Há cerca de dez anos, as ruas de alguns bairros de Belo Horizonte (MG) exibem nomes de homens e mulheres (a maioria natural de Minas) que de alguma forma lutaram contra o gerenciamento militar no país (1964-1985). Essa homenagem foi prestada em 1994, através do projeto Rua Viva, que rebatizou cerca de 90 ruas com o nome desses heróis — muitos assassinados por envolvimento na resistência armada. Trata-se de uma exceção, porque são poucos os lugares em que militantes de esquerda figuram nas placas de ruas, avenidas e monumentos. Em geral, os logradouros ostentam nomes de políticos reacionários e representantes civis ou militares da classe dominante.
Do projeto nasceu o livro Rua Viva, trazendo a localização de cada via pública e informações biográficas sobre os homenageados. Partindo de dados contidos nessa obra, AND relembra os nascidos em abril e maio. É uma forma de resistir à imposição do panteão histórico das classes dominantes, empurrado goela abaixo desde os tempos da Coroa portuguesa. Uma maneira também de manter viva a memória da luta revolucionária no país.
Osvaldão, depois do golpe de 1964, entrou na clandestinidade devido a sua filiação ao Partido Comunista do Brasil |
Assassinato brutal
Quem passa pela Rua Osvaldo Orlando Costa, no bairro Braúnas, Belo Horizonte, talvez nem desconfie do valor de sua biografia para a história revolucionária do país. Nascido em 27 de abril de 1938, em Passa Quatro, sul de Minas, Osvaldo era conhecido como Osvaldão ou Mineirão. O apelido se explica: ele era um negro forte, de quase dois metros de altura, que participou de vários combates à frente do Destacamento B das Forças Guerrilheiras do Araguaia. Antes de se tornar guerrilheiro, Osvaldão foi atleta (praticou atletismo e se sagrou campeão carioca de boxe nos anos 50), oficial do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) e cursou até o 3° ano de engenharia na antiga Tchecoslováquia. Também estudou na República Popular da China. Depois do golpe de 1964, entrou na clandestinidade devido a sua filiação ao Partido Comunista do Brasil.
Entre 66 e 67, chegou à região do Araguaia. Lá, atuou como garimpeiro e mariscador, sendo considerado o maior conhecedor de toda a área, segundo informações do livro Rua Viva. Em 1969 foi morar às margens do Rio Gameleira, vindo a abrigar mais tarde outros companheiros em sua casa.
Foi assassinado em abril de 1974, perto da localidade de São Domingos. O livro cita uma reportagem, publicada no Jornal do Brasil de 22/03/1992, revelando detalhes de sua morte. Alguns trechos: “Ele teria ‘topado’ de frente com uma patrulha do Exército, levando um primeiro tiro de espingarda calibre 32 disparada por Mineiro, (…) guia recrutado pelo Exército. Caído, baleado na barriga, Osvaldão foi fuzilado pelos soldados. Seu corpo foi embrulhado em saco de lona e içado por um helicóptero. Segundo um dos participantes da patrulha, a corda se rompeu no ar a uma altura de 10 metros e, na queda, o corpo teve o tornozelo fraturado.” Em seguida, mais um ato de crueldade dos assassinos: Osvaldo foi decapitado e sua cabeça exposta.
Professora e guerrilheira
Áurea Eliza teria sido presa em Marabá, em 1973, e estaria “desaparecida” desde 1974 |
A antiga Rua Doze, do bairro Braúnas, leva agora o nome de Áurea Eliza Pereira Valadão. Essa mineira de Areado, nascida em 6 de abril de 1950, teve a infância e a adolescência de muitas outras meninas mineiras da época: morou numa fazenda, onde o pai trabalhava, recebeu formação religiosa e passou um tempo em um internato.
A transferência para o Rio de Janeiro, em 1964, parece ter mudado sua vida profundamente. Concluído o 2° grau no Colégio Brasileiro, em São Cristóvão, foi cursar Física na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1967. Na universidade, participou ativamente do movimento estudantil, compondo o Diretório Acadêmico de sua faculdade. Lá conheceria dois companheiros que também se envolveriam na luta armada: Antônio de Pádua Costa, o Piauí, e Arildo Valadão, com quem se casaria em 1970.
