No fim de setembro último ocorreu a extradição de Alberto Fujimori para o Peru, ordem decretada pelos magistrados da corte Suprema chilena. Esta decisão foi tomada pouco depois de completar um ano da prisão do ditador "peruano" na cidade de Santiago, capital do Chile.
Manifestações em Lima, capital do Peru
O ditador esteve detido sob a figura de prisão domiciliar em uma luxuosa mansão do exclusivo bairro santiaguino de Las Condes, onde realizou dispendiosos gastos que superaram um milhão de dólares.
A sentença da Corte Suprema do Chile, declarando procedente o pedido de extradição da Corte Suprema do Peru, teve uma longa história, na qual se amiúdam muitas marchas e contra-marchas, incertezas que estiveram acompanhadas, como pano de fundo, de problemas limítrofes entre as repúblicas latino-americanas do Peru e Chile, devido a interpretações parciais da tese sobre a soberania das 200 milhas marítimas, conflito jurídico internacional que será ventilado na instância internacional da Corte de Haya.
A extradição ocorreu num momento de debilidade política do governo de Alan Garcia Pérez, motivo pelo qual o APRA — Aliança Popular Revolucionária Americana (partido do governo) — entabulou ao nível do Congresso um pacto com o Partido "Sí Cumple" simpático ao ex-ditador, cuja principal porta-voz é a congressista e filha de Fujimori, Keiko Sofía Fujimori Higuchi.
O governo aprista concedeu como primeira prerrogativa ao ex-ditador a sua reclusão a um complexo policial, onde o único interno é Alberto Fujimori. Condições carcerárias totalmente distintas das que o ditador submeteu milhares de presos políticos.
A década do ditador
Em julho de 1990, Alberto Fujimori, um personagem opaco, completamente desconhecido pela maioria dos peruanos, foi ungido presidente da República do Peru, tendo ganhado no segundo turno eleitoral do novelista Mario Vargas Llosa, muitas vezes postulado ao Premio Nobel de Literatura.
O único mérito de Fujimori foi prometer que não aplicaria medidas de ajuste econômico, no marco das políticas neoliberais, cuja aplicação estava sendo implantada em grande parte dos países sul-americanos, diferente de seu adversário, que anunciou a aplicação de um pacote neoliberal.
Uma vez assumido o mandato presidencial, não se passou nem um mês e aplicou uma das medidas econômicas mais duras de toda história peruana.
Precisando de partido, fez aliança com o general do exército Nicolás de Bari Hermoza Ríos, utilizando o Exército peruano como seu verdadeiro Partido, além de se aproximar de um sinistro personagem, seu assessor Vladimiro Montesinos. Na década de 1990 este triunvirato foi quem realmente governou o Peru.
Uma das características do governo de Fujimori foi a aplicação de medidas neopopulistas, mediante as quais cooptou centenas de comitês de bairro, restaurantes populares e clubes de mães através de vultosas dádivas, umas vez que o poder do qual se viu revestido lhe permitia manejar as contas do Tesouro Geral da Nação do Peru, como se fosse um talão de cheques privado. Esta situação lhe facilitou a compra de uma série de dirigentes das barriadas mais pobres de Lima.
O golpe de 5 de abril de 1992
A debilidade de seu governo estava no fato de ser um conglomerado de personagens desconhecidos para a maioria dos peruanos, muitos deles saídos das igrejas evangélicas, o que obrigou a que seu partido de fachada daquele momento, o "Cambio 90", fizesse pactos com o APRA, acordos que não duraram dois anos.
Em 5 de abril de 1992, o ditador arrumou como pretexto para a inviabilidade do seu governo o fato de não contar com a maioria do Congresso Peruano, assim como a inviabilidade estatal frente ao incremento da influência sobre o território peruano da guerrilha maoísta do Partido Comunista do Peru, conhecido como "Sendero Luminoso".
Estas considerações foram arguidas para irromper com um golpe de Estado que levou ao fechamento do Parlamento peruano. Imediatamente foram outorgados poderes amplos ao Exército, o Serviço de Inteligência Nacional se infiltrou em todas as instituições do Estado e em diversas esferas da vida cotidiana nacional, inclusive nos espaços mais fúteis e inacreditáveis.
