Harmada é uma metáfora sobre a possibilidade de vivência e vitória artística em um país aterrorizado pela violência, pela exploração, vivendo o medo da invasão por um país estrangeiro…
…é uma espécie de reflexão sobre a arte, uma metáfora de como encará-la: não apenas como um penduricalho, um prazer de ver um bom filme, mas um processo de transformação das consciências
Depois de quase duas décadas sem fazer um longa-metragem, o cineasta Maurice Capovilla, 65 anos, autor de filmes como: Profeta da fome, Subterrâneos do futebol e O jogo da vida, se prepara para estrear em agosto uma adaptação do romance de João Gilberto Noll, com título homônimo Harmada. A obra conta a trajetória de um ator desempregado — ou que se desempregou do sistema por não estar de acordo com ele. Vinte anos depois de ter sido um grande sucesso, é captado perambulando pela periferia de um país imaginário cuja capital é Harmada. “É evidente que esse país é o Brasil”, declara.
O filme além de falar da pessoa fracassada, do desempregado, mostra a posição política do ator. “Ele queria fazer um tipo de teatro, arte, expressão, que não tinha espaço dentro do seu país, e de Harmada, que seria o grande centro, onde as coisas acontecem. Durante o filme, o ator começa a se revitalizar e, enquanto caminhava de volta para Harmada, trabalha com amadores de um grupo de teatro mambembe, uma espécie de expressão livre de comportamento social e de arte fora dos padrões dizendo aquilo que as pessoas gostariam de falar, mas que fica entalado nas gargantas”, conta.
Arte para transformar consciências
“É uma metáfora sobre a possibilidade de vivência e vitória artística em um país, como o nosso, aterrorizado pela violência, pela exploração, vivendo o medo da invasão por um país estrangeiro, paralisado pelo impacto social da miséria que está transformando pessoas em bichos. E não adianta mostrar algo cor-de-rosa na televisão quando há uma crise social imensa e a causa não é a criminalidade. Ela é apenas um efeito dentro de um país onde, por um lado, há tanta riqueza e, por outro, muita gente morrendo de fome. Enquanto isso, temos uma bela propaganda de Fome Zero, só para inglês ver, já que não se mexe no projeto estrutural do país, na divisão da riqueza, realmente”, acrescenta.
Harmada, conforme Capovilla, também é uma espécie de reflexão sobre a arte, de um modo geral. Uma metáfora de como encará-la: não apenas como um penduricalho, um prazer de ver um bom filme, peça de teatro, música, exposição, mas um processo de transformação das consciências, algo muito mais sério. “Um filme tem que criar novas expectativas, caso contrário, nada vale, porque ficar ouvindo lindas músicas, dançarinas e tudo mais, depois sair do cinema do mesmo jeito que entrou, não adianta”, defende.
Além de cineasta, Maurice Capovilla também é produtor, roteirista, diretor de televisão e jornalista. Atuou nos jornais O Estado de São Paulo, Última Hora e Jornal da Tarde, mas abandonou o jornalismo em fins da década de 60 para se dedicar ao cinema e documentários de televisão. Teve seu primeiro contato com o meio em 1961, quando convidado para trabalhar na Cinemateca Brasileira — na época, uma das principais preservadoras de filmes do mundo e detentora de alguns dos maiores acervos audiovisuais da América Latina, criada por intelectuais, em 1949, na cidade de São Paulo.
Na Cinemateca foi encarregado de montar um departamento de difusão cultural. “Fizemos, durante o período de 1961 a 1963, um processo de expansão e divulgação do cinema, montando cineclubes no Brasil inteiro em um intenso trabalho junto às universidades atingindo grande número de estudantes, de norte a sul do país, principalmente em todo o estado de São Paulo. Foi a partir desses cine-clubes que se construiu um público para o cinema brasileiro durante a década de 60”, garante.
Havia participação da UNE (União Nacional dos Estudantes), por ser o órgão oficial dos estudantes, mas os cineclubes eram montados diretamente entre a Cinemateca e os organismos universitários, conta ele: “A Cinemateca era apolítica, funcionando apenas como difusor da cultura cinematográfica, mas conseguíamos realizar sessões politizadas.”
A verdade sobre o Brasil
Depois, Maurice pensou em fazer um filme, até que decidiu realizar aquele que foi o seu primeiro curta-metragem, em 1963, Meninos do Tietê, um documentário. “Logo depois veio o golpe de 64 e eu fiquei, por um tempo, fora de circulação, porque fazia parte do PC (Partido Comunista) e trabalhava como repórter político no jornal Última Hora, em São Paulo, sendo perseguido pela polícia política a serviço da ditadura”, conta.
Não ficou longe do cinema. Juntou-se a um grupo de amigos — entre eles o argentino Manoel Horácio Gimenez, que era o assistente de Fernando Birri, diretor de cinema e fundador da Escola de Cinema Documentário de Santa Fé, na Argentina — e, enquanto acontecia a repressão, realizaram quatro curtas apresentando questões nacionais que, juntos, formaram o longa-metragem Brasil verdade.
No Jornal da Tarde, como crítico de cinema e editor da página, dividiu o seu escasso tempo entre o jornalismo e o cinema, preparando o seu primeiro longa-metragem: Bebel, garota propaganda, 1968. Logo em seguida, em 1969, fez o longa O profeta da fome. Em 1971, foi para a televisão atuar no Globo Shell, da TV Globo — que posteriormente veio a se tornar o Globo Repórter nos moldes atuais. “O programa ficou dois anos no ar, antes de mudar de nome, mantendo o mesmo molde de apresentar documentários de 50 minutos. Somente em 1978 o programa alterou de estilo exibindo matérias especiais”, lembra.
