Foi em 1978, parece que em agosto, não me lembro da data completa. Eu trabalhava num tema enjoado, promocional, admitido um mês antes numa entidade patronal, em terra distante, com espaço de trabalho minguado.
Demorei a entender que naquele dia não conheceria um, mas dois artistas populares, notáveis. O primeiro, famoso nacionalmente, João do Vale, que estava sendo aguardado. Eu fora destacado para recepcioná-lo. Dia seguinte, o cinema da prelazia (havia duas dessas casas na capital acreana, naquele momento) estourava em alegria e aplausos. O sucesso se repetiu outras vezes.
Mas o artista desconhecido tinha chegado antes. Entrou na sala buscando esclarecimentos sobre trechos realmente confusos de um edital para um concurso que oferecia quatro premiações — das quais ele ganharia três e, pelo tempo em que viveu na cidade, seria o autor mais premiado pelos seus cartazes, textos para teatro, o que fosse.
Quanto mais falava o desconhecido, mais entediante ficava o assunto em que eu trabalhava. Mas eu tinha que sobreviver e não podia parar para ouvir coisas de maior interesse. Sem tirar os olhos do texto, percebi que o sujeito sentara-se ao meu lado. No chão. Então, olhei para conferir. Estava descalço. Qualquer outro diria se tratar de um doido. Eu jamais acreditei nisso — e nunca me foi oneroso sustentar essa opinião. O suposto aventureiro logo iria-se revelar uma personalidade notável, um combatente incansável na frente cultural, com surpreendente capacidade de produzir e popularizar tudo o que parecesse melhor para o povo.
Jorge Carlos* apareceu de novo esses dias. Esteve três vezes na redação, uma delas com sua esposa acreana Mira, vindos de Portugal. Depois, rumou para Rio Branco — Acre, novamente Rio de Janeiro Lisboa, sem escalas, 10 horas sobre a imensidão do Atlântico.
Mas como era mesmo?
Lembramos muita coisa descrita numa linguagem quase que cifrada — para ganhar tempo, como que testando a memória, ora reafirmando, ora corrigindo nossos registros:
— Ali conheci muita gente que me convenceu a abandonar a idéia de ser rico, no que fico muito agradecido a vocês. Porque cheguei no Acre para isso. E era fácil, naquele tempo. Todos que chegavam lá, "capacitados" para sustentar intenções assim, praticamente conseguiram… mas roubando dos cofres públicos, lógico. Além do mais, a gente séria que encontrei ali me convenceu da necessidade de ingressar na resistência cultural. Isso foi decisivo.
Sem pretender justificar o tempo vivido ali, assim como um operário de extrema habilidade e precisão que dá forma milimétrica a uma peça, Jorge maneja a memória e revela os arquivos mais pertinentes no espaço de tempo de quase trinta anos — que parece valer menos de um segundo da história recente.
Das lembranças que começam em 1978, Jorge Carlos coloca em evidência:
— É certo que havia músicos, poetas, teatrólogos, cineastas… No entanto, não passavam ainda de pequenas amostras espontâneas e visíveis de um movimento ainda não aparente.
Assim, nem tudo que se apresentava vinha das entranhas culturais da região. Por exemplo, os valores culturais mais caros.
Do Acre, que anos a fio figurou como uma das regiões que mais contribuíra para a economia nacional, nada se devolve. O saque e a pirataria mantêm-se como negócio principal, hoje "enriquecido" com a burocracia comandada pelo Banco Mundial, auxiliada pelas King ongs (o nó das NGOs, gorilas transnacionais do ambientalismo, da ética, da cidadania, da neocaridade) e por uma pequena casta de nativos convertidos.
— Não havia uma casa de teatro, nada. Quando muito, o palco quadrado do auditório plano, encravado num estabelecimento escolar, construído no governo José Augusto, com a ajuda da CNT.
Num bairro, então muito pobre, originado de uma antiga estação agrícola experimental, o centro de atividades culturais, inaugurado na administração estadual 1975-79, teve a sua piscina aterrada pela administração que a sucedeu sob pretexto de que "os moradores podiam se afogar". Além do mais, "para que piscina em bairro pobre?" Um pequeno teatro ali cerrou suas portas para "evitar a malandragem" etc, etc. A biblioteca de 11 mil exemplares, construída no período, se transformou num forno, fazendo ferver livros e os usuários. Inundava nos meses de chuva.
