O ano começou mal para a classe trabalhadora do Rio de Janeiro. Entre 29 de janeiro e 21 de fevereiro o governo Sérgio Cabral (PMDB) substituiu a cúpula da Polícia Militar por oficiais da linha-dura, promovendo assim uma grande reestruturação nos quadros da polícia e sinalizando um aprofundamento de sua política de segurança baseada na violência contra as classes subalternizadas. O coronel Ubiratan Ângelo foi exonerado do comando geral da PM e em seu lugar assumiu o coronel Gilson Pitta Lopes, que antes comandava o Serviço Reservado, enquanto a chefia do Estado-Maior foi confiada ao coronel Antônio Carlos Soarez David, que substituiu o coronel Samuel Dionísio. Outros oito coronéis também foram afastados.
Na inauguração das obras, em Maguinhos,
o gerente Lula transformou o palco em palanque eleitoreiro
As mudanças acontecem após uma série de manifestações de oficiais por melhores salários. Os policiais protestantes ficaram conhecidos como "Barbonos". De acordo com Maurício Campos, integrante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, a cúpula do governo aproveitou o momento para aprofundar a criminalização da pobreza:
— Parece que o Cabral e o Beltrame [Secretário de Segurança] aproveitaram o movimento dos coronéis para colocar pessoas mais afinadas com a política de confronto e de extermínio. Fortaleceram oficiais de visão mais truculenta e, se depender deles, não há perspectiva de mudança.
Transparência ameaçada
Além disso, foi demitida a diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública, a antropóloga Ana Paula Miranda, que vinha analisando e divulgando com relativa transparência os números que comprovam a excessiva letalidade da polícia fluminense. Em seu lugar, entrou o tenente-coronel Mário Sérgio Duarte.
Só em 2007 a PM do Rio matou, segundo os dados oficiais, 1.260 pessoas, número que a coloca entre as polícias que mais matam no mundo: 4 vezes mais que a de São Paulo e superior à soma de todas as polícias do USA, país que originou a política de tolerância zero contra a pobreza, que em outras palavras poderia ser definida como política de repressão violenta contra pequenos delitos.
Para a professora titular do curso de História da Universidade Federal Fluminense, Adriana Facina, essas mudanças podem ser vistas como um retrocesso. E preocupam:
— É muito grave colocar alguém de dentro da corporação para controlar a própria coporação. Porque esses índices eram a única coisa de concreto que a gente tinha para avaliar. Os dados do ISP são um dos únicos instrumentos para se ter contrle da política de segurança. Através dos dados de prisões, de apreensão de armas, drogas, assassinatos, através disso você vai tendo um perfil da atuação da polícia e para onde a política de segurança vai apontar. Se a quantificação desses dados não for feita de maneira transparente, fica complicado controlar a atuação do governo.
Outra alteração significativa nos quadros da polícia foi a promoção do coronel Marcus Jardim, que comandava o 16° Batalhão de Polícia Militar (Olaria). Agora ele é o comandante do 1° Comando de Policiamento de Área (CPA), responsável pela gestão de treze batalhões no estado do Rio de Janeiro. Jardim, convém lembrar, declarou no final do ano passado que 2007 seria o ano dos três "P": "Pau, Pan e PAC", uma referência explícita à época da escravidão, quando os trabalhadores da época eram tratados com "Pau, pano e pão".
Pan, PAC e Pau
Por trás dos pomposos palanques do PAC esconde-se a política de despejo violento de milhares de famílias que habitam as favelas do Rio. O governo Cabral anunciou que vai demolir 6.408 casas no Complexo do Alemão, Manguinhos e Rocinha, as três favelas que receberão maior volume de recursos (cerca de R$ 1 bilhão). O subsecretário de Urbanismo da Secretaria de Obras, Vicente Loureiro, dividiu com a imprensa seu fabuloso raciocínio: "não se faz uma omelete sem quebrar ovos".
