Neste meio de ano uma informação macabra correu o mundo: o ditador do Zimbábue, Robert Mugabe, teria mandado decepar as mãos de eleitores do seu adversário pouco antes do segundo turno das eleições gerais neste país africano. Há 28 anos no poder — desde a saída dos administradores coloniais britânicos — Mugabe enfrentaria nas urnas o líder da oposição, Morgan Tsvangirai, que havia vencido o primeiro turno do pleito.
Zimbabuanos torturados por ordem do governo Mugabe por serem possíveis eleitores da oposição
Tsvangirai desistiu na última hora, mas Mugabe manteve seu nome na cédula de votação, anunciou a si próprio como vencedor e permanece exatamente onde está desde que foi eleito "democraticamente" — assim, entre aspas — em 1980, ano em que o país declarou sua "independência" — assim, também entre aspas —, e deixou de se chamar Rodésia para assumir o nome atual de República do Zimbábue.
Tantas aspas querem dizer que de democrático e independente a jovem nação nada tem. Como tantos outros países africanos, sua história recente vem sendo marcada de forma trágica pela partilha imperialista feita em 1885, pela posterior rapinagem internacionalmente avalizada que se praticou em solo africano ao longo de quase todo século XX, e pela forma igualmente criminosa como, mais tarde, se deu à chamada "descolonização" africana.
E esta forma foi a seguinte: criando-se as condições para que se instalasse o neocolonialismo na África, a fim de que a usurpação das riquezas do continente fosse um crime cuja prática continuaria autorizada às empresas transnacionais.
Isto porque, em determinado momento, os governos dos países imperialistas entenderam que a manutenção de colônias formais "em África" já estava lhes dando mais prejuízos do que benefícios, e que seria melhor mesmo deixar o comando com lacaios que garantissem as bases para a continuidade da exploração imperialista, conseqüentemente condenando os povos africanos à humilhação e ao desamparo.
No caso específico do Zimbábue, os britânicos não arredaram pé sem antes formalizar o neocolonialismo em papel passado, e sem o menor constrangimento. Assim, em 1979, o então primeiro-ministro branco, o sanguinário Ian Smith e os guerrilheiros negros liderados por Mugabe e Joshua Nkomo — patrocinados pelo social-imperialismo russo — assinaram os chamados acordos de paz de Lancaster House.
Mugabe, cúmplice do neocolonialismo
Os papéis foram apresentados pelos dois lados como o documento que selaria o reconhecimento britânico da independência da então Rodésia, que já havia sido declarada unilateralmente em 1965 pelos nacionalistas. O acordo foi imediatamente festejado pela maioria negra do Zimbábue como um sucesso sem precedentes, porque seus termos permitiam enfim o acesso de negros aos mais altos cargos da administração do país.
Nas entrelinhas e nas letrinhas pequenas, no entanto, o buraco era mais embaixo. As mudanças na economia e as nacionalizações esperadas pelo povo não se concretizaram na Constituição elaborada a partir dos acordos de Lancaster House. Na carta constitucional, foi inserido um artigo que protegia a propriedade privada de forma quase incondicional, sobretudo a grande propriedade fundiária. Um outro artigo proibia qualquer grande modificação no aparato legal do país dentro de um prazo de sete anos a partir da promulgação.
Assim, o Reino Unido e o grupo de Mugabe amarraram e comprometeram a independência do Zimbábue de forma que se tranquilizasse a burguesia britânica que tinha investimentos naquele país que agora, para todos os efeitos, era uma ex-colônia…
E desta forma morria também, e na beira da praia da "independência", a maior de todas as reivindicações dos trabalhadores zimbabuanos: a devolução aos legítimos donos das terras que lhes foram confiscadas pelo imperialismo britânico. Mas Mugabe, dizendo-se "pragmático" com uma convicção que faria Luiz Inácio ou Geisel corarem, anunciou que a tão esperada reforma seria feita pelo seu partido de forma "gradual", "progressiva", ou qualquer outra palavra que na prática significava trapaça.
E Mugabe anunciou ainda que retardaria o fim dos latifúndios que permaneciam nas mãos dos invasores para que não houvesse uma agitação desnecessária entre os empresários estrangeiros, que segundo ele eram importantes para a saúde econômica do país. Na época, os donos do mundo disseram que era um homem à frente de seu tempo. Hoje, acusam-no de ser um ditador ensandecido.
