Arte: Alex Soares
As tentativas de criminalizar os movimentos camponeses no Brasil não cessam e vêm de vários lados, numa espécie de fogo cruzado, que revela o servilismo do governo aos latifundiários e ao capital financeiro.
A chamada grande imprensa, especialmente o venerável jornal O Estado de São Paulo, ataca “denunciando” a violência do Movimento dos Sem Terra (MST) na tomada do Engenho Prado, em Tracunhaém, Pernambuco. Na ocasião, a massa de camponeses cercou a sede do engenho, que abrigava os membros da milícia particular do latifundiário, e deu vazão à sua ira contra a repressão e pistolagem seculares no Nordeste brasileiro. Os camponeses desarmaram os jagunços, que entregaram à polícia, e incendiaram a casa grande. O editorial da referida publicação, do último dia 23 de maio, descarrega todo seu reacionarismo contra os camponeses, chegando a compará-los aos nazistas e às FARC, da Colômbia. Diz, inclusive, que os jagunços eram trabalhadores honestos. O responsável, segundo o jornal, é o governo, que não cumpriu a promessa de “pacificar” a reforma agrária, que até hoje foi feita sob pressão dos camponeses.
Outro ataque vem da suposta base aliada do governo no Congresso. O PFL foi à televisão reclamar ao governo FMI-PT que tomasse providências contra a anarquia no campo promovida pelo MST. Esquecem-se de que a maior parte das áreas tomadas pelos movimentos camponeses no Brasil é constituída de terras devolutas que foram griladas (roubadas), ou se encontram em processo de desapropriação.
Por outro lado, os nomeados para os cargos do Incra são ligados à direção do próprio MST, outras vezes, da CPT (Comissão Pastoral da Terra) que, usando das suas atribuições, rimoraram o método de identificar, mapear e delatar lideranças camponesas aos órgãos de repressão a serviço do latifúndio. Um bom exemplo disso é o superintendente do Incra de Rondônia, Olavo Nienow, oriundo da CPT, que vem ostensivamente fazendo a política de delação dos camponeses mais combativos do Estado, conforme determinaram seus patrões, os latifundiários.
Todos esses ataques, mesmo aqueles dirigidos contra o governo, visam somente desmoralizar os movimentos camponeses, já que os detratores sabem que o atual gerente do FMI nem sonha em mexer nos interesses dos latifundiários.
O judiciário também não fica atrás em matéria de perseguição aos camponeses. Inúmeros processos tramitam no judiciário brasileiro contra lideranças de movimentos de luta pela terra. No Brasil, quem quer que ouse desafiar o poder do latifúndio enfrenta, além da série de confrontos com jagunços e polícia, uma avalanche de mandados de prisão preventiva e processos que visam desmoralizar movimentos e lideranças, taxando-os de criminosos, quadrilhas, bandos armados, etc.
Determinados juízes, na sua maioria de cidades onde existe mais tensão em torno da luta pela terra, não escondem as motivações políticas de seus atos, imputando os crimes mais descabidos aos dirigentes das organizações, visando, com isso, refrear a crescente combatividade do campesinato pobre em nosso país. Esses magistrados não se conformam com a pequenez de seus personagens, se arvorando em protagonistas de roteiros, que têm como principais atores, os camponeses pobres organizados.
Detenções arbitrárias
No Pontal do Paranapanema, região onde é grande a disputa entre camponeses e latifundiários, o juiz Átis de Araújo Oliveira não tem pejo de comparar o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ao PCC (Primeiro Comando da Capital), organização criminosa que se tornou notória pela organização de rebeliões nos presídios brasileiros. Esquece que os próprios latifundiários se encarregaram de se assemelhar ao PCC, ao criarem o PCR (Primeiro Comando Rural), organização de fazendeiros armados contra os camponeses que lutam pela terra no estado do Paraná.
