Ilustres e desconhecidos – A difícil relação entre os compositores e o público na música popular bra

Ilustres e desconhecidos – A difícil relação entre os compositores e o público na música popular bra

Elis Regina, Maria Bethânia, Clara Nunes. Esses são alguns nomes de grandes intérpretes da música popular brasileira. Por toda parte, em diversos meios, seus nomes são conhecidos e consagrados. Reconhecimento merecido. Afinal, o talento e o sucesso dessas artistas não se deve simplesmente à afinação ou à bela voz que possuem. No trabalho dessas pessoas também está a interpretação e a emoção, uma arte que não se aprende e não está simplesmente na técnica. É a arte de colocar sentimento na música, um dom de quem conhece o seu meio, tem consciência do que está fazendo e cantando.

É louvável que a voz e o nome dos nossos grandes intérpretes esteja viva na vitrola e na memória das pessoas. É gratificante escutar elogios, não só à voz da Elis, mas à forma como ela conduzia a canção, à emoção que demonstrava ter pelo seu trabalho. Mas não é nem um pouco gratificante certificar-se de que as pessoas não conhecem, e, na maioria das vezes, nunca ouviram falar no nome dos autores das músicas interpretadas por esses cantores que tanto admiram, ou que, pelo menos, escutam.

Quantos supostos conhecedores da música popular brasileira sabem que a música Vou deitar e rolar (Quaquaraquaquá), interpretada por Elis Regina é do violonista Baden Powell e do grande letrista da música popular brasileira, Paulo César Pinheiro? Quantas pessoas sabem que parte considerável das canções interpretadas por Elis são de autoria da dupla Aldir Blanc e João Bosco, ambos lançados pela cantora? E para completar, uma minoria dos frequentadores das rodas de samba associa as músicas gravadas por Clara Nunes, cujo repertório é constantemente desfiado, aos seus autores, como Paulo César Pinheiro, Ivor Lancellotti, Mauro Duarte, etc. Poucos sabem que o samba Portela na avenida, um dos maiores sucessos em rodas de samba da classe média universitária, é resultado de uma parceria entre Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro.

Criação artística e alienação

Isso acontece porque a relação entre autoria e obra só existe quando o autor é o intérprete. Na verdade, a relação comum é entre música e intérprete. Estamos falando, numa palavra, daquilo que Marx definiria como a alienação do trabalho intelectual, o sujeito criador não sendo reconhecido através de sua obra, do objeto de sua criação. Isso explica, por exemplo, porque um samba como Sonho meu, gravada por grandes intérpretes como Maria Bethânia e Gal Costa, tem sua autoria associada somente à Dona Ivone Lara, compositora do samba e responsável por uma de suas gravações mais conhecidas. Com isso a contribuição do letrista Décio Carvalho fica esquecida. E ele é o responsável pela letra da música, cujo refrão — “Sonho meu / Sonho meu / Vai buscar quem mora longe / Sonho meu” — multidões cantarolam há mais de duas décadas em todas as partes do país.

A mesma injustiça também é cometida contra o letrista mineiro Fernando Brant, parceiro de Milton Nascimento em grande parte de suas músicas. Mais uma vez, somente um dos artistas é reconhecido, por motivos — como diria Brecht — da “ordem da fabricação de salsichas” (Santa Joana dos Matadouros), isto é, de mercado, entidade que historicamente os homens se esforçam por naturalizar.

Chico Buarque e Sidney Miller

Um dos grandes compositores da Música Popular Brasileira, Chico Buarque de Hollanda, é definitivamente um artista reconhecido. Tem seu nome vinculado a todas as suas canções porque, entre outras razões, é ele quem as canta. Mas será que Chico — que Millôr Fernandes um dia chamou de “a única unanimidade nacional” —, teria a força e o reconhecimento que tem se suas músicas não fossem cantadas por ele? Será que se apenas outros intérpretes as gravassem e ele não tivesse jamais sido o bom menino dos olhos-cor-de-ardósia, seu nome teria a mesma pouca repercussão que têm os de outros grandes compositores da maior importância, como Paulo César Pinheiro, Aldir Blanc e Hermínio Bello de Carvalho?

Para José Luiz Herência, letrista e coordenador da área de música do Instituto Moreira Salles (instituição cultural que preserva e organiza importantes acervos musicais, como os de Pixinguinha, José Ramos Tinhorão e Walter Silva, o Picapau), “há uma série de contingências que podem tornar um artista conhecido ou não. Isso depende de diversos fatores sociais e pessoais. O compositor Sidney Miller (1945-1980), por exemplo, é considerado pelo meio musical como um dos mais importantes nomes da música brasileira. Sua obra, no entanto, é pouco ou nada conhecida pelo público, ao contrário de Chico Buarque, com quem era constantemente comparado. Suas músicas, de Sidney e Chico, muito se parecem nos motivos melódicos, soluções harmônicas e temáticas.” Para Herência, “o brilho excessivo de Chico Buarque, condicionado por motivos que vão desde sua beleza física e postura profissional anterior ao espetáculo Roda Viva — divisor de águas em sua carreira — até a forma invulgar e verdadeiramente esplendorosa de sua criação artística, colaborou involuntariamente para o esquecimento de um artista formidável, como Sidney Miller.”