Na verdade, se em um determinado momento Mugabe se transformou em uma pedra no sapato para o imperialismo, foi porque as massas trabalhadoras do Zimbábue, revoltadas com tanta rapina, mobilizaram-se contra suas políticas de colaboração com o neocolonialismo; foi porque em certo momento seu governo ficou acuado diante da força do povo.
Por exemplo: desde que prometeu a reforma agrária para um futuro incerto, Mugabe vinha fazendo jogo duplo, ora garantindo ao povo que o grande momento da expulsão total dos usurpadores um dia iria chegar, ora tomando providências para que os usurpadores se sentissem seguros de que este dia seria o de "São Nunca". Até que os camponeses pobres resolveram tomar as terras na força da foice, desencadeando episódios muitas vezes sangrentos e colocando o governo Mugabe em xeque. Foi o bastante para o USA incluir o Zimbábue na lista de prováveis alvos para massacres como o que vêm sendo empreendido no Iraque.
Agora, a chamada "comunidade internacional" mostra-se indignada e perplexa com a truculência e os crimes contra a democracia no Zimbábue, como se a truculência e os crimes do imperialismo na África não tivessem marcado o continente e condenado seus povos a esta situação de miséria, desespero e opressão.
Quem fez Mugabe?
Nos últimos tempos muitas notícias nos têm chegado sobre a situação do povo do Zimbábue. O país africano voltou à pauta do monopólio internacional dos meios de comunicação e à agenda da ingerência ianque — não necessariamente nesta ordem. Principalmente depois que Mugabe, tentando aplacar a voz das ruas com um golpe de oportunismo à moda Hugo Chávez, anunciou que iria nacionalizar alguns setores da economia zimbabuana onde operam algumas empresas transnacionais de grande porte, entre os quais estão os setores bancário e de mineração.
Isto foi em julho de 2007.
Analistas foram chamados às pressas para avalizar a ofensiva que se desenhava. Segundo eles, Mugabe arruinara a economia e estava em vias de arruinar o próprio país se nada fosse feito para derrubá-lo do poder o Zimbábue entraria em colapso dentro de 4 meses, o que deixaria o país a mercê de milícias e de guerras tribais.
A resposta de Mugabe viria logo a seguir, em setembro. Ele tentou mudar a Constituição do país para que lhe fosse dado o direito de indicar seu próprio sucessor. As notícias apocalípticas sobre o Zimbábue voltaram a encher as páginas dos jornais burgueses — e também a maioria dos que se marcam como publicações comprometidas com as classes populares, seduzidos pela ladainha do imperialismo.
De lá para cá o que se tem visto é uma verdadeira campanha internacional contra Mugabe — menos por ser um traidor de seu povo e mais por ter se mostrado enfim incompetente no papel de "gerentão" da exploração.
Uma campanha cujo ponto culminante foram denúncias de fraude e de barbaridades praticadas pela gente de Mugabe durante o processo eleitoral zimbabuano. Há os exageros e as desinformações de praxe quando se trata de campanhas como esta. Mas a situação do povo do Zimbábue é verdadeiramente desesperadora. O que não é verdadeiro é dizer que o USA e a União Européia não têm nada a ver com isto.
A festejada oposição?
Em 2002 o congresso ianque aprovou a chamada "Lei pela Recuperação Econômica e da Democracia no Zimbábue". Isto mesmo. É exatamente o que parece: os magnatas que compõem o legislativo do USA resolveram aprovar um dispositivo legal que versava sobre a nação alheia. Apesar das boas intenções expressas no nome oficial da tal lei, ela foi elaborada para destruir a economia do Zimbábue, proibindo, do dia para a noite, as empresas ianques de fazerem negócios com empresas do país africano.
Resolvida a questão no âmbito interno, o USA tratou de arranjar o boicote ao Zimbábue em nível internacional. Foi prontamente atendido por organismos como FMI e Banco Mundial. A União Européia aderiu ao clube, adotando também o que a lábia imperial chama de "sanções".
Na época, o oposicionista Morgan Tsvangirai apoiou a estratégia dos poderosos do mundo para levar seu próprio país à ruína de forma rápida e rasteira, e ainda foi além: pediu à África do Sul a interrupção da venda de combustível e eletricidade para o Zimbábue, o que acabou não se concretizando.
