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Há mais de 50 anos, os versos de Violeta Parra mostram a riqueza e os sentimentos dos povos da América Latina, sobretudo dos camponeses pobres. Foi pioneira em mostrar a vida, o trabalho e a luta do povo, pela expressão artística, seja na música, poesia ou pintura, inspirando para sempre as gerações de cantores populares do Chile e do mundo todo, no movimento da Nova Canção.
Violeta del Carmen Parra Sandoval nascia em 14 de outubro de 1917, no município de San Fabián de Alico, Chile, filha de uma camponesa e um professor de música, vivendo sua infância no campo. Aos 17 anos, deixa a Escola Normal para cantar ritmos tradicionais andinos e mexicanos, com seus irmãos, nos arredores da capital Santiago. Nos anos seguintes, ganha vários concursos de canto espanhol e grava seus primeiros discos.
Em 1952, profundamente influenciada pelas lutas sociais de seu país, realiza recitais engajados em universidades e começa a resgatar e pesquisar a autêntica música popular chilena, ganhando imensa popularidade.
A sensibilidade militante de Violeta Parra é expressa nos versos de Décimas Autobiográficas:
Eu não protesto por mim
Porque sou muito pouca coisa,
Denuncio porque para a sepultura
Vai o sofrimento do mendigo.
Ponho Deus por testemunha
Que não me deixe mentir,
Não é preciso sair
Um metro fora de casa
Para ver o que aqui nos passa
E a dor que é o viver.
Mais tarde, na década de 60, quando as revoluções populares eclodiam e se desenvolviam no mundo, a arte de Violeta se multiplicou em dezenas de cantores e grupos musicais, no movimento da Nova Canção, que expôs fenômenos como Víctor Jara, Quilapayún e outros, no Chile, além de Atahualpa Yupanqui e Mercedes Sosa, na Argentina, e Pablo Milanés em Cuba,para exemplificar.
A Música Popular Brasileira influenciou e foi influenciada pela Nova Canção, mostrando riquíssimas expressões como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Elis Regina, Raíces de América e Tarancón, que entoaram hinos de liberdade no contexto da resistência à ditadura militar fascista, marcando profundamente o movimento estudantil e intelectual brasileiro.
O grupo chileno Inti-Illimani, que foi parte desse movimento, assim definiu a contribuição de Violeta:
— Ela é a única pessoa, na história do Chile deste século, que soube valorar, colocar em sua justa dimensão o que é a arte dos camponeses do Chile. Antes de Violeta, conhecia-se como música camponesa aquela visão que a burguesia tem dos seus latifúndios. O riozinho perfumado, o arbusto chorão… Canções assim. Canções que não eram mais do que uma visão classista do que é o povo. Com Violeta, as coisas começam a se redimensionar, porque ela começa a entender o amor, a vida, as lutas… Tudo com um ponto distinto de vista de classe. Isso é o mais genial que tem Violeta, o que ela pode falar em canções como Gracias a la vida ou Corazón Maldito, de problemas dos que têm cantado milhares de canções que se dizem populares, mas que não têm esse ângulo do povo que têm as canções de Violeta. Isso constituiu, para nós e para muitos outros, algo especial, uma grande descoberta. Era ter um padrão, uma escala de valores para saber distinguir o comercial do autêntico. Violeta Parra começou fazendo um amplo trabalho de pesquisa e, com essa experiência adquirida, compôs suas primeiras canções. Parte de sua criação é dirigida para a luta social. Os problemas da miséria… Toda sua vida é um peregrinar constante, em meio a uma incompreensão oficial de todo o seu trabalho. Daí também a referência, em algumas de suas canções, ao problema da burocracia. Toma muitos exemplos que são parte do nosso sofrimento diário e faz canções. Belas canções!
Em Gracias a la vida (1964), canção que transpôs as fronteiras da América Latina e chegou a ser reconhecida como a música do 2º milênio, o ser humano e seus órgãos sensitivos são exaltados em seu máximo potencial, mostrando que, apesar de todas as invenções tecnológicas que a cultura capitalista faz deslumbrar, nada é tão fantástico quanto a capacidade humana de distinguir as coisas, ouvir múltiplos sons, criar palavras e expressá-las, caminhar por montanhas, charcos e desertos, distinguir felicidade de quebranto. É o canto de um povo que reconhece sua força e riqueza e por isso luta por seus direitos de todas as formas.
Obrigado à vida, que me tem dado tanto,
Me deu o coração, que abala seus limites
Quando olho o fundo do cérebro humano
Quando olho o bem tão longe do mal
Quando olho o fundo de teus olhos claros
Obrigado à vida, que me tem dado tanto,
Deu-me o riso e me deu o pranto,
Assim eu separo felicidade de quebranto,
Os dois materiais que formam o meu canto,
E o teu canto, que é o mesmo canto,
E o canto de todos, que é meu próprio canto.
Violeta Parra exaltava, com sua arte, o ideal da unidade latino-americana contra o imperialismo. Cantava o antiimperialismo, mostrando as semelhanças dos processos históricos dos países da América Latina e, por conseguinte, as semelhanças dos seus processos de lutas populares, sempre exaltando o antiimperialismo e a vida, o trabalho e a luta dos camponeses pobres, povos indígenas e estudantes.
América aqui presente
Com seus irmãos de classe
Que comece a grande festa
De corações ardentes
Abracem-se os continentes
Por este momento elevado
Que surja uma perdição
De lágrimas de alegria
Que baile e cante a resistência
Que se acabem os lutos
Entremos na coluna
Humana neste desfile
Milhares e milhares de milhares
De vozes fundidas em uma.
De todas as parte os urra
Aqui todos são irmãos,
E assim estarão: de mãos
Como formando uma corrente
Porque o sangue nas veias
Fluirá de amor sobre-humano
Tudo estará em harmonia
O pão com o instrumento
O beijo e o pensamento
A caneta com a alegria
A música se desliza
Como carinho de mãe
Que se embelezem os ares
Esparramando esperanças
O povo terá mudança
Digo isto com muita honra.
Em tempos em que o povo brasileiro, especialmente a juventude, é bombardeado dia após dia pelo lixo cultural, pela exaltação das drogas, dos sonhos de consumo artificialmente construídos, pelo individualismo suicida, é fundamental conhecer e relembrar Violeta Parra e a Nova Canção. É tempo de se embalar nos seus toques agitados e fervorosos, visualizar a realidade e a luta dos povos da América Latina através dos seus versos, renovar a esperança, e divulgar- lhes aos quatro cantos. Mostrar, como ela tão bem soube mostrar, que a arte pode revolver multidões em luta por justiça.
É tempo de florescerem grupos culturais e expressões artísticas comprometidas com nosso povo, de manter acesa a chama, de se levantar em defesa dos direitos do povo, de fazer a luta militante em música e poesia. Graças a Violeta Parra, que nos tem dado tanto.
Fontes: A Nova Canção Chilena, livro eletrônico disponível em www. cancioneros.com; essa página traz amplo acervo com as discografias e letras de músicas dos cantores populares da América Latina.
Página da Fundação Violeta Parra: www.violetaparra.scd.cl