Pesquisas, projetos de agricultura e de indústria ligeira abarrotavam arquivos sem apoio federal, depois o lixo quando se instalou de vez a versão tecnocrática e ongueira de planejamento.
Havia o povo, essa "força motriz na criação da história universal", aquele que o sistema oficial só admite citar como coadjuvante. Ali estava o melhor da população espremida na capital, recém expulsa dos seringais, vitima do avassalador sistema de aviamento, do regime semifeudal e a servidão ecológica —, sem hábitos avançados de trabalho, aparentemente sem identidade, diante da devastação que já se anunciava. Era a parte do grande povo brasileiro que, como em todos os lugares dessa terra, se recompondo aqui e ali para um dia futuro entregar-se aos grandes embates da emancipação das classes oprimidas e da independência nacional…
De cada canto
Um grupo fazia longa-metragem (com super-8, curiosamente), outros, dramatização (a cargo da agência local do Vaticano), mais alguns sonhavam ser músicos, escritores etc. Havia os que desejavam dedicar-se ao teatro, propriamente.
Quando veio o minúsculo teatro de arena — acompanhando um reforço na atividade cineclubista, bibliotecária, os de forrós etc — Jorge Carlos já produzia textos, desenhos, música, figurino, cenografia, maquiagem, iluminação, trabalhava como ator. Período fértil, porque havia vários grupos de teatro amador que se tornaram muito dinâmicos. O certo é que em dois anos, Rio Branco se transformou num viveiro de atores. Alguns, bem mais tarde, conseguiram frequentar, longe de sua terra e a duras penas, um curso superior de teatro. Há os que finalmente se tornaram produtores, músicos. Atuam em Rio Branco ou em outros estados.
— Você se lembra, o Acre virou campeão de premiações de teatro amador, enquanto outros estados experimentavam um acentuado declínio. Ao menos os espaços mais privilegiados não ficaram ociosos. Sempre havia uma montagem. Produção interna, outras vezes recebendo grupos. Realizações de cursos e uma infinidade de discussões, só que produtivas. Nunca uma cidade encenou tanta peça.
O teatro popular enfrentou inúmeras situações constrangedoras. Cedo, os jovens eram postos à prova no ambiente cheio de armadilhas ideológicas que a maioria deles venceu.
Os grupos formados por Jorge Carlos tinham características muito peculiares. Era a mesma gente, mais humilde, sofrida. Jorge Carlos eu via todos os dias no espaço onde eu trabalhava, revirando fichários da pequena mas selecionada biblioteca ("aberta a toda comunidade"), devorando textos medievais, modernos, contemporâneos, nacionais e estrangeiros, artigos sobre iluminação, escrevendo, desenhando, planejando, instruindo seus atores. Outras vezes, produzia crônicas e as lia para mim, ali mesmo. Depois, partia como um meteoro para realizar alguma idéia, ou um trabalho remunerado. A maior parte dos homens e das mulheres de diferentes departamentos que trabalhavam no mesmo local (e não era somente ali), toda aquela gente séria formava uma torcida sincera e uma platéia fiel de suas peças.
Entre os atores que atuavam com Jorge Carlos, muitos chegavam ainda crianças e particularmente os grupos por ele dirigidos desfrutavam da inteira confiança das famílias. Os atores eram arregimentados, às vezes, de forma cômica, como por exemplo em corrida de pedestres…
Melhor não esquecer, ele também cuidava da divulgação de seus espetáculos:
— É esse o cartaz, Jorge? Fartura de cores, hein? Preto, branco e laranja.
— Foi o máximo que esses sovinas patrocinaram, Zé. Mesmo assim, para conseguir essa miséria…
A gerência administrativa já se certificara que a luz elétrica estaria garantida. Mas não custava nada fazer uma provocação:
— Será que a Eletroacre vai cortar a luz por esses lados, hoje à noite?