O jornalista Netfa Freeman, radicado em Washington, onde comanda a Escola de Liderança em Ação Social Para Ativistas do Institute for Policy Studies (IPS), é uma voz que vem denunciando de dentro do próprio USA a postura de Tsvangirai. Segundo ele, alguns se disseram surpresos quando no dia 5 de abril de 2007 o Departamento de Estado, sob Bush, admitiu o patrocínio da oposição zimbabuana. Mas a permissão para operações de ingerência como esta já fazia parte da tal "Lei pela Recuperação Econômica e da Democracia no Zimbábue".
No início de junho deste ano, cerca de um mês antes da data marcada para o segundo turno da eleição presidencial, os presidentes e primeiros-ministros demagogos do respeitável "mundo livre" ficaram horrorizados quando chegou a notícia de que um grupo de diplomatas ianques e ingleses havia sido perseguido pela polícia de Mugabe por estradas do Zimbábue depois de se recusarem a cumprir ordem de prisão.
O que não foi muito divulgado, para não causar maiores constrangimentos, é que os funcionários dos governos britânico e ianque receberam voz de prisão quando estavam reunidos na surdina com o partido de Tsvangirai em uma vila a 90 quilômetros da capital Harare.
Alguns números traduzem a dimensão do castigo imposto pelo Ocidente ao Zimbábue: os cofres públicos quase zeraram, o investimento estrangeiro cessou quase que completamente de uma hora para outra, a inflação disparou (chegou a 1.728%, a mais alta do mundo), o setor industrial foi devastado e o desemprego atingiu a incrível marca de 80%.
São dados que, na verdade, permitem constatar duas coisas mais, além do óbvio massacre econômico imposto pelas potências imperialistas. A primeira é a assustadora dominação destas mesmas potências que um governo auto-denominado de inspiração marxista-leninista permitiu que perdurasse. A segunda é a imoral cumplicidade da oposição com este verdadeiro massacre sem armas do povo zimbabuano — uma oposição traidora dos seus, mas que, por isto mesmo, hoje é apresentada pelo monopólio mundial dos meios de comunicação como a salvadora da pátria. Na verdade, é preciso que se diga, tanto um como outro são farinha do mesmo saco.
O falso pesar
Uma quarta constatação: a Europa, historicamente responsável pela desgraça coletiva dos povos africanos, foi sordidamente encerrando o pouco que a esquerda européia havia conseguido de esforços em prol de reparações — migalhas diante da dimensão da tragédia que provocaram, por ação ou por cumplicidade, mas que ainda assim eles chamam de "ajuda". Curiosamente, a suspensão destes programas de "ajuda" foi acontecendo na medida em que no USA se delineava — e se anunciava — o xeque-mate a Mugabe.
A Dinamarca, por exemplo, suspendeu em 1998 seu programa de financiamento à reforma agrária do Zimbábue, no valor de 15 milhões de dólares, em 2000 o programa de 48 milhões de dólares para a implementação de transportes públicos e outro de 30 milhões de dólares para o financiamento de redes de saneamento básico. Foi também no ano 2000 que a Suécia acabou com um programa de apoio à educação e outro para ajudar na construção e recuperação de estradas.
Além disto, o Fundo Mundial para a AIDS interrompeu os esforços de combate ao vírus HIV no Zimbábue, e não foi por falta de dinheiro, mas sim para atender a uma determinação ianque. Há alguns anos, a ONU suspendeu todo auxílio técnico e financeiro para o desenvolvimento da infra-estrutura do país.
A razão da debandada é algo decidido na ponta do lápis: com o boicote aos negócios no Zimbábue conclamado pelo USA, para quê estradas em bom estado se a curto prazo não haverá produção para escoar? Para quê uma população alfabetizada e livre da AIDS, se não poderá ser escravizada pelas empresas européias e ianques em um horizonte palpável? Para quê uma infra-estrutura decente, se ela não poderá servir à exploração imediata de riquezas minerais como ouro, cobre, amianto e ferro, abundantes no país africano?
Entre a cruz e a espada, o povo do Zimbábue precisa da solidariedade dos trabalhadores de todo o mundo para que possa se erguer vitorioso diante do massacre que já dura gerações. Para isto, é preciso que não nos enganemos com a insistência dos poderosos em fazer esquecer.