A pecha de “lideranças negativas”, que tem sido aplicada aos controladores de tráfego aéreo desde a instalação do caos nos aeroportos, deve lhes servir como medalha, no entanto. Afinal, desde os Guararapes, em 1648, brasileiros que se empenham na defesa dos interesses do povo são apontados como traidores, antes de reconhecidos como heróis.
Arte: Alex Soares
Já sobram as provas de quem são os verdadeiros responsáveis pelos problemas que atormentam milhares e milhares de passageiros das empresas aéreas, tumultuando a viagem até de doadores e receptores de órgãos para transplante. Advoga-se a prisão dos controladores, sob acusação de motim, porém o mesmo não se diz dos aviadores que se recusam a usar as pistas de Congonhas nos dias de chuva.
Inquéritos levados a cabo no USA e no Brasil, não só por especialistas em pesquisa de acidentes aeronáuticos como também por investigadores da Polícia Federal e comissões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, indicam que os pilotos ianques John Lepore e Jan Paladino, conduzindo um jato executivo Legacy com o transponder, principal instrumento de segurança, desligado, assassinaram os 154 passageiros e tripulantes do Boeing da Gol que vinha em direção oposta, na mesma altura.
Já matriculado como aeronave da empresa ExcelAire, do USA, o Legacy não emitiu sinal de altimetria para o Controle de Vôo, não cumpriu o plano de vôo aprovado e ainda voou por mais de 30 minutos em condições de Separação Vertical Mínima sem estabelecer qualquer contato por rádio. Assim desapareceu do radar, indo para o chamado “buraco negro”, situação complicadíssima que ocorre devido às falhas do software de localização usado pelo sistema brasileiro de controle aéreo, e também à inadequação dos procedimentos exigidos.
Responsável pela obsolescência do sistema, dos equipamentos e da infra-estrutura, a também criminosa gerência Luiz Inácio nada faz para meter na cadeia John Lepore e Jan Paladino. Até agora, apenas o juiz Tiago Souza Nogueira de Abreu, titular da Comarca de Peixoto de Azevedo, em cuja jurisdição ocorreu a tragédia, agiu com o rigor que se impõe, apreendendo-lhes os passaportes e retendo-os no Brasil até o final das negociações.
Todavia, manobra articulada entre a embaixada do USA e o Itamaraty resultou na rápida liberação de Lepore e Paladino, também responsáveis por elevadíssimo prejuízo material: US$ 154 milhões de indenização pelos óbitos, mais US$ 70,4 milhões pelo valor do Boeing e outros US$ 24 milhões do “Legacy”.
Sem considerar as vidas perdidas, trata-se de um negócio de cerca de US$ 250 milhões, conta que os hospedeiros do erário brasileiro estão loucos para assumir, não apenas poupando os patrões do Hemisfério Norte desse significativo desembolso, como eximindo o sistema de governo de toda a responsabilidade. Tudo com estímulos à desmilitarização e à privatização, entregando-se ao colonizador estrangeiro os sistemas de controle de tráfego aéreo e dos aeroportos.
A Agência Nacional da Aviação Civil, tendo à frente Milton Zuanazzi, um protegido da toda-poderosa chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, faz o jogo das empresas aéreas, nacionais e, principalmente, estrangeiras, podendo até derrubar o ministro da Defesa, como fez com Waldir Pires, substituído por Nelson Jobim, aquele que, confessadamente, fraudou os originais da Constituição.
Bois de piranha
Assim, é preciso que as “lideranças negativas” levem a culpa. Os verdadeiros responsáveis pela tragédia se lançaram sobre aqueles conscienciosos trabalhadores, tão logo foi desencadeada a operação-padrão, para evitar a repetição do acidente com o Boeing, cumprindo rigorosamente todas as normas e limitando ao humanamente razoável o acompanhamento em radar da quantidade de aviões em vôo.
Como os controladores são militares e civis, foram submetidos a inquérito na Justiça Militar, enquadrando-os no crime de motim.
— A hierarquia não pode se sobrepor ao interesse social — ressalta Jorge Botelho, presidente do Sindicato Nacional de Trabalhadores na Proteção ao Vôo, lembrando que os controladores sempre se submeteram aos regulamentos disciplinares, mas há equipamentos e procedimentos ultrapassados que põem em risco tripulantes e passageiros.
