Gás, mobilizações populares e o fantasma do autogolpe de Estado na Bolívia

Gás, mobilizações populares e o fantasma do autogolpe de Estado na Bolívia

O primeiro dia de fevereiro constituiu uma data no governo do Presidente Carlos Mesa. Foi como sua carta de apresentação diante da sociedade boliviana, mostrando sem subterfúgios como concebe a realidade boliviana e com que setores, tanto da Bolívia como do exterior, está comprometido. O pacote econômico, sendo apresentado com grandiloquência, demandou não fazer um discurso de improviso, e se remeteu melhor a uma leitura profunda dos instrumentos legais mediante os quais implementou suas medidas. Os decretos supremos e os projetos de lei demonstravam o real alcance das medidas econômicas.

Daí em diante, além dos discursos, a posição de Mesa é muito clara e se mostra cada vez mais aberta à defesa e à fidelidade aos interesses das transnacionais — principalmente no tema dos hidrocarbonetos —, pois uma vez descoberta a manobra sofista de querer acreditar que a propriedade do gás voltava às mãos do Estado boliviano com a derrogatória do Decreto Supremo 24.8061, é claro o seu alinhamento em defesa dos interesses transnacionais na Bolívia. A isto se somam todos os interesses ocultos que antecederam a entrega do Projeto de Lei dos hidrocarbonetos, que originaram em quase um mês a queda de dois ministros: Álvaro Rios e Antônio Araníbar2; sabe-se que estes ministros praticamente eram convidados de fachada nas múltiplas e intermináveis sessões que os funcionários do governo sustentaram com os representantes das transnacionais petroleiras American Oil Company-British Petroleum, Enron, Repsol-YPF — reuniões que sempre levaram a voz cantante do ex-ministro do Desenvolvimento Econômico e atual ministro dos Hidrocarbonetos, Xavier Nogales Iturri.

A designação, no mês de março, de Antonio Araníbar Quiroga como ministro dos Hidrocarbonetos realizou-se em meio uma chuva de críticas das diversas organizações sindicais do país, onde não estiveram ausentes críticas da Central Operária Boliviana, da Confederação Geral dos Trabalhadores Fabris da Bolívia, Federação dos Professores Urbanos e Rurais e nem do importante setor dos mineiros. Os diversos meios de comunicação, nem os dóceis ao governo de Mesa, muito menos os que se declaram oposição, tampouco mesquinharam críticas com tal eleição e descreveram, em muitos casos, a forma como Antonio Araníbar havia atuado no ano de 1993, quando exercia a função de Ministro de Relações Exteriores no governo de Sánchez de Lozada. Sua atuação ilegal na assinatura de um contrato que aceitava o marco de leis estrangeiras e não das leis bolivianas, referendou a validade de um contrato com uma instituição (Enron) que, em primeiro lugar, não havia ganhado nenhum processo de licitação e que, além disso, se beneficiou com a propriedade de um gasoduto que chegava até o Brasil sem haver investido nem um só centavo, obtendo benefícios de até US$ 130 milhões por uma inversão paga pela Petrobrás. Mesa não tirou a fala da trajetória de seu Ministro dos Hidrocarbonetos. Pelo contrário, em diferentes ocasiões reivindicou sua decisão manifestando, inclusive, que era uma honra para ele tê-lo em seu gabinete, um exemplar servidor público. A renúncia de Araníbar a quase um mês de sua designação explica muitas coisas, se unirmos a análise das frases de agradecimento de Mesa, posteriores a esta renúncia, e as declarações do mesmo Araníbar, que entre outras coisas revelou que sentia ter cumprido os objetivos que lhe foram encomendados e por isso se retirava com a satisfação de quem sente ter cumprido com o seu dever.

Agora está claro que Araníbar foi tirado de seus quartéis de inverno para assumir uma difícil tarefa, conhecida na gíria política como “ministro fusível”, pois há muito tempo já havia anunciado seu afastamento da atividade política. A missão deste proeminente ministro era, sem dúvida alguma, a de esclarecer as severas críticas vindas de diversos flancos, assim como uma espécie de “cavalo de Tróia”, permitindo que as críticas e observações se apliquem a uma pessoa, e não precisamente no tema principal, que é a política dos hidrocarbonetos, o negócio do gás, a propriedade destes recursos naturais, a relação com as transacionais — situações que devem ser reveladas no Projeto de Lei dos Hidrocarbonetos.

A suspeita da ressurreição política de Araníbar por nada pretende forçar a descoberta dos movimentos maquiavélicos no governo de Mesa. Pelo contrário, se avalizam com muita evidência com a suposta volta do governo a uma postura de “centro-esquerda”, como manifestou um solicitado analista político boliviano ao incluir no governo dois assessores do Movimento ao Socialismo, chefiado por Evo Morales: Horst Grebe (economista) e Ricardo Calla (sociólogo), intelectuais muito conhecidos nos âmbitos acadêmicos bolivianos, os quais desde muitos anos vêm lançando críticas ao modelo neoliberal implantado na Bolívia.

