Hoje é dia de rock?

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Hoje é dia de rock?

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Uma das surpresas dos estrangeiros que chegaram ao Brasil (e só depois dos estrangeiros, porque os brasileiros já estão acostumados) é verificar que as emissoras de rádio, de ponta a ponta do dial, só transmitem gravações do hit parade americano e, mesmo quando anunciam "os maiores sucessos da MPB", o que se ouve é o chamado rock brasileiro — que é o rock americano feito no Brasil.

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Como explicar esse fenômeno do predomínio da música estrangeira em um país de 184 milhões de habitantes, com quase 15 milhões de analfabetos acima de 15 anos, com uma dívida externa de mais de 200 bilhões de dólares e grande parte da população vivendo abaixo da linha de pobreza?*

A explicação está contida nos termos da própria indagação. O "milagre" econômico ocorrido no Brasil após a instauração do regime militar, em 1964, consistiu em promover a instalação de novas indústrias com importação maciça de capital e tecnologia, mas sem mexer na estrutura subdesenvolvida do campo, ainda vivendo a era do colono pobre, que trabalha terra alheia com a ajuda de uma enxada. Ora, como as indústrias estrangeiras atraídas por favores fiscais eram produtoras de bens conspícuos (automóveis, aparelhos eletrodomésticos, bebidas, cigarros, enlatados, produtos de beleza, etc.), o que se obteve — dentro de um processo de concentração de renda — foi a restrição do mercado comprador à área fechada das cidades, onde camadas da nova classe média gerada pela própria instalação das fábricas se transformaram em consumidoras do que ajudavam a produzir.

É de se compreender, pois, que estimuladas pela publicidade fetichisadora dos conceitos do novo, do jovem e do moderno — veiculadas pelas imagens dos filmes de Hollywood e dos seriados de televisão — essas camadas recentes da classe média, não contando com modelos próprios, tenham tendência a contemplar-se no equivalente de sua classe nos países desenvolvidos. E, assim, como (e nada por coincidência) o modelo padrão do mundo capitalista é o dos Estados Unidos, os pouco mais de 10 milhões de brasileiros com poder real de compra passam a agir, a vestir-se, a assumir propostas estáticas e a comportar-se exatamente como os componentes mais típicos da massificada classe média norte-americana.

Desta forma, é claro que, na hora da escolha do som de "sua preferência", a opção tende a recair sobre os tipos de música vendidos pelas rádios e televisões como "quentes", "atuais" e "universais", o que explica o fato de os disc jockeys — agora chamados de comunicadores — seguirem a lista dos top do hit parade americano.

Do ponto de vista cultural, essa colonização consentida (e até mesmo desejada, pois o "gosto" internacional é tido como o padrão ideal) acaba provocando nos músicos da classe média brasileira o desejo de integração com os estilos importados, o que pode ser comprovado, desde logo, pelos nomes americanizados ou internacionalizantes dos conjuntos surgidos a partir da virada das décadas 1950 / 1960. Apenas alguns exemplos: The Snacks (de onde sairia Roberto Carlos para liderar o movimento de rock diluído chamado iê-iê-iê — aportuguesamento da exclamação yeah! Yeah! — e por muitos anos liderou vendas com um sub-romantismo encaixado em foxezinhos típicos dos anos 30); The Sputnicks (onde despontaria o compositor Erasmo Carlos e, ainda Tim Maia, lançador em 1970 do estilo soul, aprendido nos anos 60 enquanto trabalhava como faxineiro e tirador de gordura em restaurantes de Nova York); Six Sided Rockers (que originaria Os Mutantes, muito popular de 1966 a 1972 com a filha de norte-americanos Rita Lee, que começou cantando em inglês no grupo colegial Teen Age Singers); Renato e Seus Blue Caps (cujo primeiro sucesso em 1965 seria Menina Linda, versão de Shoul Have Know Batter, de Lennon e McCartney; The Jordans; The Jet Blacks; The Clevers; Golden Boys, The pops, até Blitz, da era do Rock in Rio.

O que se conclui, a partir da realidade desse açambarcamento prático e ideológico do quinto ou sexto mercado mundial do disco pela música de massa estrangeira (principalmente a americana), é que existe uma inegável relação entre dominação traduzida — ao menos na área da classe média com relativo poder de compra — pela sujeição dos países subdesenvolvidos, ou em desenvolvimento, aos padrões ditados a partir dos mesmos centros de onde lhes chegam o capital e a tecnologia.

Aliás, para comprovar essa conclusão, no caso brasileiro, basta acompanhar a evolução histórica das influências musicais sofridas pelo país desde sua independência política da coroa de Portugal, na primeira metade do século XIX, até a atualidade. De fato, após as valsas trazidas em 1808 da Europa pelo Príncipe Regente D. João para desbancar as velhas gavotas e minuetes sobreviventes do séc. XVIII, a nobreza e a burguesia luso-brasileira viram desfilar pelos salões do I e do II Império, sucessivamente, as modas importadas da polca, da quadrilha, da scottisch e da mazurca.

Essa influência européia, que se fazia então via Paris — até a belle époque, a capital mundial da cultura, da moda e da diversão — correspondia ao atrelamento da antiga colônia portuguesa aos dos Rothschild, garantiriam até a Primeira República os grandes créditos necessários à modernização do país. Quando, porém a partir do fim do século XX, os Estados Unidos se tornam progressivamente os maiores parceiros econômicos do Brasil, principalmente através da compra do café (então o maior gerador de divisas do país) é ao som da música americana que a nascente classe média urbana brasileira passará a dançar. Assim, em fins do século XIX, a gente citadina brasileira, que desprezava os ritmos nacionais do lundu e do maxixe por serem músicas de negros e mestiços, passam, com a adoção do cake walk, a consumir ironicamente os gêneros musicais americanos que consistiam, afinal, produtos brancos fabricados a partir mesmo do original dos negros. Ao sincopado som do ragtime, jorram então ao longo do blackboton e do charleston. E, quando a partir da segunda década, se populariza a formação clássica do jazz band (que se põe em segundo plano, por sua conotação de "coisa antiga", o trio de flauta, violão e cavaquinho responsável pelo estilo do choro nacional), será a vez do Fox-trot em 1914, do shimmy em 1920, do swing em 1935, do boogie-woogie em 1939, é já agora toda a enxurrada da música de som vagamente latino-americano, produzida à sombra dos interesses da Política de Boa Vizinhança do governo Roosevelt, que vai inundar o mercado brasileiro. São as congas, rumbas e boleros, logo seguidas, no após guerra, pelos mambos, chá-chá-chás e calipsos.

Isso tudo até que meados da década de 1950, com o sucesso do plano Marshall transformando os Estados Unidos na maior potência econômica e financeira do mundo, a indústria da música americana resolve reviver o velho crazy blues sob o novo nome de rock n’ roll. E então não é mais apenas o Brasil que dança, mas todo o mundo, ao som de todos os nomes que se inventam para a mesma coisa: o ritmo do rock que funciona patrioticamente — para os americanos é claro! — como a Marselhesa para a indústria do consumo.

Oh yeah!


* Esses dados são de 2009.

Publicado originalmente em O Pasquim nº 844, 12/09 a 18/09 de 1985
Retirado de Música Popular: O ensaio é no jornal. José Ramos Tinhorão. Série Encontros da MPB, MIS editorial, Rio de Janeiro, 2001

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