Quando da edição 32 de AND, faltava pouco para a conclusão da ponte construída pelos camponeses das regiões de Varzelândia e São João da Ponte, no Norte de Minas. No dia 9 de dezembro de 2006 foi inaugurada a Ponte da Aliança Operário-Camponesa.
Fotos: José Ricardo Prieto
Camponeses e operários durante a inauguração da ponte
Ao todo, mais de mil pessoas entre homens e mulheres, trabalharam nas obras da ponte, a grande jornada que alterou profundamente a realidade das 12 comunidades camponesas e de toda a região. Novos contornos surgiram no movimento camponês pela conquista da terra e destruição do latifúndio, a libertação e desenvolvimento das forças produtivas e construção de uma nova forma de existência dos trabalhadores.
Centenas de exemplares de A Nova Democracia foram vendidos, tão logo chegaram ao Norte de Minas e tivemos de enviar uma nova remessa para a região. Em Paraterra I, local onde foi construída a ponte, deparamos com uma banca de exposição e venda do jornal, em pleno campo.
Ponte para o futuro
Na solenidade de inauguração, com todos os que trabalharam na obra e na presença de diversas outras entidades, o camponês Pedrão, dirigente da Liga dos Camponeses Pobres, fez o seu discurso:
— Companheiros e companheiras:
A importância deste dia, mais do que inaugurar aquela placa, está no significado do sonho que estamos fundando aqui, companheiros, fundindo com concreto, com cimento, com ferro, com suor, nossa esperança verdadeira, de que vamos conquistar um mundo melhor. E vamos conquistar, companheiros!
O companheiro Bigode falou há pouco sobre uma questão importante: esta ponte que concluímos com trabalho voluntário, com trabalho coletivo, aonde ninguém veio esperando cobrar depois, cada um deu uma parte tirada do seu dia, para contribuir não somente com esta área, mas com toda a região.
Esta realização serve para lançar a esperança de que o povo, os camponeses, os estudantes, os operários, enfim, os trabalhadores, podemos fazer valer a mais alta expressão da nossa luta que é o poder político. Esta ponte foi construída graças à mobilização, à união em torno dela, o debate que muitos companheiros se referiram aqui. E alguns estavam sem esperança, devido o bombardeio dos oportunistas, falsos defensores do povo, que desacreditam o povo dele mesmo. Duvidavam que seria possível! A ponte, companheiros, é o crédito do povo, é a confiança do povo, de que quando ele decide, ele faz!
E o povo tem força para construir, mas também tem a força para destruir. Para construir o reino da felicidade aqui na terra, temos que destruir este monstro que esmaga, que suga secularmente o sangue do nosso povo — até derrubar o velho Estado apodrecido.
Construímos a ponte sem um centavo de nenhum empresário, de nenhum ricaço. Por isto eles não estão aqui, porque eles não fazem parte da nossa comunidade, porque somos classes diferentes, porque somos classes opostas. Eles são exploradores e nós estamos na miséria. A exploração nossa é a fonte da riqueza deles. Nossos tataravós, bisavós, avós, todos sofreram. As suas terras foram roubadas por estes ladrões.
A nossa organização, a Liga dos Camponeses Pobres, as nossas organizações irmãs, Liga Operária, pequenas associações de camponeses, de trabalhadores, rurais, Movimento Feminino Popular, Movimento Estudantil Popular Revolucionário, os Advogados do Povo, a Imprensa Popular e Democrática como o jornal A Nova Democracia que está aqui presente, conformamos todos o campo que está fazendo nascer um caminho para o povo, para a transformação deste nosso país.
Convocamos todos os companheiros e companheiras, principalmente a juventude e as mulheres, (para não falar das crianças): a nossa luta vai ser muito dura, vai ser muito longa. Mas neste país o povo sempre lutou – desde as populações indígenas que resistiram contra a colonização imperialista, os negros africanos (cujo sangue até hoje corre nas nossas veias, pois todos somos seus descendentes), a luta dos camponeses, a luta de Tiradentes, a de Canudos, Caldeirão, Contestado, as Ligas Camponesas, a luta dos democratas e de todos os revolucionários, e nós vamos honrar esta tradição de luta.
Neste país, os oportunistas tomaram conta de todos os partidos. Não há nenhum que salve. O último é esse, chamado Partido dos Trabalhadores. A companheira Elizabete disse um pouco antes que o prefeito de Varzelândia é do PT. Ele não aceitou receber a nossa comissão quando fomos lá. E reclamou que o convite para a inauguração da ponte não agradecia a ele. Ele não fez nada e, mesmo se fizesse, seria da obrigação dele.