— Só falta essa! Eu ainda tenho que retocar cenário, pegar atores em casa que as mães não deixam vir se não for comigo. Não azeda! Logo na estréia…
Depois, a esperança que sempre se realizava. Casa cheia, o público rindo, abraçando os atores, seus filhos acreanos, tão dignos, dizendo coisas úteis e contrariando a ditadura.
Jorge Carlos se transferira para Porto Velho, retornando em 1984. Os governadores eleitos tomaram posse no ano anterior e as eleições criavam a ilusão de que a democracia representativa parlamentar enfraqueceria a reação e devolveria ao povo, ao menos, um pouco de seus acanhados direitos roubados em abril de 1964.
O problema é que, desde há algum tempo, os filhotes do oportunismo tinham abandonado os ovos.
E isso faz lembrar que em 1979, quando um fornecedor industrial — que parecia bem informado — numa de suas visitas a Rio Branco, respondeu seco às pessoas que perguntavam sobre uma figura que despontava como líder sindical e atendia pelo nome de Lula:
— Hum! Dou minha cara à tapa se esse sujeito não for policial!
Restaram poucos registros sobre os grupos de teatro amador, como o trabalho acadêmico A cidade encena a floresta; Levantamento histórico do Teatro no Estado do Acre, de Maria do Perpétuo Socorro Calixto Marques — Edição Edufac — Rio Branco, 2005.
Muitos saíram do Estado, outros se foram — como se diz — em razão da "data do nascimento vencida", ou se afastaram por não encontrar mais espaço para sua sobrevivência. Enfim, a geração atuante naquele momento foi, por sua vez, inapelavelmente substituída, como deve ser. O desenho original de Rio Branco praticamente se desfez. É outra a cidade, sem casas de madeira, sem as ruas cheias de conhecidos (da época), onde se podia caminhar tranqüilamente pela madrugada. Nada a lamentar. São outras as gerações. Também outras (e tão graves) dificuldades se impõem.
Um bar em Lisboa
De repente, em 90, lá se foi Jorge no rumo do Rio e, depois, Lisboa. Só voltou a passeio. A experiência tinha acrescentado à sua bagagem intelectual pinturas feitas com café, crônicas, contos ligeiros, que fez dele um escritor.
Mira, a brava e tranquila companheira, arrumou emprego até na Suiça, na Casa Latina. Trabalho gráfico. Três meses sem ver o sol, debaixo de um frio polar.
— Deu para sobreviver, porque ali também tinha povo, o que mais importa — afirma.
Jorge e Mira inverteram a tradição portuguesa e montaram o bar Mané do Café, em Lisboa:
— Portugal recebia bem os brasileiros, antes de perder seus valores, mesmo os de velha democracia, ao ingressar na UE. Ganhou dinheiro o pobre Portugal. Depois que os portugueses acharam que estavam ricos, começou o aperto. Perderam o emprego, a amizade, a convivência familiar. Mas tem focos de resistência. Em Lisboa, por exemplo, o menor espaço cultural urbano é o antigo Tejo Bar, hoje Mané do Café. Não é um bar brasileiro, mas de brasileiros. Verdadeiramente internacional. Fica no Beco do Vigário, para as bandas do Alfama [a Lapa de lá], centro de Lisboa.
Vai gente para ver a prata da casa. Grandes músicos que tocam e cantam porque gostam. Ali, fazem arte por prazer.
Ah, Jorge também é instrumentista. A velha guitarra, feita no Brasil há mais de cem anos e que seu pai achara no Rio de Janeiro, foi muito usada no Acre. Hoje, aposentada, repousa na parede do bar. Jorge usa um violão, toca muito fado. Faz a abertura musical de todos os dias.
O bar é frequentado por (além de estudantes de várias partes do mundo que vão ter à Lisboa) grandes nomes em Portugal, entre poetas, fotógrafos, romancistas, pintores, e os que desejam vê-los. Das visitas ilustres, cita o Mestre José Ramos Tinhorão, sempre que vai à Portugal. E que chegou a dar uma palestra no bar. Pedro Godinho, português de origem, viveu na Bahia dez anos e faz ponto obrigatório no Mané do Café. Talvez seja o músico e cantor que tem o mais poliglota dos repertórios do mundo inteiro. Conhece música japonesa, grega, francesa, italiana. Em seus "momentos esquizofrênicos" canta uma música portuguesa muito famosa, tendo como letra o Desafinado. Godinho só canta ali. Em outros lugares, apenas toca.