Segundo Capovilla, nos anos 60 e 70, mais precisamente após o golpe político de 1964, a repressão aberta dificultava o apelo político, mas algumas pessoas enfrentavam o sistema e, mesmo de forma indireta, conseguiam furar o bloqueio. “Eu e um grupo de amigos cineastas batemos de frente com a ditadura durante um período, na década de 60, filmando passeatas, por exemplo, mas acabamos descobrindo que isso poderia prejudicar muita gente com o risco dos filmes serem apreendidos”, explica.
Buscando outra estratégia, além de realizar filmes que instigassem as pessoas a pensar, ainda na década de 60 Maurice participou da Cinemateca do Terceiro Mundo, um circuito clandestino de filmes exibidos nos centros acadêmicos das universidades, com discussões políticas, continuação ao trabalho que realizava na Cinemateca Brasileira.
A censura
“Éramos convidados para fazer a apresentação de um filme de cunho social, que usávamos para politizar ou, pelo menos, levantar a consciência das pessoas dentro do quadro de ignorância total da época, de intensa repressão e censura. Ficávamos, muitas vezes, mais de uma semana em cada cidade, mantendo a programação e coordenando os debates. Abríamos a seção com uma pequena apresentação que servia para situar o público, uma espécie de ‘orelha de livro’. Em seguida, fazíamos a exibição, depois iniciávamos um debate. Além disso, sempre realizei trabalhos que retratavam a realidade brasileira do momento, inclusive na televisão. Por exemplo os documentários que fiz para o Globo Repórter, entre eles, O Velho Chico, santo rio. Participei do grupo de trabalho e filmagens desse especial dirigido por Carlos Augusto de Oliveira, que mostrou pela primeira vez na TV a vida da população ribeirinha. Um retrato fiel da miséria e loucura existentes dentro do nosso país”, diz.
De acordo com Capovilla, os programas não eram censurados dentro da emissora. Primeiramente por serem produzidos pelo irmão do superintente geral da empresa — José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, que representava a própria censura da casa ou quem poderia exercê-la —, e também por serem uma espécie de ‘válvula de escape’ para que ninguém dissesse que havia censura muito rígida dentro do país e da Globo.
Maurice trabalhou no Globo Repórter, de 1971 a 1975, depois na TV Bandeirantes, dirigindo uma série de especiais e uma série baseada em obras de autores brasileiros. Em 1983 foi para a extinta TV Manchete, onde ficou até 1988. “Lá eu fiz grandes séries, como Os brasileiros, que foi o primeiro mapeamento cultural do Brasil. Baseado principalmente nos trabalhos do antropólogo Roberto da Matta, a série dividida em 12 capítulos, incluiu vários aspectos da cultura brasileira, numa análise de como é ser brasileiro. Fiz também uma série que durou quase dois anos, O desafio do mar, sobre o mar brasileiro, do norte ao sul do país, com os aspectos oceanográficos mais importantes da costa, a parte econômica, o peixe, as lendas, o turismo, entre outros”, diz.
Paralelo a esse período na televisão, realizou o que seria seu último filme antes de Harmada, chamado O jogo da vida, 1975, baseado na obra de João Antônio, Malagueta, perus e bacanaço, com participação de Gianfrancesco Guarnieri, Lima Duarte e Maurício do Vale.
Na década de 90, passou a se dedicar às TVs voltadas para as comunidades dentro das quais foram criadas. “Montei uma rede de TVs comunitárias no Estado do Rio. Começamos encapando a TV Búzios e depois vieram as TVs Paraty, Cabo Frio e Angra. Enfim, fizemos quatro TVs que começaram a funcionar junto à população, retransmitindo a Educativa, mas fazendo programação própria”, relata.
“Todas as equipes que trabalhavam nas TVs eram regionais. Montamos o equipamento, convidamos alguns jovens e eles as fizeram funcionar por cerca de oito anos, e acabando por falta de apoio. Com o fim das TVs, em 1996, fui para o Ceará criar uma escola de múltiplas artes, inspirada no Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília, chamada Instituto Dragão do Mar. Mas, em 1999, houve uma reviravolta política no estado em relação à área da cultura, e a idéia foi abandonada. A partir daí voltei para o Rio e passei a me dedicar à produção de Harmada.”
Lembrando o Cinema Novo
O filme, rodado nas cidades de Paraty e Rio, só pôde acontecer porque Capovilla venceu o concurso de Apoio à Realização de Obras Cinematográficas de Baixo Orçamento, do Ministério da Cultura. O projeto entra com 400 mil reais para a realização do filme vencedor, com a obrigação de não ultrapassar o orçamento de 1 milhão de reais.
Com o pouco dinheiro disponível, Maurice reuniu um time de veteranos, que contou com Paulo César Peréio, que vive o personagem principal, e as atrizes Malu Galli, Joana Medeiros e Luciana Domschke, do Teatro Oficina, em São Paulo. Na fotografia e câmera, uma dupla genial do cinema novo: Mário Carneiro e Dib Lufti. A produção ficou com Nei Santos, direção de arte com Carlos Liuze e a trilha sonora por conta de Matias Capovilla. A produtora executiva é Marília Alvim.
“Com essa turma fantástica eu pude realizar um trabalho nos moldes do cinema novo, quando se faziam filmes espetaculares com muito pouco dinheiro”, diz Maurice acrescentando que Harmada está em fase final de produção e poderá estrear no próximo Festival de Gramado, em agosto, caso seja indicado.