No dia 19 de junho de 1999, os ministros da Educação de 29 países europeus subscreveram a chamada Declaração de Bolonha, que levou o nome da cidade italiana onde terminou de ser tramada e onde foi preparada sua redação final. É uma pequena cartilha na qual estão listadas algumas providências que todos os signatários devem tomar em relação aos seus sistemas de ensino superior num prazo que termina já daqui a dois anos, em 2010.
O documento é um misto de afirmação de intenções dos países mais ricos da Europa e de compromisso imposto àqueles mais pobres. Afirmou-se a intenção de mover uma verdadeira guerra contra o que restava de um sistema universitário europeu politizado e marcado pela combatividade. Para isto, um compromisso foi acertado entre alguns poderosos e ditado para os mais vulneráveis a desmandos: levar a cabo em cada um dos Estados nacionais da Europa uma série de mudanças em seus sistemas de educação superior.
Desta forma, a Declaração de Bolonha foi o pontapé inicial para o que se pôs em prática depois. E o que veio a seguir foi à reestruturação e padronização simultâneas dos sistemas de ensino de 29 países, bem como a periódica avaliação de resultados e renovação do compromisso inicial mediante o estabelecimento de novos objetivos a cumprir. Os 29 signatários se reúnem de dois em dois anos a fim de tramar o aprofundamento de todo o processo originado com a Declaração de Bolonha, e que ficou conhecido então como o processo de Bolonha.
Tanto que alguns adendos produzidos nas tais reuniões bianuais já foram anexados à declaração inicial na forma de "comunicados". São os casos do Comunicado de Praga, redigido em 2001, de Berlim em 2003, de Bergen em 2005, e de Londres no ano passado. A próxima reunião, a do ano que vem, já está marcada para a cidade de Lovaina, na Bélgica, onde serão aparadas as arestas da ofensiva e, no futuro "Comunicado de Lovaina", se estabelecerão os próximos passos da destruição do ensino superior europeu de qualidade e sua substituição por uma imensa rede de centros de formação da mão-de-obra que o patronato quer.
Universidades a serviço das empresas
Entre as mudanças previstas nas contra-reformas, ora em curso, está o "suplemento ao diploma", que transforma os certificados de conclusão dos cursos de nível superior em documentos nos quais constarão as informações que os gerentes de recursos humanos mais desejam ter em mãos. Em suma, o diploma vira um currículo com os tipos de dados que as empresas querem ver, conforme a vontade dos patrões, e institucionalizando a adaptação dos trâmites universitários à lógica do mercado.
Outra vontade dos patrões que entrou na ordem do dia com a implementação do processo de Bolonha é a prioridade para os tópicos da pauta empresarial na hora de se definir os critérios para elaboração e aprovação de linhas de pesquisa científica. É o agravamento da subordinação da pesquisa universitária aos rumos das estratégias de mercado das grandes empresas européias. Algo há muito já bastante comprometido, agora o desenvolvimento tecnológico fica ainda mais atrelado a toda sorte de financiamentos, patrocínios e parcerias que no fundo não passam de controle do capital sobre a produção acadêmica, colocando a vanguarda do pensamento científico a serviço da burguesia transnacional.
No entanto, a mudança mais grave que chega com a ascensão da educação à moda bolonhesa é a unificação curricular. Os programas educacionais de cada nação deixam de responder e espelhar as especificidades nacionais. Os currículos passam a ser padronizados e a lógica que orienta a padronização é balizada mais uma vez pelo que a burguesia espera receber daquilo que a Declaração de Bolonha batizou de Espaço Europeu de Ensino Superior.
Assim, por exemplo, o planejamento da estrutura de um curso de informática de qualquer universidade portuguesa deixa de levar em conta o problema crônico da exclusão digital em Portugal, passando a ensinar um programa baseado no que empresas como a alemã Siemens, ou a sueca Nokia irão precisar em termos de profissionais de tecnologia digital. E assim já vem sendo feito, do Leste Europeu à Península Ibérica, com as universidades se virando para adaptarem-se às novas regras. O planejamento pedagógico passa a seguir as diretrizes adotadas nas escolas de gestão e empreendedorismo.