Em 26 de julho de 2002, o juiz decreta a prisão de José Lauro dos Santos, Edilson Lourenço de Souza e José Guilherme dos Santos, integrantes do MST, por, supostamente, terem intimidado uma testemunha. Diz a justificativa constante do mandato de prisão preventiva: “(…) até porque, ainda que as altas esferas governamentais não queiram reconhecer, assim como se fazia até bem pouco tempo em relação ao denominado PCC, o conhecido MST se constitui nos dias de hoje um poder de fato nesta região do Pontal do Paranapanema.”
O caso Zé Rainha
Antes disso, a 9 de junho de 2000, em mandato de reintegração de posse da fazenda Santa Hida, município de Teodoro Sampaio, o juiz determina, sacando mais uma de suas pérolas: “(..) sendo que o prazo para desocupação voluntária fica fixado em cinco dias. Prazo este mais do que suficiente para a saída do imóvel. Isto porque o conhecido ‘MST’ apresenta grau de organização quase castrense (sic) e aquele que promove invasões de um dia para outro evidentemente tem capacidade de retirar as pessoas do local.” E ainda: “(…) os requeridos (camponeses), com seus acampamentos, não poderão ficar a menos de 10 km das divisas da propriedade invadida.” Isto é, o juiz agora dá as sentenças com base no nível de organização do movimento e ainda tenta determinar a que distância da fazenda os camponeses devem morar.
No período de um ano, de maio de 2002 até maio de 2003, o referido juiz decretou prisão preventiva de 22 dirigentes do MST, todas elas revogadas em instâncias superiores devido à argumentação deficiente do Sr. Átis. As peças apresentadas por ele não correspondiam a nenhuma base objetiva, sendo sedimentadas em suposições de que os acusados oferecem riscos à sociedade e à ordem, simplesmente por fazerem parte de um movimento de luta pela terra, varrendo o semifeudalismo que sobrevive no Brasil, em pleno século XXI. Em uma liminar de habeas corpus concedida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 10 de fevereiro de 2003, que libertava seis militantes do MST, lê-se: “Admitir-se que, por isso, sejam os pacientes (militantes) merecedores da custódia, fundado em mera suposição, em singela desconfiança, em insuficiente admissão de que, por serem do MST, estejam anarquizando, tumultuando e comprometendo a ordem social, fazendo-se, então, merecedores da prisão preventiva será, certamente, comprometer esse respeito e esse escrúpulo no trato com a sorte, a liberdade e a própria dignidade do indivíduo.”
José Rainha Júnior, o mais conhecido líder camponês do Pontal, ficou preso por três meses em 2002, acusado de porte ilegal de arma. Na ocasião, Rainha estava no banco do carona do carro em que foi encontrada uma espingarda calibre 12. Mesmo com o dono do carro afirmando ser o proprietário da arma, José Rainha é quem foi detido, sendo obrigado a amargar longos dias de cadeia sem que nenhuma prova concreta fosse apresentada contra ele.
Em outro episódio, quando o mesmo Rainha foi baleado, apesar de o autor do disparo ter sido identificado, nenhuma providência foi tomada. Tanto o pistoleiro como o mandante do atentado continuam soltos.
Rondônia
Em fevereiro de 2003, dia 6, realizou-se, na cidade de Colorado d’Oeste (RO), uma audiência pública que visava apurar as denúncias contra policiais de Vilhena, Colorado e Corumbiara, que em maio de 2001 invadiram as dependências da Escola Família Camponesa de Corumbiara, situada em um assentamento, atirando para todos os lados e espancando um professor. Presentes à audiência, os latifundiários Maércio Sartor e Alceu Feldman, ao invés de acusados, foram presenteados pelo juiz Johnny Gustavo Clemes com um álbum contendo fotos de várias lideranças camponesas da região, assim como de simpatizantes, professores, alunos da escola; ou seja, um livro de identificação policial das pessoas que lutam pela terra naquela parte de Rondônia.
É o velho e surrado artifício de transformar vítimas em bandidos. Sem apurar as denúncias contra a polícia, o juiz da comarca de Colorado d’Oeste passou a acusar a referida escola de participação nas ocupações de terras ocorridas naquela região. Essa atitude demonstra como age a cúpula dos latifundiários conluiados com mais esse minúsculo personagem, representante dos interesses do latifúndio e, ainda, que tenta dar legitimidade à pistolagem naquele estado.