Paralelamente às tais designações e à renuncia de Araníbar, Mesa designa como verdadeiro gestor do atual Projeto de Lei dos Hidrocarbonetos e articulador do governo boliviano com as transnacionais Xavier Nogales Iturri3, possivelmente o homem mais poderoso do atual governo. Mesa emite o projeto de Lei dos Hidrocarbonetos permitido pelas transnacionais e muito formalmente declara que submete o mesmo ao debate público. Além disso, aproveitando o falso debate sobre a saída do gás pelo Peru ou Chile4, decide vender o gás à Argentina pretextando apoio a uma crise energética que vive esse país, com a condição de que a Argentina não revenda o gás ao Chile, pois parte da pressão no negócio do gás é que se acredite que este recurso energético seja a chave mágica que servirá para negociar com o Chile a recuperação da soberania marítima de parte do litoral que a Bolívia perdera numa conflagração internacional com este país em 1879.

Mesa está utilizando a suposta volta à “centro-esquerda” como cortina de fumaça para tomar decisões sobre a venda do gás e conseguir os recursos que lhe ajudem a encobrir o enorme déficit fiscal5. Afinal, o Projeto de lei dos Hidrocarbonetos já apresentado por Mesa, junto com seu novo gabinete ministerial, não menciona a situação dos 84 contratos que o Estado boliviano subscreveu a risco compartilhado com as transnacionais petroleiras sobre o negócio dos hidrocarbonetos, principalmente o do gás.

De fato, todos os deslocamentos táticos de Mesa se desgastam muito rápido para controlar a instabilidade política, social e econômica. Por exemplo, a Central Operária Bolívia (COB) — órgão sindical que aglutina todos os trabalhadores bolivianos dependentes, aqueles que trabalham em pequenos negócios, por conta própria, desempregados, associações sem aposentadoria etc — se reuniu num Ampliado Nacional de Emergência em 7 de abril, na localidade mineira de Huanuni, do departamento de Oruro. Naquele ampliado se resolveu convocar uma mobilização nacional de protesto para o dia 15 de abril, onde compareceu uma grande multidão. Naquele ampliado também se decidiu convocar uma greve geral por tempo indeterminado e uma onda de mobilizações a partir de 1º de maio. No mesmo sentido, os transportadores anunciaram uma parada nacional em 22 de abril. Além disso, existem permanentes mobilizações do setor de trabalhadores sem aposentadoria, denominado “Geração Sanduíche”, que vem ganhando maior força logo após a morte do ex-mineiro Eustaquio Picachuri6. Assim, continuam as tomadas de terras no Oriente, Ocidente e Chaco boliviano pelo Movimento Sem Terra, no entanto existe uma relativa tranquilidade na zona cocaleira de Chapare no departamento de Cochabamba. Os cocaleiros7 de Los Yungas, em La Paz, estão sendo ultimados pela embaixada norte-americana, que pressiona pela erradicação da coca nesta zona tropical. A todos estes protestos de organizações populares somam-se os pequenos comerciantes, que se manifestam contra o desaparecimento do regime tributário simplificado, e as universidades públicas, que exigem um orçamento maior. Todos os protestos têm como denominador comum levantar a consigna: “Gás para os bolivianos!” De certa forma, as diversas organizações têm encoberto em sua direção a COB, o que explica porque recentemente o governo desempoeirou o Estabelecimento Penal de Chonchocoro8. O sanguinário ex-ditador General Luis García-Meza Tejada, indivíduo que no juízo das suas responsabilidades manifestou que havia perdido a memória, agora retorna a arena política para dizer que a recuperou parcialmente e anunciou que o atual secretário executivo da COB, Jaime Solares, foi paramilitar em seu governo, de 1981 a 1982.

À instabilidade política, social e econômica somam-se os rumores dos golpes de Estado, há mais de um mês denunciados de semana a semana, primeiro por parte do Movimento ao Socialismo (MAS) e recentemente pelo próprio Carlos Mesa, que ao emitir um discurso, numa cerimônia de aniversário do Colégio Militar da Bolívia, falou de manter a estabilidade política. Neste evento não estava presente o Alto Comando das Forças Armadas. Nesta série de fatos, cabe perguntar a quem correspondem os 71% que apóiam Carlos Mesa segundo a pesquisa da Universidade Privada São Francisco de Assis9.