Mas nem todos estão satisfeitos. Em reunião realizada no final de fevereiro, lideranças comunitárias criticaram muito a condução das obras do PAC. "A gente não está satisfeito. Queremos ver o projeto no papel", disseram.
Conforme apurou a reportagem do AND, ficou decidido durante a reunião do secretariado do governo Cabral que a primeira secretaria a agir seria a de Segurança — que já se comprometeu a destacar 12 blindados e 3 mil policiais para "garantir" a realização das obras.
A Colômbia é aqui
As mudanças na cúpula da polícia fluminense também satisfazem às exigências do governo ianque, que trabalha para militarizar as polícias da América Latina e treiná-las para a repressão interna.
Embora isto não seja informado pelo monopólio da imprensa, o fato é que entre mortos e feridos pela polícia não se encontram apenas traficantes varejistas. A proposta desse sistema é perseguir e até eliminar todos aqueles que se opõem ao modelo hegemônico. Peguem eles em armas ou não. Nesse sentido, o caso do atentado contra o advogado João Tancredo é bastante significativo. O presidente do Instituto dos Defensores de Direitos Humanos estava voltando de uma favela da Zona Norte do Rio, onde ouviu denúncias contra policiais, quando teve seu carro alvejado por quatro tiros. João não morreu porque seu carro é blindado (veja AND 40).
Na Colômbia, essa política de extermínio contra os militantes de direitos humanos vem sendo adotada pelo governo com apoio do USA. Segundo o professor da UFRJ Roberto Leher, "na Colômbia militantes de direitos humanos estão sendo assassinados na ordem de centenas por ano". Esse é o sistema eleito como modelo pelas autoridades do Rio de Janeiro. A historiadora Adriana Facina alerta para a perversidade dessa política e suas conseqüências a curto e médio prazo:
— Esse modelo colombiano, na verdade, foi extremamente eficaz. Primeiro para controlar, via repressão, toda a oposição política. As Farc são um dos movimentos políticos de oposição de esquerda na Colômbia. Mas mesmo os que não optaram pela via armada, não podem andar tranqüilamente pela rua, não podem se expressar na imprensa. A opção é pelo extermínio, pela eliminação física dos que questionam o modelo. Isso é feito tanto pelo Estado formal quanto pelo braço do Estado que são os paramilitares. É uma opção por uma higienização com viés repressivo.
A professora faz ainda um paralelo com o Rio de Janeiro:
— O que se delineia no Rio é algo parecido. O controle das populações onde a insatisfação política está mais presente: movimentos sociais, partidos de esquerda e também o tráfico varejista, que mesmo desorganizadamente acaba sendo encarado como uma forma de contestação. Quanto mais ações violentas mais as pessoas sentem medo. O segundo elemento é a formação de guetos na cidade, que é uma maneira de se desvalorizar a vida humana — e a imprensa tem papel importante nisso ao não divulgar o nome dos mortos. Quanto mais as ações da polícia causam mortes, menos essas áreas são visitadas por quem não mora nelas. O terceiro elemento: quanto esse tipo de política é benéfica para o comércio de armas. Quanto mais a polícia se arma para o confronto, mais armas chegam aqui, inclusive pelo contrabando. Quem lucra são as grandes empresas de armas. Então a gente precisa ver quem defende essa política de confronto e fazer a ligação de quem lucra com ela. É uma boa investigação que precisa ser feita.
Maurício Campos, da Rede Contra a Violência, vai além e identifica a participação do governo ianque, que já investiu cerca de US$ 5 bilhões na região amazônica no chamado Plano Colômbia, que a pretexto do "combate às drogas" contribui para militarizar a fronteira dos países sul-americanos:
— Essa é uma política que vem sendo implementada em vários países. No fundo, essas ações representam os interesses dos estrategistas de Washington, sendo que na Colômbia ela é mais desenvolvida. E está cada vez mais presente aqui no Rio.