A política anti-subversiva de Fujimori
O golpe de Estado serviu para legitimar um conjunto de medidas repressivas para combater a guerrilha maoísta, entre elas estava a criação da pena de prisão perpétua, juntamente com a extinção de todos os benefícios penitenciários.
Uma das primeiras ações foi realizada entre os dias 6 e 9 de maio de 1992 ao permitir o ingresso das forças policias, muito bem abastecidas com armamento de guerra para reduzir os presos políticos da Penitenciária Miguel Castro do distrito limenho de Cantogrande. Depois fez um genocídio que acabou com a vida de 52 presos políticos, muitos deles indefesos, já que se encontravam completamente desarmados.
Dali em diante, durante toda a década de 90, aplicou uma drástica política penitenciária. Os presos políticos só tinham meia hora de saída ao pátio, permanecendo amontoados grande parte do dia em pequenas e escuras celas, nas estepes do altiplano do departamento de Puno, nas localidades de Yanamayo e Challapalca, em zonas superiores a 4 mil metros acima do nível do mar, onde prenderam em condições subumanas os presos políticos.
Os presos políticos eram privados de todo tipo de leitura que não fosse a Bíblia; tinham sérias restrições para ocupar os velhos e inadequados banheiros e a permissão de visitas próximas somente de familiares apenas uma vez ao mês.
Juntamente a esta draconiana política criminal, foi editada a Lei de Arrependimento. Uma lei com a qual se estimulou a colaboração de membros das organizações guerrilheiras em troca de sua liberdade o da atenuação de suas penas. A Lei Antiterrorista fujimorista, além de aplicar medidas extremamente repressivas como as mencionadas, conjugou uma série de elementos tomados da legislação antiterrorista alemã aplicada contra a guerrilha urbana das RAF1 e da legislação antiterrorista italiana aplicada contra as Brigadas Vermelhas2, da década de 1970, tais como a restrição do exercício da defesa legal. Cada advogado estava autorizado a defender somente um caso de delito por terrorismo, o que deixou sem possibilidade de defesa legal uma grande quantidade de processados pelo delito mencionado.
Paralelamente às medidas expostas, secretamente foi autorizado a criação de um grupo paramilitar chamado grupo "Colina", que cometeu uma série de assassinatos àqueles que discordavam do regime fujimorista. No ano de 1991, este grupo militar se introduziu rapidamente na escuridão da noite, na residência universitária da Universidade de La Cantuta, de onde retiraram ilegalmente oito estudantes e um professor. Eles foram assassinados e enterrados em uma vala comum, depois de terem os cadáveres queimados. Estes atos absurdos só foram descobertos muito tempo depois de terem acontecido.
No mesmo ano, o Grupo "Colina" invadiu um bairro pobre perto do centro de Lima, no populoso distrito de Barrios Altos, onde se realizava uma pollada — reunião festiva de solidariedade em uma casa, onde se distribui frango frito — assassinando e ferindo alguns dos participantes, inclusive crianças.
Muitas das atrocidades, crimes e horríveis ações do grupo "Colina" foram documentadas no livro Muerte en el Pentagonito: Los cementerios secretos del ejército peruano. O livro foi escrito pelo jornalista peruano Ricardo Ucedo (2004), Bogotá, Editorial Planeta. No livro se comenta que este grupo havia desenvolvido e refinado técnicas de desaparecimento, torturas, queima e pulverização de cadáveres.
Muitas destas ações são imputadas ao o ex-ditador. Sobre algumas delas pesam a exigência de investigação exaustiva pela Comissão Internacional dos Direitos Humanos, com sede na cidade de São José de Costa Rica, e são incluídas como delitos que servem de fundamento para a atual extradição de Fujimori.
O fim de Fujimori
A queda de Fujimori ocorreu após um paulatino desgaste de seu governo, ao tentar perpetuar-se no governo peruano. Nas eleições de 1995 e de 2000, das quais o ditador e seus assessores participaram, destacando-se seu Chefe de Inteligência, Vladimiro Montesinos, conhecido como o "Rasputin dos Andes", fizeram uso de uma série de rodeios que incrementaram as páginas dos mais sofisticados manuais de guerra suja eleitoral. Eles foram implacáveis contra seus adversários, os desprestigiaram sem piedade, a ponto de muitos deles darem provas de uma covardia que os distanciaram das arenas políticas definitivamente.