O maior admirador de Noel Rosa é português. João Nogueira, o Janeca, um baixista muito conhecido em Portugal. Participa do Grupo Lundum, em tournê pelo Brasil. Noel Rosa Intimou, é lema e título de seu show.
Pedro Moura, violonista e cantor (brasileiro) vive em Portugal. Glória Lopo é violonista da pesada. João Fião, português. Percursionista. Toca em escola de samba (e dai?) em Portugal. Nunca veio ao Brasil. Mas parece que no carnaval vindouro…
Bossanovista coreano também não é possível, mas tem no Mané do Café. Da primeira vez, começou a tocar. Estava sozinho. De uma mesa, uma mulher cantou para completar Barquinho, Garota de Ipanema etc. Não se conheciam. Ela é espanhola. Nunca estiveram no Brasil. Aquele dia formaram uma dupla. Firmou.
Mio Matsuda, uma japonesa que cantava fado. Estudiosa de música da lusofonia (música brasileira, africana, portuguesa), gravou, no Brasil, o CD Atlantida. Estudava em Portugal, tinha uma bolsa.
Miguel Sermão é ator. Preto africano, do teatro Comuna. Grande instrumentista. É o Baden Pawel do Metrô. Para pagar o conservatório, tocava na Rua João Pernambuco, os Vivaldi, Bach, VilaLobos.
Vai gente para assistir, por exemplo, Jojó, também africano. Toca magnificamente. O que essas pessoas não sabem é que ele aprendeu a tocar recentemente. Se todos tocam…
Maiara fez sucesso. Tem fã clube em Portugal. É a primeira filha do Jorge. De repente entendeu de fazer shows. Querendo, e querendo aprender. Teve grandes professores, como Múcio Sá — muito famoso em Portugal, toca tudo que tem corda. Maiara hoje é profissional.
Todos ao bar aberto a cada dia, desde as 22 horas. Não há noite de maior movimento. Lota a qualquer hora. Mas os fregueses começam a chegar lá para 1hora, duas. O bar já tomou uma multa pesada, atuando após o horário permitido. Os fregueses se cotizaram e pagaram. Então, quando alguém acaba de cantar, as pessoas não batem palmas nem estalam os dedos. Ligeiro, elas esfregam as mãos. Ali é aplauso.
Alfama tem ruelas mais estreitas que de costume. Jorge Carlos ilustra a descrição do bairro com uma anedota muita conhecida em Lisboa. Um menino chega em casa chorando porque os colegas costumam chamálo de cabeçudo, o que, depois de algumas horas, se tornou insuportável naquele dia.
— Uá… É que os colegas se põem a me chamar de cabeçudo, cabeçudo, cabeçudo…
O pai pergunta:
— E por que não lhes dá uma tareia?
Ao que o filho responde choramingando: — Sim, sim, eu corri atrás, mas eles se meteram lá pelas ruas de Alfama…
* Jorge Carlos Amaral de Oliveira, é carioca. Nasceu no Rio de Janeiro, em 23 de julho de 1952. Em Portugal continua ator (também encenou peças na França e na Suiça), manipulador de bonecos, compositor musical (também faz suas partituras), cenógrafo, cenotécnico, sonoplasta, contraregra, assistente de produção, produtor. Enfim, tudo que o seu talento de incentivador cultural lhe aconselha a fazer e que ele realiza com muito talento. Ultimamente suas pinturas (café sobre cartão), assim como contos, crônicas e romances atingiram à maturidade de um excelente artista plástico e escritor.