O certo é que as constantes contradições entre o Executivo e o Legislativo, as contínuas críticas de incompetência que Mesa lança ao Parlamento, as permanentes campanhas na mídia sobre os altos salários e provisões em dinheiro aos deputados e seus assessores, a pouca efetividade de seu trabalho e a forma como bloqueiam a aplicação das medidas de Mesa, mostram um panorama mais próximo ao golpe institucional ou autogolpe, permitindo que mesa governe a seu próprio gosto, baseando-se no bordaberrismo10, cuja referência mais próxima na América do Sul foi o autogolpe de Fujimori.

 


1 Há mais de dois anos o tema principal na agenda política boliviana constitui a referida ao gás, devido a descoberta de vários mega campos (San Alberto, San Antonio, Margarita e Itaú) com enormes reservas de gás no sul boliviano, na zona do Chaco (situada em parte dos departamentos de Tarija e Chuquisaca, na fronteira com o Paraguai), o que coloca a Bolívia, o mais pobre país da América do Sul, como segundo país com maiores reservas de gás, depois da Venezuela. Hoje o debate contempla a recuperação do gás, de propriedade das transnacionais petroleiras norte-americanas e européias, a industrialização e o negado recurso energético em solo boliviano.
2 Antonio Araníbar foi um dos fundadores, na clandestinidade, do MIR (Movimento de Izquierda Revolucionária), partido que em 1989 assumiu o mandato governamental. Formou o MIR Massas um rompimento do MIR, depois que o Movimento Bolívia Livre (MBL) postulou como candidato presidencial numa frente denominada IU (Izquierda Unida) e posteriormente penetrou nas esferas governamentais ao fazer uma aliança em 1993 com o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), que possibilitou a ascensão de Sánchez de Lozada a seu primeiro período presidencial.
3 Xavier Nogales Iturri tem uma velha trajetória ligada ao poder na Bolívia e antigas conexões com o Banco Mundial. No período 1993-1997 foi assessor do processo de capitalização na Bolívia (forma eufemística que designou o processo de privatização) durante a presidência de Sánchez de Lozada. Foi Ministro no governo de Jorge Quiroga Ramírez e também assessor do Banco Mundial.
4 Os diversos meios de comunicação bolivianos, em boa parte, têm assinalado que a política do gás na Bolívia se reduziria ao lugar por onde vai sair o recurso energético, criando, inclusive, uma alternativa entre Peru ou Chile. A meu juízo isto constitui um falso debate, pois evita uma multiplicidade de dimensões que tem a discussão do gás, entre elas a definição da propriedade do recurso energético (do Estado boliviano ou das transnacionais), a industrialização ou não do recurso a seus derivados em solo boliviano, o destino e o emprego dos excedentes do negócio, a reprodução do capital na Bolívia ou fora dela, entre alguns pontos que devem ser considerados.
5 O déficit fiscal alcança 8,9% do PIB. É muito alto se for levado em conta que a arrecadação tributária faz com que a economia boliviana tenha uma forte dependência dos recursos da cooperação internacional, como dos empréstimos dos organismos internacionais financeiros, sem os quais o Estado boliviano deixaria de funcionar.
6 (N. do E.) Os trabalhadores da “Geração Sanduíche” são responsáveis por um grande número de protestos, na forma de greves de fome, crucificações, acorrentamentos, mobilizações de ruas e tomadas do edifício da Direção de Pensões.Em 30 de março de 2004, o ex-mineiro de 47 anos, Eustaquio Picachuri Coñaca, suicidou-se, com bombas amarradas ao corpo, em frente ao parlamento, deixando dois policiais mortos e dez feridos.
7(N. do E.) Cocaleros: plantadores de coca. A coca é usada na medicina tradicional, para mascado, como remédio para vencer a fadiga e práticas rituais. Na Bolívia existem 28.450 hectares de coca, quando a Lei 1.008, que regulamenta o cultivo da coca, estabelece arbitrariamente que o cultivo máximo em todo o país é de até 12 mil hectares. A Lei foi baseada em um velho estudo feito na década de 70, no Peru.
8 Prisão de segurança máxima no departamento de La Paz, situada a mais de 4 mil metros.
9 Esta universidade tem quase 10 anos e nenhum lucro acadêmico de superioridade. Seus méritos alcançados são graças ao intermédio de alguns funcionários governamentais, contribuindo para que esta universidade administre um Instituto de Formação Pedagógica e a realização de pesquisas de popularidade pelos cargos do governo.
10 (N. do E.) Juan Maria Bordaberry, presidente do Uruguai de 1972 a 1976. Cometeu atentado contra a Constituição ao dissolver a Câmara Legislativa e mudar a forma de governo por meios não admitidos pelo Direito Público Interno. O ditador Borda-berry acompanhou, preparou e facilitou o governo militar. Os anos que corresponderam ao seu governo foram os mais cruéis e com inúmeros assassinatos.
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