Sem dúvida, vítima de seus próprios ardis, a queda do regime fujimorista começou com a exposição de um vídeo pela televisão aberta peruana, em cadeia nacional, onde apareceu o assessor de Fujimori, Vladimiro Montesinos, comprando a lealdade de um congressista da oposição.
Apartir daí se descobriram mais de dois mil vídeos similares, no qual se revelou, diante da população peruana, em um fato sem precedentes, uma cadeia de corrupção onde estavam envolvidos políticos, artistas, donos de canais de televisão, profissionais diversos, jornalistas, militares, magistrados do poder judiciário e atletas.
A corrupção dos governos déspotas como o de Fujimori, e no caso deste governo tirano , não só foi deixada à reflexão, consciente ou especulativa de peruanas e peruanos, mas toda podridão se colocou à vista de todo o país e do mundo, de maneira tão dramática e escandalosa, poucas vezes evidenciada no cenário mundial, onde costumam concorrer as posturas hipócritas e acobertadas de grandes corruptos.
O obscuro assessor fujimorista, Montesinos, sua mão direita e o co-autor intelectual das páginas mais degradantes da história, coincide sem mais nem menos com o macabro personagem Cayo Bermúdez da novela Conversación en la Catedral, de Mario Vargas Llosa, novela da década de 60, três décadas antes do regime fujimorista.
Um ditador japonês no Peru
A falta de vergonha de Alberto Kenyo Fujimori não tem limites, sua fuga do país e seu posterior auto exílio no Japão, fez reluzir que o ditador não era só peruano, mas que também estava registrado como cidadão japonês, nacionalidade na qual se amparou para permanecer por mais de cinco anos no chamado país do sol nascente.
Ainda se especulam os motivos da sua viagem à República do Chile há mais ou menos um ano, cujo desenlace final foi sua posterior extradição ao território peruano. Sem dúvida, fiel ao seu cinismo sem precedentes, desde sua prisão domiciliar dourada no bairro de Santiago "Las Condes", anunciou sua candidatura ao parlamento japonês. Muitos assinalaram esta atitude como uma de suas atitudes para neutralizar o pedido de extradição. Sem dúvida, o que evidenciou foi a carência total de escrúpulos para reclamar sua nacionalidade, distinta da do país que governou durante mais de uma década, em que se erigiu como máximo mandatário, sem se importar em comprar vontades, aniquilar vozes dissidentes, pisotear a gente mais humilde e ordenar um dos mais horripilantes banhos de sangue no Peru.
Com seu regresso ao Peru, muitos analistas esperavam mostras da multidão de apoio a Fujimori, mas somente se mobilizaram 200 pessoas, número muito débil em relação à capacidade de mobilização que tinha o neo populista em seus tempos de glória. A verdade é que já não conta com um grosso talão de cheques para comprar lealdades de mercenários e jagunços sempre dispostos a seguir com fervor a melhor proposta.
Sem o aparato repressor do Serviço de Inteligência Nacional, sem o Exército peruano e sem dinheiro, a massa de aduladores fujimoristas tem se visto encolhida drasticamente e seu inócuo passo se faz em meio a toda essa cadeia de jornalistas, políticos e demais mercenários que hoje olham sem enrubescer a escória e a vergonha do passado recente da história peruana.
Notas da redação
1. RAF: Fração do Exército Vermelho. Grupo guerrilheiro da Alemanha Ocidental, fundado em 14 de maio de 1970 e dissolvido em 20 de abril de 1998. O movimento surgiu com a união de estudantes que participaram do maio de 1968 e postulava a libertação do país. A organização teve vários de seus líderes presos, mas continuou ativa por muito tempo. Ainda hoje existem três dirigentes da RAF presos e condenados à prisão perpétua.2. Brigadas Vermelhas: grupo guerrilheiro urbano marxista-leninista surgido na Itália, em 1969. Também tem sua origem ligada ao movimento estudantil de 68. O grupo foi bastante ativo e se propunha a reconstituir o Partido Comunista e levar a revolução adiante. Apesar da grande repressão a seus militantes e de diversas vezes o governo italiano ter anunciado o fim das Brigadas Vermelhas, elas permanecem atuantes no país.