Quanto vale uma vida humana?
Quinze mil reais é tudo o que receberam Joselias Souza Silva e D. Ondina, sua mulher, como indenização pela morte da filha, Thalita Malheiros de Araújo Lima, uma das 154 vítimas do choque de um Boeing da Gol com um jato executivo Legacy, da empresa ianque ExcelAire, no ano passado. Esse valor irrisório foi pago pela transportadora. De resto, nem o auxílio-funeral do INSS.
Em busca de indenização mais justa, 31 dependentes de 10 das 154 vitimas resolveram processar na Justiça do USA a ExcelAire e a Honeywell — proprietária do avião e a fabricante de instrumentos aeronáuticos. As duas empresas teriam de pagar, só a esses, 11 milhões 625 mil dólares, cabendo 375 mil dólares a cada um, conforme o processo lá instaurado e que apontam como responsáveis pelo acidente os pilotos Jan Paladino e Joseph Lepore, que não conheciam os controles de seu avião e voavam com o equipamento anticolisão desligado.
Até fins de maio, percebia-se no Brasil que muitos brasileiros envolvidos nas investigações estavam empenhados em responsabilizar os controladores de vôo em geral, caluniando compatriotas competentes, que vivem de seu trabalho numa atividade, entre tantas, de destaque no cenário da verdadeira segurança nacional: a segurança do povo.
A conta do desastre estava para recair sobre os ombros do povo brasileiro quando chegaram os laudos dos peritos do USA e as gravações da caixa-preta. O Ministério Público Federal de Mato Grosso acusou os ianques de exporem aeronaves a perigo, crime previsto no artigo 261 do Código Penal. A pena prevista é de dois a cinco anos de reclusão.
Em Brasília, entretanto, as comissões parlamentares de inquérito da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, tendo à frente o senador goiano Demóstenes Torres, cerraram fogo contra quatro brasileiros — os sargentos Jomarcelo Fernandes dos Santos, Lucivando Tibúrcio de Alencar, Leandro José Santos de Barros e Felipe Santos dos Reis, controladores de vôo do Cindacta-1 (Brasília): que monitoravam os vôos do Boeing e do Legacy dispondo de radares e transmissores de rádio no mínimo obsoletos.
Os "apagões"
Observa-se que desde a denúncia dos controladores de vôo acerca das péssimas condições de trabalho nas torres e nas pistas instalou-se o caos em todas as operações da aviação comercial, com desculpas esfarrapadas não só para o cancelamento de vôos, como para a supressão do serviço de bordo, a recusa do pagamento de refeições e hospedagem e até mesmo com agressão física a passageiros. Basta haver necessidade de manutenção a uma aeronave ou a neblina cair sobre os aeroportos de Congonhas, Guarulhos, Brasília ou Curitiba, para instalar-se o caos, batizado de apagão aéreo, coisa que não ocorria desde a década de 1930, quando a aviação comercial se consolidou. É mais um subterfúgio para livrar a responsabilidade das empresas de aviação, Infraero, ANAC e do sistema de proteção ao vôo.
O acidente com o vôo 1907 da Gol deixou expostas várias fraturas da corrupta máquina estatal brasileira, a mesma que tem sido loteada entre os partidos políticos em troca de votos favoráveis a todo tipo de medidas anti-povo. A principal medida é a destinação do grosso dos recursos financeiros para pagamentos ao estrangeiro, à custa do sucateamento de hospitais, rodovias, portos, instituições de pesquisa. Óbvio, por que o sistema de proteção ao vôo, fato constatado pelo Tribunal de Contas da União, ficaria ileso, quando nada existe de mais sagrado para as classes que manobram o país que o lucro máximo?
Na madrugada do dia 27 de maio, os vôos rumo à Europa, pelo Atlântico, ficaram sem controle de tráfego aéreo, de acordo com registro do livro de ocorrências do centro. O Cindacta-3 — Recife —, responsável por parte do trajeto, teve falhas nas frequências de rádio, única ferramenta para orientar os pilotos na travessia. O caso virou foco de uma sindicância interna no centro.
Oficiais da FAB têm garantido em depoimentos nas CPIs do Congresso que não existem falhas, apenas "características". Os controladores, que não podem falar publicamente porque são militares, rebatem enviando documentos a jornalistas.