No 14º anoO governo constitucional do Acre não caiu no primeiro momento, mas enfraqueceu rapidamente com seguidas traições. O primeiro governador eleito tomou posse em março de 1963. Com apoio do presidente João Goulart, o professor de filosofia de 33 anos José Augusto de Araújo imediatamente reformou a administração estadual, a saúde e a instrução públicas, construiu pontes, rodovias e fortaleceu o setor agrícola preparando o terreno para a implantação do que pretendia ser a reforma agrária nacional. Tornou-se presidente de honra das Ligas Camponesas do Acre (aquelas mesmo, do Francisco Julião), a segunda maior do país em filiados. Poucos meses após o golpe, um simples capitão, enviado do Rio de Janeiro para comandar a 4ª Cia. de Fronteira, em Rio Branco, avançou contra a Assembléia Legislativa. Em seguida, invadiu o Palácio obrigando José Augusto a assinar a renúncia. Deram voz de prisão ao governador. Logo após, foi julgado e condenado. Num hospital do Rio de Janeiro, morreu 7 anos depois, pobre, isolado. O capitão foi nomeado governador (1964-67). Durante 18 anos o Acre ficou impedido de eleger governadores e prefeitos, uma pena que, em parte se estendeu consoante com a geopolítica¹ que se mantinha traçada para "áreas de faixa de fronteira". Porém, desde o golpe, não foi difícil para a reação controlar o movimento de massas. Praticamente a única forma de obter emprego assalariado nas áreas urbanas eram as administrações federal, estadual e as prefeituras. Não se dispunha de empreendimentos urbanos privados equivalentes aos de porte médio do Sul, do Centro Oeste. As pequenas empresas, comerciais e de organização familiar, na sua esmagadora maioria, dependiam das verbas do governo. Inúmeras colônias, ainda bem próximas ao centro de Rio Branco começavam a ser abandonadas, vendidas, a exemplo dos seringais falidos. Um plano de integração das terras vinha sendo colocado em prática pelo imperialismo ianque em toda a América Latina, com grande impulso a partir de 1964. Desde o Sul do Brasil, logo as fazendas e principalmente as pequenas propriedades conheceram sua ruína. O latifúndio tornou-se ainda mais concentrador e, em pouco tempo, criaria a falácia da última "fronteira agrícola" ². No Acre, as administrações estaduais que se sucederam ao golpe contra-revolucionário de 1964 tornaram-se benevolentes com os latifundiários do Sul (exceto a de 1975/79, administração Geraldo Mesquita, caracterizada por um claro desprezo aos latifundiários) que se acomodaram nas duas micro-regiões acreanas, incendiando a floresta, comprando e vendendo o que nunca lhes pertenceu. Ladrões, nada mais. Os trabalhadores que permaneceram nos seringais, dessa vez plantando, recebiam ordens de despejo, em favor de algum "estrangeiro", latifundiário recém-chegado. Momento seguinte, tinham suas casas incendiadas pela polícia. Se insistiam, eram assassinados. Um relatório do INCRA, de 1979, registrava 6.9 milhões de hectares vendidos aos latifundiários chegados, para um Acre detentor de 15 milhões de hectares. Mas para legalizar a venda dessas terras, "o INCRA teria que fazer uma discriminatória, observando a logicidade da cadeia dominial até chegar ao título de origem que poderia ter sido expedido tanto pela Província do Amazonas, como pela Bolívia e até pelo Estado Independente do Acre"³. Colonos e seringueiros fugiram para os seringais da Bolívia. Os demais vieram compor um cinturão de miséria que cresceu rapidamente ao redor de Rio Branco. Conflitos armados se sucederam e se estenderam entre posseiros e jagunços. Acumulavam-se as denúncias sobre trabalho escravo e matanças perpetradas por pistoleiros. A ditadura passou a temer que o movimento espontâneo se transformasse em guerrilha. Mesmo assim, o maior líder sindical do Acre, Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, foi covardemente assassinado em 21 de julho de 1980, com três tiros de revolver, dentro do sindicato que dirigia, em Brasiléia. 1 Geopolítica, expressão fartamente utilizada nas academias, mas cujo significado verdadeiro é geografia do imperialismo. 2 Na Amazônia, na década de 80, o imperialismo estabeleceria as chamadas "reservas extrativistas", entre outras modalidades de reservas estratégicas. 3 Acre, uma história em construção. Livro didático. Valdir de Oliveira Calixto; Josué Fernandes de Souza; José Dourado de Souza. 2ª Edição. SEC — FDRHCD. Rio Branco. 1983. 3 Acre, uma história em construção. Livro didático. Valdir de Oliveira Calixto; Josué Fernandes de Souza; José Dourado de Souza. 2a. edição. SEC — FDRHCD. Rio Branco. 1983. |
Acre para quem?