Incra defende o latifúndio e ataca camponeses pobres em Rondônia
Desde o início de 2003, cerca de 4 mil homens tomaram as terras do Projeto Rio Alto, no setor de Nova Floresta, km 63 da BR 421, pertencente ao município de Monte Negro (RO). Nas últimas semanas, uma campanha de ataques e acusações mentirosas desatadas pelo Incra, Funai e PT contra os camponeses culminou com a prisão, em Porto Velho, no dia 9 de maio, de dois líderes do acampamento: Marines Mund e Martins Mund. O camponês José Domingos de Oliveira, antigo posseiro da área, também teve sua prisão decretada.
A área onde está o acampamento Sonho de Liberdade possui mais de 280 mil hectares de terras destinadas à reforma agrária. Ela está separada da reserva indígena Uru Eu Wau Wau por uma picada de 10 metros de largura, tem vários lotes demarcados e documentados pelo Incra. Centenas de famílias moravam e trabalhavam nestas terras — algumas há mais de 20 anos — quando, no final de 2002, foram expulsas de lá pela Polícia Federal e por bandos armados, a mando da Funai, alegando que a área pertencia à reserva indígena vizinha. Em poucos dias os camponeses tiveram o trabalho de muitos anos destruído: suas casas, tulhas cheias de grãos e suas lavouras foram queimadas; suas plantações de café e mogno foram arrasadas; o gado e outras criações foram roubados; alguns camponeses ainda foram presos, com várias mulheres ficando detidas por 17 dias no presídio Urso Branco, em Porto Velho.
O acontecimento foi denunciado pela Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia (LCP) em Porto Velho e Brasília. As famílias que foram expulsas retomaram suas terras. Às antigas famílias, se juntaram mais de 3.500 pessoas, e a cada dia chegam mais pessoas ao acampamento, vindas de várias partes do estado. Eles exigem seus lotes de volta, a indenização de suas benfeitorias destruídas, alem do corte imediato do restante da área para as demais famílias.
O Incra finge não reconhecer a propriedade das famílias que já moravam no local — que ele mesmo titulou — nem aponta solução para os milhares de camponeses que precisam de terra para viver. O superintendente do Incra, Olavo Nienow, disse que lava as mãos e qualquer coisa que venha a acontecer é culpa dos camponeses, repetindo a mesma postura reacionária quando da repressão aos camponeses na Batalha de Santa Elina (1995), em Corumbiara, sul do estado. Aliás, o mesmo Olavo ainda estabelece um jogo de ameaças e chantagens com o movimento camponês da região. Além de trabalhar em conjunto com as ONGs, que marcam posição quanto à “preservação” e erguer ainda mais as barreiras burocráticas que separam os camponeses da posse legal das terras que são suas, o superintendente dirige constantes ameaças à sede da LCP.
Mas quando se trata de atender aos interesses dos seus chefes latifundiários, faz tudo. Nesta mesma área de Monte Negro, o latifundiário e político Amorim grilou 78 lotes depois que os camponeses foram expulsos de suas terras.
O ministro da reforma agrária, Miguel Rosseto, disse que quer acabar com a violência no campo e fazer uma reforma agrária pacífica, mas, na prática, manda a polícia expulsar famílias de suas terras, prender e reprimir os camponeses. Assim, fica claro o continuísmo da política agrária do antecessor Cardoso.
Em nota oficial sobre Monte Negro, o PT de Rondônia disse que não concorda com a invasão de reservas indígenas, querendo creditar a culpa aos camponeses. A área em questão não é reserva indígena, mas propriedade dos camponeses. Com esse palavrório, o PT, junto com o Incra, legitima a violência covarde que invoca a ação da Polícia Federal contra os camponeses e, assim, presta serviços aos latifundiários que cobiçam a área e preparam um novo massacre.