Após devastar 40 municípios ao sul de Santa Catarina e nordeste do Rio Grande do Sul, o primeiro furacão registrado na América do Sul vem sendo estudado por cientistas do Brasil e do exterior, intrigados com as características únicas do fenômeno. A maior dúvida reside em como um ciclone extra-tropical, fenômeno comum na região quando deriva para o oceano, transformou-se num forte furacão que se direcionou para o continente. Ocorrido na madrugada entre os dias 27 e 28 de março, sábado e domingo, o furacão deixou 33 mil casas destruídas e milhares de desabrigados entre Araranguá (SC) e Torres (RS), cidades 80 km distantes.
Uma campanha de doações vêm sendo realizada desde então, e em ritmo de mutirão a população ainda tenta apagar as marcas da destruição. Nas lojas de material de construção faltaram telhas e tijolos. Houve duas mortes no continente relacionadas diretamente ao fenômeno, além do desaparecimento de cinco pescadores que estavam em barcos pesqueiros próximos à costa e da ocorrência de alguns casos de enfarto causados pelo pânico que se apoderou de parte da população pelos ventos de até 150 km/h.
A BR-101 ficou congestionada até o começo da tarde de domingo devido à queda de mais de 150 árvores na rodovia. Cidades ficaram dias sem luz nem telefone. Muitas perderam safras inteiras de arroz, feijão, fumo, mandioca e outros produtos.
Junto à seca que aflige o sul do Brasil há meses, o furacão deixou uma despesa superior a 200 milhões de reais para a agricultura catarinense. Nos últimos dez meses choveu uma média de apenas 70 milímetros por mês, quando o normal são 185. Ainda choveu granizo, gerando perdas em vários municípios a nordeste do estado. No Rio Grande do Sul, 47% dos municípios já declararam estado de emergência devido a estiagem, apontada por alguns estudiosos como uma das possíveis causas que desencadearam a formação do furacão, além do efeito estufa, que pode estar elevando a temperatura dos mares do Atlântico Sul.
Furacões são eventos de clima comuns na costa do USA, por exemplo, onde a temperatura do mar é de 28º C, em média. Mas no sul do Brasil a média de temperatura da água do mar é de 24º C. A temperatura de disparo de um furacão é de, no mínimo, 26º C. Com temperatura menor que esta, não há vapor e umidade suficiente para alimentar um furacão. O efeito estufa pode estar aumentando a temperatura do mar, e conforme apurado, possibilitando que o sul do Brasil venha a conhecer mais “eventos” como esse.
Informações contraditórias
Formado há 500 km da costa brasileira, quatro dias antes o fenômeno foi identificado pelo Instituto Nacional de Metereologia (Inmet) e pelo Centro Integrado de Meteorologia e Recursos Hídricos de Santa Catarina (Climerh) como um ciclone extra-tropical, muito comum na região, especialmente no outono e inverno, causando no máximo ressaca e agitação marítima, com ventos de até 100 km/h. Costuma se dissipar ainda no oceano. Mas na sexta-feira surgiram controvérsias sobre a potência real do fenômeno. Primeiramente porque ele se dirigia lentamente, a 20 km/h, em direção ao continente.
Os institutos de meteorologia National Oceanic Atmospheric Administration e o U.S. Hurricane National Center of Miami, ambos do USA, confirmavam ventos de até 150 km/h, o que colocava aquele ciclone extra-tropical na categoria 1 da escala de potência de um furacão. O aparecimento de um olho — região sem nuvens, no centro do fenômeno — nas fotos de satélite era fato inédito, surpreendendo especialistas.
No sábado de manhã o Inmet, há menos de 24 horas da chegada do furacão ao litoral catarinense, através de informações obtidas por sensores a bordo de satélites e simulações feitas por modelos numéricos, concluiu que o ainda ciclone enfraqueceria, pois apresentava ventos de 60 km/h. Porém, fazia ressalva para a possibilidade de que, aproximando-se da costa, poderia haver uma “intensificação localizada”.
Já o Climerh, através de informações obtidas diretamente de barcos pesqueiros em alto mar e que registravam ondas de até 4 metros e ventos de até 100 km/h, não avalizava essa nova informação, segundo Maria Laura Rodrigues, responsável pelo Setor de Meteorologia do instituto. Suas informações coincidiam com as que vinham do USA.
Pelo sim e pelo não, a Defesa Civil decretou estado de alerta no sul de Santa Catarina, mobilizando cerca de três mil homens da Polícia Rodoviária e do Corpo de Bombeiros para a região. Pensou-se em evacuar as cidades, mas talvez o estado precário da BR-101 e a intenção de evitar o pânico generalizado, junto às previsões mais positivas, tenham feito a decisão recuar. Passados os primeiros minutos da madrugada de domingo, dia 28, começou a ventar mais forte. Logo veio a chuva intensa e a inacreditável ventania. Em poucas horas destruiu muito. Alguns barcos pesqueiros conseguiram escapar rumando para o litoral gaúcho, sendo auxiliados pelos metereologistas do Climerh. Porém dois barcos, o Valio II e Antônio Venâncio, naufragaram, deixando onze desaparecidos. Seis foram resgatados.