No Cindacta-4 — Manaus —, que esteve envolvido no acidente da Gol, os profissionais fazem o controle sem uso do radar porque há muita duplicação de alvos e informações incorretas sobre os vôos. Nos oceanos, o controle é "padrão", ou seja, é feito sem o auxílio de radares. Por isso, a falha de rádio do Cindacta de Recife segundo os controladores, causou a falta de controle aéreo em 30 vôos "sem contato". As comissões parlamentares de inquérito instaladas — aos trancos e barrancos na Câmara e no Senado — urdiam mais uma temporada de politicagem. Mas tiveram de tomar outro rumo diante da realidade da nossa aviação civil, esse conglomerado de empresas sem aviões (as frotas só existem graças a operações de leasing), cujos grupos dirigentes não passam de especuladores e nem mesmo têm o menor pudor em sonegar o serviço de bordo (como as refeições, oferecidas antes aos passageiros) para auferir mais lucros.
Ao mudarem de rumo, deputados e senadores desistiram discretamente de investigar as atividades do advogado Roberto Teixeira (compadre e amigo íntimo de Luiz Inácio, que atuou na venda da Varig à Gol, por 320 milhões de dólares) e as do ex-governador e ex-senador Carlos Wilson Campos, na presidência da Infraero, empresa do Ministério da Defesa incumbida da gestão dos aeroportos.
Não consta do roteiro das duas CPIs investigar a expansão dos vôos e linhas das empresas estrangeiras desde o inexplicável fechamento da Panair do Brasil, seguido da Cruzeiro do Sul, Vasp, Transbrasil, Varig e outros empreendimentos nacionais, enquanto aumentam os preços das passagens, deteriora-se atendimento em terra, enquanto que na cabina reina o pavor da demissão, e de tudo o mais que vem agravando a precariedade das garantias trabalhistas — a ponto de os pilotos e comissários de vôo aposentados da Varig, que durante anos contribuíram para o fundo de pensão, terem de recorrer à Justiça para receber o que lhes é de direito.
Muitas são as feridas abertas. As paralisações — que o monopólio estrangeiro dos meios de comunicação em nosso país batizou de "apagões aéreos" —, chegaram a ser consideradas "falta disciplinar" pela cúpula da Força Aérea. O brigadeiro Mauro Gandra, o último a ter o título de ministro da Aeronáutica, identificou a operação como "motim", mas a existência, nas Forças Armadas, de sargentos com dois, três e até quatro títulos universitários recomenda a realização de profundos estudos para a revisão da escala hierárquica e o melhor aproveitamento do pessoal subalterno.
Assim, o comandante da Força Aérea, brigadeiro Juniti Saito, decidiu punir os sargentos com prisão, mas a decisão logo foi desautorizada pelo gerente Luiz Inácio que, defendendo outros interesses, determinou aos ministros do Planejamento, Paulo Bernardo Silva, e da Defesa, Waldyr Pires, a conclusão dos entendimentos para a desmilitarização do sistema de controle de tráfego aéreo. Além disso, acenou com a possibilidade de atender às justas reivindicações salariais do pessoal do controle de tráfego aéreo (um sargento especialista em radar ganha o mesmo que o corneteiro).
A oficialidade repeliu de imediato a estratégia peleguista, instalando-se uma crise que, embora pareça superada com um pedido de desculpas "à Nação" — que os controladores foram forçados a fazer —, jamais estará sanada, principalmente porque Luiz Inácio, que envergonha o país pelo seu comprovado despreparo até mesmo para ocupar gerências semicoloniais, se esmera na sua postura desbocada e repleta de crises.
Ministério inútil
Em meio a esta dramática situação, surgiu o gerente do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, comemorando demagogicamente 100 dias da sua posse com um ingente pedido de tropas do Exército, Marinha e Aeronáutica para, durante um ano, dar combate à criminalidade no território fluminense. O pedido de Cabral ressuscitou Waldyr Pires, ministro da Defesa ridicularizado e dinamitado em função de trapalhadas como a de tomar partido dos sargentos logo após sua primeira mobilização, tratando diretamente com eles a transferência do controle do tráfego aéreo do Comando da Aeronáutica para um órgão civil, a exemplo da Infraero.