E a prova da inocência desses profissionais da mais alta relevância surge, desde logo, na Portaria Reservada R-005/DGCEA, de 25 de novembro de 2005, assinada pelo diretor geral do Departamento de Controle do Espaço Aéreo, Tenente-Brigadeiro José Américo dos Santos, a reedição do I Plano de Desenvolvimento do Sistema de Controle do Espaço Aéreo.
Datado de um ano antes do choque do Legacy com o Boeing da Gol nos céus da Amazônia, este documento alerta que, “devido ao aumento na demanda do tráfego aéreo, à redução da separação entre aeronaves, à implantação de novos conceitos relativos às rotas a serem voadas e à capacidade de gestão dos órgãos que prestam Serviços de Tráfego Aéreo (ATS), indesejáveis conflitos de tráfego aéreo eventualmente ocorrem com determinadas áreas do espaço aéreo.”
Velhos conhecidos
As autoridades aeronáuticas reconhecem que esse aumento de demanda constitui um fator restritivo para a utilização de determinados espaços aéreos e aeroportos, não existindo um órgão central que faça o gerenciamento desse tráfego e a monitoração dos padrões de segurança na área de responsabilidade do DECEA, e alertam:
“Hoje, os órgãos ATS estão se aproximando do limite de sua capacidade operacional, em termos de equipamentos e pessoal, para atender a todas as necessidades demandadas”. Em algumas regiões, embora sem comprometimento da segurança, a capacidade de controle do tráfego está aquém do desejado, devido à carência de alguns dos recursos considerados. O Serviço SAR Aeronáutico apresenta limitações de equipamentos de coordenação, supervisão e tratamento das operações, o que dificulta o cumprimento das missões em algumas partes da vasta área de 22 milhões de quilômetros quadrados, sob a responsabilidade de seu Órgão Central, o DECEA. Não existe uma legislação nacional única que integre e harmonize os serviços e Sistemas SAR em âmbito nacional. A inexistência de um órgão designado como Coordenador SAR Nacional, de um Comitê SAR Nacional e de elos sistêmicos normalizados compromete a manutenção dos Sistemas SAR existentes, dificulta a integração sistêmica de Órgãos Coordenadores SAR, como o DECEA, e retarda o estabelecimento de um Plano SAR Nacional.”
A FAB informa que “atualmente, os principais problemas enfrentados pelo DECEA devido à rápida obsolescência e à limitação dos equipamentos e sistemas, diante da contínua evolução tecnológica e do aumento da demanda por novos serviços, são: a) demora na execução de processos administrativos e no recebimento dos itens adquiridos; b) diversidade de equipamentos e sistemas assistidos; c) descontinuidade industrial e comercial de produtos, componentes e materiais; d) necessidade de pessoal para atendimento às atividades de logística; e) pequena disponibilidade de pessoal especializado; e. f) custo elevado das aquisições de material e das contratações de serviços para manutenção, revitalização ou modernização de equipamentos e sistemas”.
Sem regulamentação
Apesar da intensa campanha para a desmilitarização do Controle de Tráfego Aéreo, nem o monopólio dos meios de comunicação, nem a gerência FMI-PT aventaram a necessidade de regulamentar a profissão de controlador. Na verdade, a aviação civil brasileira esteve sob a égide do Ministério da Viação e Obras Públicas de 1927, quando nasceu o Sindicato Condor, primeira empresa aérea, até 1941, com a fusão das aviações militares (da Marinha e do Exército) para a criação da Força Aérea Brasileira e do Ministério da Aeronáutica — esvaziado, como o Estado Maior das Forças Armadas e as demais pastas militares, para a instituição do Ministério da Defesa, em 10 de junho de 1999.
Com o término da Segunda Guerra Mundial, todos os assuntos relativos aos controladores de vôo, aeronautas e aeroviários ficaram afetos ao Departamento de Aviação Civil, DAC,do Ministério da Aeronáutica e não da Força Aérea Brasileira. O fato de a grande maioria dos controladores de vôo ser constituída por sargentos e suboficiais decorre apenas de sua formação ser feita na Escola de Especialistas de Aeronáutica, em Guaratinguetá. Houve tempo em que a formação altamente especializada e o risco de vida propiciavam a certas carreiras militares (pessoal de vôo, de submarinos, entre outros) gratificações específicas, mas a gerência militar mudou as regras do jogo para favorecer apenas a generalada.