Longe do mar, que lhe dava o vapor e a umidade como motor, o furacão dissipou-se alguns quilômetros adentro do Rio Grande do Sul, no início da manhã de domingo. Na segunda-feira, enquanto começavam os mutirões de reconstrução das cidades, o Inmet admitia ter subestimado a violência do furacão. Segundo Alaor Dall’Antonia Júnior, Coordenador-Geral de Agrometeorologia do Inmet, as informações “foram fruto de medições indiretas, sujeitas a interferências, ou fruto de simulações numéricas, e foram usadas com cautela pelos órgãos operacionais. Infelizmente não havia bóias e navios na região para coletar informações que permitissem conhecer a real intensidade do ciclone.” A preferência das informações recaíram nos satélites estrangeiros.
Um grupo de especialistas do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membros do Grupo de Estudos de Desastres Naturais (Gedn) relatou para a imprensa local sua experiência com o fenômeno. Emerson Vieira Marcelino e Roberto Fabris, ambos geólogos, mais o oceanógrafo Frederico Rudorff e o físico e professor de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFSC Reinaldo Hass, observaram o furacão a céu aberto, da praia de Arroio do Silva, uma das primeiras a serem atingidas. Mantiveram contato direto e constante com a Defesa Civil, inclusive quando a ressaca que atingia a região começou a destruir algumas construções à beira-mar.
Passado o furacão, a prevenção
Uma das principais diferenças entre um ciclone e um furacão reside na temperatura do núcleo: no furacão a temperatura é bastante elevada, no ciclone, fria. O ciclone gira todo na mesma direção, enquanto o furacão tem a parte de baixo e a de cima girando em sentidos inversos. Portanto, de duas coisas a população se beneficiou: uma, a caracterização científica do fenômeno, até então insistentemente chamado de ciclone. Outra, proveniente da administração dos países semifeudais, a primeira providência (clássica e infalível) para os casos de calamidade pública: a adoção batismal de um apelido, no caso, Catarina.
O fato é que o grupo pôde sentir na pele que se tratava, realmente, de um furacão. Os membros do grupo sentiram muito frio no início da ventania, mas quando ficaram em seu olho, sentiram um calor que os obrigou a se desfazerem das jaquetas. Com a passagem do olho e a volta da ventania, o grupo, por fim, havia perdido seus agasalhos e chegou a pensar em morte por hipotermia. Com o choque térmico, seus corpos começaram a tremer e perder o controle. Na terça-feira a Agência Nacional Americana de Meteorologia confirmou a alta temperatura do olho através de imagens de satélite que captaram radiações por microondas.
O Inmet afirma que o Catarina I foi um híbrido. Nota técnica conjunta do Centro de Pesquisas Tecnológicas, Instituto Nacional de Pesquisas e Inmet, explica que “o processo de formação do furacão é diferente ao do ciclone observado. A partir do momento em que apareceu o olho do ciclone e as bandas de nuvens em rotação (quinta-feira, 25), surgiu a especulação de que poderia ser um furacão. Na sua fase final de decaimento, de fato, o sistema perdeu seu núcleo frio.”
O furacão Catarina I foi subestimado pelos institutos de meteorologia, enquanto à população local, incrédula, restou assistir seu patrimônio se esvair ao forte vento. Agora a Defesa Civil pensa em como será quando um novo furacão se aproximar da costa brasileira. O governo federal prometeu verba para auxiliar a reconstrução das cidades, mas até agora isso significou apenas mais uma das muitas promessas do gênero.
O progresso da especulação
Nos estados ao norte da América, que costumam ser assolados por furacões, o problema certamente não é resolvido, mas o capital financeiro progride. Financiadoras incluem no pacote de seguro das residências o fator hurricane (furacão) e twister (tornado). A maioria das casas deve possuir um porão onde as pessoas se abrigam dos fenômenos, que já tiveram ventos a 500 km/h registrados. Ao menor indício de tormentas do tipo, as pessoas são convencidas a utilizar suas economias em estoque de água, comida e madeira para vedar suas residências. Algo que deve ser inaugurado por aqui se houver um Catarina II, ao menos por imitação acompanhada de rendimentos. Tranquilo que acontecerá, claro que numa versão “carente”, com oferta de planos de seguro e crédito-fatalidade que não garante coisa alguma, exceto o pagamento de intermináveis prestações e juros altíssimos.
Enquanto os especuladores não vêm, ao menos o Inmet — que confirma a possibilidade de novos eventos dessa natureza —, com a finalidade de prevenir a população, garante manter “uma rede de bóias de deriva e fundeadas como parte do sistema de observação em desenvolvimento pelo país, permitindo que se acompanhe a evolução dos sistemas que se desenvolvem no oceano”, explica Dall’Antonia. O Plano Nacional de Bóias Oceanográficas é um projeto da Marinha desenvolvido em conjunto com outras entidades governamentais que, desde 1998, vem lançando bóias de deriva e fundeio na costa brasileira, segundo informações passadas pelo Inmet.
Infelizmente não havia, próximo à região onde o Catarina I se formou, uma única bóia dessas.