição. Medidas amargas são necessárias para a transição. Aos afoitos pedimos calma e paciência. Então marchemos juntos, vamos para o sul”.
Os que a mídia reacionária e o próprio PT classificam de “radicais” se iludem (?) sobre qual sempre foi o ideal do PT ao opor-se à política do seu governo. Mas, o que são senão parte, partícipe do que é o PT? Será que eles não viam já de muitos anos que esse tipo de partido, com a política e direção que detinha, só poderia marchar nesse rumo? Por que se mantiveram nele, sem ruídos, até a campanha eleitoral, tão claramente definida de compromissos com a grande burguesia e todo o sistema imperante? Não passam de choro e esperneio seus reclames. O senhor Stédile, por exemplo, tido como proeminência da tal “esquerda” do PT, declarou que o governo Lula é ambíguo e que “a nossa relação com ele também é ambígua” (Resumen Latinoamericano, 09-02-2003). Stédile bradou alto na defesa do aumento da taxa de juros pelo Banco Central, certamente falou como economista: “conter a inflação”. Não há ambigüidade alguma, nem no governo nem na relação de Stédile. No fundamental, ambos são muito claros. Oportunismo puro.
Historicamente, no Brasil, a política da “esquerda” tem sido assim. O oportunismo serve a uma fração da burguesia na sua pugna com outras pelo controle do aparelho de Estado. Historicamente serviu, e agora serve, à fração burocrática. Os “governos do povo” (Getúlio, Juscelino e João Goulart) mantiveram sempre — na expectativa de mudanças — a miséria e fome do povo para assegurar sua exploração e a subjugação do país. Logo, a “ambigüidade” da tática de disputar o governo com a reação: apoiar o que é bom e combater o que é ruim. Assim tem sido a tragédia de nosso povo nos últimos 50 anos.
A máxima maquiavélica de que “os fins justificam os meios”, sintetiza toda a moral das classes dominantes reacionárias na história. Na verdade, os fins só explicam os meios. Primeiro se definem os fins, o objetivo, e logo se estabelecem os meios para alcançá-los. O oportunismo político se caracteriza por ser uma forma “envergonhada”, encoberta de praticar o primado maquiavélico, para fazê-lo passar por justo. O oportunismo é uma modalidade da moral, da ética, da política e ideologia da reação. O oportunismo e a reação têm a mesma essência e só se diferenciam na maneira de externá-la. O primeiro busca encobrir o que o segundo escancara.