Os três eram militantes do Partido Comunista do Brasil e viajaram para o Araguaia no segundo semestre de 1970. Áurea trabalhou como professora na região de Caianos, ingressando no destacamento C das Forças Guerrilheiras do Araguaia, comandado por Paulo Mendes Rodrigues. Segundo a versão oficial, Áurea Eliza teria sido presa em Marabá (PA), em 1973, e estaria “desaparecida“ desde 1974.
Em declaração publicada no Jornal de Brasília, em 16/04/1992, Vitória Grabois (filha do dirigente comunista Maurício Grabois) afirmou que o corpo de uma jovem mulher, encontrado por legistas da Universidade de Campinas (Unicamp), poderia ser de Áurea ou de Maria Lúcia Petit, outra militante “desaparecida” durante a Guerrilha do Araguaia. Nonato da Rocha compôs o “Cordel da Guerrilha do Araguaia” e assim se referiu à Áurea: “Áurea era professora/ E decidiu improvisar/ Duma tapera, uma escola/ Prá criançada estudar/ Ela nada cobrava/ Ensinava e brincava/ Com as crianças do lugar.” (trecho do livro Rua Viva).
Massacre da Lapa
João Batista Franco Drummond foi preso na reunião do Comitê Central do Partido Comunista em 1976 |
Em 28 de maio de 1942 nascia, em Varginha (MG), João Batista Franco Drummond. Filho de João Batista Moura Drummond e Zilah Carvalho Drummond, tinha quatro irmãos. Depois de concluir o segundo grau no Colégio Loyola (BH), ingressou no curso de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1962. Na faculdade, presidiu o Diretório Acadêmico no período 64/65 e ajudou a organizar o 27° e o 28° Congressos da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Seu engajamento não se limitou ao movimento estudantil. Desde 1963, João tomava parte do movimento camponês do sul de Minas. Militou na Ação Popular (AP) e, posteriormente, na Ação Popular Marxista Leninista (APML)1. Entre 1969 e 1970 foi julgado pela Justiça Militar, tendo seus direitos políticos cassados por dez anos. Ele foi condenado, à revelia, a 14 anos de prisão.
Em 1972, já na clandestinidade, entrou para o Partido Comunista do Brasil. Foi preso no dia 16 de dezembro de 1976, no episódio conhecido como “o massacre da Lapa”. Na ocasião, a direção do partido estava reunida numa casa do bairro paulista quando as forças de repressão invadiram o local. Pedro Pomar e Angelo Arroyo foram assassinados. João foi levado ao DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna), onde foi torturado até a morte. Em nota oficial, o II Exército informou que ele fora “atropelado”. A memória desse herói nacional está preservada na placa da Avenida João Batista Drummond, no Bairro Braúnas, Belo Horizonte.
Música no Araguaia
Guerrilheiro no Araguaia, Paulo Roberto Pereira Marques dizia, em carta enviada à família, que “lutava para mudar o país” |
Mais um herói de maio: Paulo Roberto Pereira Marques nasceu no 14° dia desse mês, na cidade de Pains (MG), em 1949. Mudou-se para Acesita aos 15 anos, indo morar com uma tia. Depois foi para Belo Horizonte concluir o segundo grau no Colégio Lúcio dos Santos.
Funcionário do Banco de Minas Gerais, participou da greve dos bancários em 1968. Por conta disso, foi indiciado na Lei de Segurança Nacional.
Partiu para o Araguaia em 1969, indo morar na região denominada Gameleira. Juntamente com Ciro Flário Salazar e Oliveira, montou uma pequena farmácia. Ficou conhecido no lugar como “Amauri”. Era uma pessoa de “gênio alegre e espírito sempre bem disposto a tocar seu violão e cantar as músicas que falavam dos ideais de libertação e de uma vida mais justa para o povo brasileiro” (livro Rua Viva, p.58).