Em consequência, a despeito de sua formação altamente especializada, a situação hierárquica — e remuneração — do controlador de tráfego aéreo e do mergulhador da Marinha permanecem a mesma de um escrevente. Com a inclusão de controladores de vôo civis, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, tornou-se ainda mais difícil oferecer a esses especialistas uma remuneração condigna. Hoje, defrontando-se com volume de trabalho desumano e equipamentos obsoletos, mal ganham R$ 2500, comparados a um mínimo de R$ 12 mil em alguns países.
Projeto esquecido
Em 1986, por solicitação do pessoal do DAC e dos controladores, o senador Nelson Carneiro apresentou o Projeto de Lei do Senado n° 186 para regulamentar a profissão, ressaltando que — embora essa profissão existisse no Brasil há mais de 60 anos, remontando aos primórdios da aviação civil, inexistia uma regulamentação própria — é cercada de nuances específicas e para a qual não se conhece parâmetro de comparação.
“Em virtude da inexistência dessa regulamentação, vem ocorrendo” — ressaltava Nelson Carneiro —”diversos fatos desagradáveis ao longo de todo esse tempo, mas que agora estão tomando proporções que certamente irão comprometer o Brasil e a comunidade aeronáutica em particular”.
Na propositura, muito ao contrário de considerar os controladores de vôo “lideranças negativas”, aquele saudoso Senador citava-os como “notáveis anônimos, valiosos heróis do espaço, que não saem da terra, e anjos da guarda de milhares de vidas e de valiosíssimos equipamentos que ocupam os céus do Brasil”.
Nelson Carneiro acrescentava que o desenvolvimento tecnológico desse setor tem sido espetacular, com a implantação de sistema de radares, computadores, rede de telecomunicações e toda sorte de equipamentos sofisticados que permitem aos centros de controle de tráfego aéreo uma eficaz e confiável coordenação de vôo.
O projeto de Nelson Carneiro ressalta que “esses anjos da guarda também são seres humanos, e como tais têm suas necessidade e, apesar da alta responsabilidade que têm nas mãos e na mente, são alvo de inúmeras injustiças, razão pela qual depositam todas as suas esperanças na regulamentação da profissão”.
A propositura do velho senador entretanto não vingou. Agora pelo menos três parlamentares a localizaram nos arquivos e a reapresentaram depois de adequá-la ao momento, chamando especial atenção para aspectos essenciais da profissão, como o de tratar-se de técnicos altamente especializados aos quais se requer raciocínio lógico e ágil, visão e audição perfeitas, ótima dicção, capaz de falar sem erros de pronúncia o português e principalmente o inglês.
A formação profissional compreende três ciclos de estudos em matérias específicas, tais como técnicas de voz, direito aeronáutico, navegação aérea, busca e salvamento, aerodinâmica, eletrônica, telecomuncações, fraseologia padrão internacional, operação de radar, reconhecimento de aeronaves, meteorologia, informações aeronáuticas, regras e regulamentos do ar. Somam-se ainda estágios de adaptação e familiarização no serviço nunca inferiores a um ano.
Seus serviços são permanentes e ininterruptos, exigem atenção constante e não podem ser adiados, transferidos ou cancelados. São executados 24 horas por dia, 365 dias ao ano, com o mesmo grau de eficiência operacional, tanto no horário do rush como às três horas da madrugada.
Esses são os profissionais cuja inocência, tanto em relação ao acidente na Amazônia quanto ao caos aeroportuário, vai, pouco a pouco, ficando mais do que comprovada, na mesma medida da truculência e do impatriotismo de seus algozes. Assim é que, ao surgir o menor defeito nos equipamentos mais que obsoletos, como os radares de Manaus, o monopólio dos meios de comunicação, sem qualquer prova, vai a ponto de acusá-los de sabotagem, crime que extrapola o hediondo, e ao qual na maioria dos países corresponde a pena de morte.