Mas não fica bem dizer certas coisas ao distinto público. Assim, a linguagem oficial explica que tudo se trata de "elevar a competitividade internacional do sistema europeu do ensino superior", o que significa na verdade que as políticas educacionais deverão estar, mais do que nunca, ajustadas às demandas atuais da produção capitalista, e não às necessidades particulares de cada povo.
É a política educacional à disposição da corrida pelos lucros, sendo determinada pela competição do capitalismo monopolista, e determinando também a competição em outros dois planos.
Primeiro entre os estudantes, uma vez que, com as novas normas sobre mobilidade do processo de Bolonha, terão melhores diplomas e melhores suplementos aos diplomas aqueles que transitarem entre os vários países europeus em busca de maior diversidade cultural, matriculando-se para cursar cadeiras universitárias em instituições localizadas nos quatro cantos do continente. Obviamente, só os filhos das elites européias terão dinheiro o suficiente para fazê-lo, ou seja, o histórico universitário será tanto mais gabaritado, quanto o que de melhor o dinheiro possa comprar.
Em outro plano, as universidades mais ricas, aquelas nas quais o grande capital aposta mais, injetando mais recursos e comprando mais espaço, serão as que terão maior capacidade de atrair os valores mais promissores das ciências humanas, médicas e tecnológicas. Estas universidades estão concentradas nas grandes potências econômicas européias: Alemanha, França e Reino Unido. E são as grandes empresas multinacionais alemãs, francesas e britânicas que irão recrutar a nata do pensamento científico europeu, que terá sido educada mesmo com o único fim de fazer parte dos seus quadros.
Derrotar Bolonha, derrotar o capital
E engana-se quem pensa que as consequências do processo de Bolonha tenham ficado restritas às incertas fronteiras européias. Ofensivas deste tipo geralmente são boladas entre a nata das elites internacionais, ávidas para se apropriarem do conhecimento que os melhores pesquisadores de todo o mundo são capazes de produzir, e estando dispostas, tanto a recrutá-los em países como o Brasil, quanto em lançar por aqui, com a ajuda da boa vontade servil dos oportunistas de plantão, as bases para que o poder econômico apresente nos trópicos as últimas maravilhas cria das pelos inventivos europeus.
Hoje, pode-se dizer que nossas elites andam encantadas com os "avanços" do processo de Bolonha. A Universidade Federal da Bahia já lançou um projeto chamado "Universidade Nova", declaradamente de inspiração bolonhesa, e que vem sendo aclamado pelos pedagogos de meia tigela como o exemplo a ser seguido no Brasil em matéria de política educacional para o ensino de nível superior.
O Processo de Bolonha é muito mais do que meros ajustes em busca da sintonia curricular, vai muito além da adoção de simples convergências metodológicas cujas consequências, dizem seus arquitetos, visam a excelência de um ensino em prol do desenvolvimento humano.
Não se trata apenas da atualização, diante das demandas do capitalismo moderno, de engrenagens educacionais já dominadas pelos interesses dos monopólios. Não. Trata-se de um amplo esforço das elites para, com um nó cego, amarrar os próprios sentidos da educação aos interesses do capital. Bolonha é, acima de tudo, um processo político. Mais um entre tantos que buscam subjugar de forma profunda todos os aspectos da vida humana à lógica que sustenta um modelo mais amplo de exploração e opressão do povo trabalhador.
O processo de Bolonha é um concerto que está para as questões educacionais como o chamado "Consenso de Washington" — do qual Luiz Inácio é signatário — está para as questões econômicas mais abrangentes, que hoje são definidas de forma que as administrações nacionais permaneçam atreladas às ofensivas do imperialismo.
A lógica que orienta o processo de Bolonha, aliás, é a mesma subjacente ao longo processo de integração supranacional sob a égide do capital que, desde o pós-guerra, vem sendo comandado pelo grande patronato europeu. Isto, desde a criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço em 1951, pela burguesia franco-alemã, até o famigerado Tratado de Lisboa, que colocaria a cereja no bolo da própria União Européia, alicerçada nos interesses do poder econômico, mas que recentemente foi derrotado pela força das massas trabalhadoras.
Sim, derrotado pelas massas, assim como o processo de Bolonha ainda será interrompido pela força dos estudantes da Europa e do resto do mundo.