Detentores de uma vasta e rica produção, muitas das composições de artistas como Paulo César Pinheiro, Sérgio Natureza, Capinam, Abel Silva, Mauro Duarte, Torquato Neto e Sidney Miller, entre outros, estão na “boca do povo”, mas seus nomes são quase totalmente estranhos para os ouvidos comuns, conhecidos apenas por aqueles que têm, de alguma forma, um envolvimento profissional com o meio artístico e musical.

Compositores e intérpretes

Apesar de pouco discutida, essa questão é bastante séria. Exclui os criadores do reconhecimento daquilo que criaram com dedicação, beleza e, muitas vezes, exaustão. E não venham dizer que foi sempre assim. Quando falamos em Aquarela do Brasil que nome nos vêm, à cabeça? O de Silvio Caldas, o da Elis, ou o de qualquer outro intérprete entre os tantos que a gravaram? E quando falamos em Na batucada da vida pensamos em Dircinha Batista, Carmen Miranda ou Miúcha? Mesmo com toda força que esses intérpretes têm, essas músicas são diretamente relacionadas ao responsável pela sua existência, Ari Barroso. Porém, mesmo aí, o nome de seu parceiro, o grande letrista Luís Peixoto, é esquecido.

Araci de Almeida e Marília Batista são lembradas como as maiores intérpretes de Noel Rosa, que mesmo não tendo sido um cantor de sucesso tem suas músicas — ao menos as mais populares e conhecidas pelo grande público — vinculadas ao seu nome. Mas, e Vadico, seu parceiro paulista, por que seu nome foi apagado da história oficial do samba?

Isso nos leva a crer que o anonimato de letristas e compositores é uma tendência cada vez mais forte e faz parte de um processo histórico que culminou na chamada “sociedade do espetáculo”. Pode ser compreendido pelo sentido que a palavra “fama” vem tomando, cada vez mais vinculada à imagem — linguagem predominante e mediadora da maioria das relações sociais no mundo moderno. O motivo para o sucesso não está mais em ser artista, com todo histórico e significado que essa palavra tem. A fama hoje é construída a partir dos interesses dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, e o ser humano “comum” pode tornar-se artista e famoso da noite para o dia, seja através do Big Brother Brasil ou do programa que carrega o próprio nome daquilo que propõe fazer, Fama.

Cada dia há uma menor valorização da obra, do caminho percorrido para se chegar ao trabalho final e maior valorização do aspecto externo, do suposto carisma daqueles que são definidos como artistas, da aparência e beleza de modelos de passarela que se tornam subitamente atores e atrizes, cantores e cantoras. O talento pessoal, o brilho, o espírito jovem são algumas das justificativas usadas para explicar o espaço ocupado por esse tipo de figura, destinadas a mostrar que estão no top-list da fama por conquista e merecimento.

Por outro lado, mesmo na obra gravada de Chico Buarque, quais de seus apreciadores sabem que Francis Hime, Sivuca e Cristóvão Bastos são autores de boa parte de suas músicas? Isso sem falar nas músicas de criação coletiva de comunidades ainda existentes, como de Santo Amaro da Purificação ou das Lavadeiras do Vale do Jequitinhonha, ou — caso limite — dos arranjadores, responsáveis pela roupagem que torna as composições mais comunicativas e belas.

A sociedade do espetáculo

Podemos tentar compreender a falta de conhecimento da autoria por parte do público a partir dessa tendência que, a cada dia se torna mais forte, de valorização da imagem, que seria produto do crescimento e consolidação da comercialização da cultura. Um simples passeio pelas rodas de samba promovidas e frequentadas pela classe média universitária — que em nenhuma hipótese poderia compartilhar e mesmo alimentar este processo — é reveladora da força e do perigo com que a alienação se instalou na vida artística brasileira, atingindo inclusive aqueles que nutrem pela arte e pela cultura um interesse mais consciente.

O que para mim é uma incógnita, e precisa ser pensado e discutido por aqueles que enxergam a música brasileira como algo mais do que uma simples mercadoria, é porque o anonimato de compositores não ficou restrito aos meios dominados pela mídia e pela indústria fonográfica. Tomou uma dimensão e força capaz de atingir também os músicos e o público que encaram a música de uma forma séria e, antes de tudo, apaixonada.


*Monnik Lodi Poubel é historiadora. Pesquisa as relações sociais na música popular brasileira.
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