Enviou a última carta à família em 1972. Pedia para que não se preocupassem, pois não estava fazendo nada errado, “apenas lutava para mudar o país” (p.58). Dizia para a mãe, uma fã de Chico Buarque, que sempre se lembrava dela ao ouvir a música “Apesar de Você”.
Paulo é considerado “desaparecido” (um eufemismo oficialista para esconder os assassinatos cometidos) desde o ataque militar de 25 de dezembro de 1973 à região do Araguaia. Como um consolo à família, resta a bela homenagem no bairro Braúnas: a rua Paulo Roberto Marques.
Outros nomes
Ziláh Souza Spósito tinha um irmão ilustre: Henfil, o cartunista. Nascida em Bocaiúva (MG), no dia 22 de abril de 1928, ajudou a fundar a Ação Católica, onde militou. Fez carreira na Receita Federal, aposentando-se em 1988. Morreu em Belo Horizonte, no dia 19 de fevereiro de 1992. A Rua Ziláh Souza Spósito fica no Bairro Saramenha.
Nascido em 27 de abril de 1903, o padre Agnaldo Galvão Leal é um dos não mineiros homenageados pelo Rua Viva: é natural de Sergipe, cidade de Itaporanga D’Ajuda. Entre suas realizações estão a criação da Escola de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), a implementação da casa das domésticas e o seu trabalho na Ação Católica. Faleceu em 17 de maio de 1993.
Angelo Pezzuti da Silva participou das primeiras ações armadas desde 1968 |
Ângelo Pezzuti da Silva, psiquiatra, nasceu em 27 de abril de 1946, em Araxá (MG). Participou das primeiras ações armadas desde 1968. Foi preso pela Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), em 13 de janeiro de 69, em Belo Horizonte. Nas mãos das forças reacionárias sofreu diversas torturas. Esteve exilado na Argélia, no Chile e na França. Um acidente de motocicleta, em Paris, matou Ângelo em setembro de 75. A rua com seu nome fica no bairro Salgado Filho. O professor Lenine Moreira da Silva (que dá nome a uma rua do bairro Barreiro) não pertenceu a nenhuma organização de esquerda, mas marcou presença no movimento estudantil entre o fim dos anos 60 e início dos 70. Era mineiro de Diamantina, tendo nascido em 30 de abril de 1944. Faleceu em 14 de dezembro de 1992 devido a problemas cardíacos.
Alcides Salles Filho era capixaba de Vitória (ES). Nasceu em 2 de maio de 1945. Militou na AP e na APML, e trabalhou como operário em Belo Horizonte. Foi preso em 1968 por fazer panfletagem de um movimento grevista. Viveu na clandestinidade em São Paulo e foi preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury em 1972. Morreu atropelado em BH no ano de 1979. Sua rua fica no bairro do Trevo.
Nestor Veras nasceu em 19 de maio de 1915, em Ribeirão Preto (SP). De origem camponesa, militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), onde se encarregava do setor camponês. Foi cassado pelo Ato Institucional n° 1 2. Em 1975 teria sido preso em frente a uma drogaria de Belo Horizonte. O jornal “Correio Sindical” denunciou seu sequestro em maio de 1979. A rua Nestor Veras se localiza no bairro Serra Verde.
1 Ação Popular Marxista Leninista (APML) — organização clandestina surgida da transformação do grupo de orientação católica Ação Popular (formada em Belo Horizonte, 1962) em agremiação de diretrizes marxistas.
2 Ato Institucional n° 1 (AI-1) — Baixado no dia 9 de abril de 1964 pela junta militar golpista, cocedia aos gerentes militares as prerrogativas de cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos e deliberar sobre a demissão, a disponibilidade ou a aposentadoria dos que tivessem “atentado contra a segurança do país”. Também determinava em seu artigo 2º que dentro de dois dias seriam realizadas eleições indiretas para a presidência e vice-presidência da República. No dia 10 de abril, foi divulgada a primeira lista dos 102 atingidos pelo Ato, dentre os quais: João Goulart, Jânio Quadros, Luís Carlos Prestes e Josué de Castro.