Pires recebeu a missão de fazer ver a Cabral que, até mesmo em função de dispositivos constitucionais, não há como a União satisfazer-lhe o desejo, muito embora o lançamento das Forças Armadas em missões policiais seja objeto de seguidas recomendações do imperialismo, após ter obtido a criação de ministérios da Defesa por toda a América Latina.
Apregoou-se, inicialmente, que o Ministério da Defesa constituiria importante etapa da reconstitucionalização do país. Todavia, as recentes homenagens a um dos maiores carrascos da ditadura militar, o coronel Brilhante Ustra, o silêncio que até hoje encobre os documentos atirados ao lixo na Base Aérea de Salvador, a impunidade dos torturadores e o apagão dos aeroportos, estão a indicar a extrema fragilidade da pasta.
Já na sua criação, o relator da Proposta de Emenda Constitucional — PEC n. 498/97, deputado Benito Gama, teve de esclarecer aos militares que o novo ministro da Defesa, um civil, seria uma espécie de "rainha da Inglaterra", ou seja, reina, mas não governa. No entanto, tarefas simplíssimas como centralizar o orçamento das Forças Armadas, comprar armas e equipamentos e redigir a política de defesa do Brasil, tornaram-se de difícil execução para todos os que passam pela pasta.
O primeiro a ocupar o posto de ministro, Élcio Álvares, nomeado pelo gerente Cardoso, saiu sob suspeitas de que seu escritório de advocacia teria traficantes de drogas ilícitas como clientes. Seu sucessor, Geraldo Quintão, só não caiu de podre porque o mandato de Cardoso terminou: chegou sob acusações de que, na qualidade de advogado geral da União, teria utilizado aviões da FAB para 32 vôos particulares; incompatibilizou-se com o governo argentino; ainda, envolveu-se com a demissão do comandante do Exército, o general Gleuber Vieira.
A parte frágil da gerência FMI-PT conseguiu nomear um diplomata, José Viegas, para conduzir o ministério da Defesa, mas cometeu o erro de esvaziar-lhe a autoridade ao submeter o seu nome aos três comandantes militares da gerência Cardoso. Caiu em função da publicação de uma suposta fotografia do jornalista Vladimir Herzog, submetido à tortura antes de ser assassinado em prisão militar, em 1975. Para substituí-lo, Luiz Inácio lançou mão de seu vice, José de Alencar que, logo na posse, foi se submetendo à vontade dos militares, dizendo: "Minha visão é daqui para a frente. Não tenho nada com o passado."
Novas lideranças
Na verdade, com o movimento dos controladores de vôo voltam a aparecer lideranças na classe militar, silenciada por 24 anos, no período 1964-1988: os avanços da tecnologia estão a exigir enorme bagagem de conhecimentos exatamente aos sargentos especialistas, colocando-os, por este motivo, até acima de oficiais que lhes são superiores, com repercussões para a hierarquia e a disciplina da Força Aérea. Para ingresso na escola de formação de oficiais, como na de sargentos a exigência de conhecimentos é idêntica: apenas o curso médio, não havendo maiores razões, além de cursos de aperfeiçoamento, para barrar o acesso de um controlador de vôo aos postos superiores da hierarquia.
Os técnicos, verificando com o correr dos anos que sua remuneração é estrangulada, tratam logo de cursar uma faculdade. Isto os coloca, do ponto de vista psicológico e acadêmico, no mesmo nível dos oficiais que os chefiam. Esta situação não estará resolvida enquanto não surgirem, entre os de alta patente, líderes respeitados pelo exemplo, a honestidade, o devotamento à tropa e a competência, como se verificava no passado pré-64, em que a tecnocracia militar não era tão cortejada.
Já não ocorrem mais crises militares como ao tempo da "República do Galeão". Mas agora o gerente Luiz Inácio precisa, de um lado, restaurar a cadeia de comando militar e, de outro, estabelecer respeito das Forças Armadas ao Ministério da Defesa. Precisa, mas o sistema semicolonial não permite. Mais uma contradição insolúvel.