O Acre foi criado pelo então nascente capital burocrático monopolista do século 19, predestinado a não produzir riqueza para si, nem permitir dispor de classes dirigentes locais, senão que, no máximo, intermediárias e de vida efêmera, limitadas a realizar negócios e gerenciamento com rendas que mais parecem comissão. É natural que, sob o marketing do ecologismo e do ambientalismo, os organismos de extensão e apoio técnico (para latifundiários brasileiros) políticas "agrárias" sofram transformações, como agora, em função das estratégias mais contundentes de zoneamento monitorado pelo PPG-7, numa orquestração de ingerências do International Monetary Fund/Wolrd Bank (FMI-Banco Mundial). O Estado conheceu no período pós-64 inúmeras ações federais de desenvolvimento de capital monopolista, coincidente com a nova política de concentração da propriedade de terras na América Latina. Surgiram a Operação Amazônica; a Sudam; a Transamazônica (um trecho); campanhas promocionais para investimentos em pastagens e pecuária de baixa qualidade; Programas de Integração Nacional — PIN, 1970; Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste — Proterra, 1971; Programa de Agrominerais da Amazônia — Polamazônia, 1974; o PDRI; o Probor I, II e III (1972, 77 e 81).
Assim, em 1975/79, o INCRA foi obrigado a contestar os documentos baseados na simples escritura pública e, em 1976/77, os latifundiários tiveram seus créditos e incentivos fiscais bloqueados em razão do questionamento aos documentos de propriedade. No entanto, a resposta que somente poderia partir dos trabalhadores pobres na luta pela posse da terra, foi desviada pela ditadura com a implantação dos Projetos de Assentamento Dirigidos, PADs, promovidos pelo INCRA responsabilizando órgãos do Estado. Onde havia posseiros, o mesmo órgão gestor do latifúndio criou os Projetos de Assentamento Rápido — PAR. Tais medidas permitiram atenuar as contradições numa região onde colonos e ex-seringueiros formam uma população pequena, e o vazio demográfico representa um dos maiores problemas para a questão agrária, em particular no Acre. Finalmente, em 1984, as localidades Califórnia e Extrema, em Rondônia se transformaram numa barreira de terror que empurrava de volta milhares de camponeses que vinham do Sul em direção ao Acre. Mas oficialmente, já em 1998, havia 39 áreas "protegidas e delimitadas", com sete unidades de conservação, sete projetos de assentamento extrativista e 25 áreas indígenas, totalizando 4.254.730 hectares, 25.67% do Acre. Hoje, cai inteiramente a máscara do discurso iniciado com as reservas extrativistas das "áreas de proteção", prontas para serem abertamente desnacionalizadas, e tantas serão ainda as operações extrativas que nenhum "monitoramento por satélite" poderá fiscalizá-las, explicou há pouco o geólogo Aziz Nacib Ab´Saber. Seguindo-se o golpe de 64, também a história dos movimentos populares foi acometida por uma estranha amnésia. Súbito, todas as lutas populares tinham que ser compreendidas como que historicamente dirigidas pela igreja, auto intitulada progressista. Mais tarde, tão logo se cristalizou o poder do cartel que controla o PT, o MST, as ONGs etc., Wilson Pinheiro, entre outras verdadeiras personalidades da luta pela terra, passou a ter sua memória sistematicamente distorcida e apagada, cujo heroísmo foi transferido para os ambientalistas *. * Oito anos depois, no dia 22 de dezembro, é assassinado o agente ambientalista, que havia fundado o Conselho Nacional de Seringueiros. Chico Mendes, cercado pelas nascentes Ongs e "pesquisadores", foi levado a apoiar as propostas de criação de reservas extrativistas e a não lutar pela posse da terra, mas pelos "empates" — para impedir que os latifundiários ateassem fogo nos seringais que tinham "comprado". O PT encampa o nome de Chico Mendes e até o de Wilson Pinheiro, dando preferência a Chico como aval para a sua propaganda de "partido dos pobres" e "ambientalista". |