O que está lá dentro é imposto arrecadado que eles enfiam no bolso. Eles diziam que esta ponte custava 100 mil reais. Veio um engenheiro de confiança da Liga e fez o cálculo em 15 mil! É assim, roubando o dinheiro do povo, que eles se sustentam.
Acabamos de sair de uma eleição e a Liga disse: “Companheiros, não vamos votar mais não! Não vamos mais dar chance para esses corruptos, esses ladrões descarados que se fingem de amigos do povo”.
Hoje cedo tinham dois vereadores aqui. Ficaram sentados aí, esperando, porque não receberam aclamação de ninguém. Eles estão acostumados a ir às inaugurações, falar bonito para o povo, pedir voto e, quando tudo acaba, o povo vai triste para casa enquanto eles vão para as altas rodas tomar whisky nas suas casas, mansões luxuosas!
Mas neste país os camponeses, estudantes, mulheres, estão trabalhando dia a dia para construir um novo caminho de luta. Não para enganar o povo, mas para o combate, para, a partir da nossa organização, termos um governo nosso! E para construirmos este nosso poder, para termos um dia um governo nosso, para mandarmos um dia, nós temos que mandar hoje, onde nós vivemos e trabalhamos. Fazer esta ponte aqui é a prova de que podemos criar nossa própria democracia, sem mentira. Às claras.
Companheiros, para derrotar esta burguesia, este imperialismo, e hoje principalmente o latifúndio, não será com diálogo, com conversa. Vamos ter que derrubá-los! E isto se dará com muita luta. Para isto devemos contar com esta força que esteve presente e na linha de frente dos trabalhos: a nossa juventude. Temos que conversar muito com nossos filhos para combater este lixo cultural da burguesia, esta história de que tem que ir pra cidade, ter roupa de marca!
Mercadoria nenhuma vale nada. O que vale é nosso sonho, principalmente nosso sonho realizado. Este nosso sonho de solidariedade, fraternidade, igualdade entre todos, de que um dia não haja exploração, não haja violência, não haja crime entre o povo, um mundo onde haja felicidade e o trabalho de todos.
Viva a Ponte da Aliança Operário-Camponesa!
Viva a Revolução Agrária!
Significado histórico
Gaspar, um dos idealizadores da obra
— A ponte é a coisa mais importante que fizemos aqui na área. Já passamos várias dificuldades, mas unidos, vencemos todos os problemas. Lembraremos para sempre destes dias — Elizabeth Ferreira, camponesa da área Paraterra I.
— Este passo foi vencido, estamos muito contentes. O trabalho é bom mesmo quando vemos que deu certo. Aí lembramos dos problemas e das pessoas que falavam que não ia dar certo. Então, vemos que a decisão valeu e que valeu o trabalho. Agora estou pensando lá na frente: se temos a ponte, vamos construir estradas para transportarmos toda a produção das áreas e organizar o nosso comércio…. — Bigode, coordenador de Produção da Liga dos Camponeses Pobres.
— Sou de falar pouco, mas estamos de parabéns! Todos que trabalharam, todos que apoiaram, todos que vieram ver. Muito obrigado e podem contar com a gente sempre — senhor Gaspar, um dos idealizadores da ponte, apoiador da Liga dos Camponeses Pobres, durante a cerimônia de inauguração.
O nome Ponte da Aliança Operário-Camponesa foi decidido pela Assembléia Popular, numa sessão que reuniu todas as famílias envolvidas nas obras, que tomou as decisões e dirigiu todo o processo. Nenhum outro nome expressaria melhor esse momento histórico, esse ânimo, essa camaradagem feita de causas mais justas entre operários e camponeses.
Essa ponte tem tamanha importância não por ter sido edificada pelas políticas assistencialistas do governo, nem por uma grande empreiteira, mas por camponeses e operários de diversas especialidades, que enfrentam diariamente as mais duras condições de exploração e arrocho e vendem a sua força de trabalho a um preço ínfimo aos patrões. E estes camponeses e operários, em meio à luta, bombardeados pela agitação contra-revolucionária do latifúndio, da burguesia e dos oportunistas, planejaram e ergueram uma ponte, trabalharam voluntariamente, sem qualquer remuneração. Alguns mesmo venderam bens para contribuir, doaram um dia de seu trabalho, apesar de se encontrarem cansados.
A decisão de realizar uma obra deste vulto representa de fato um grande salto na luta pela terra, comprovando tudo o que temos ouvido e visto ser aplicado pelo movimento camponês combativo em nosso país. Significa o começo de uma viragem histórica. É uma pequena demonstração de como se dará a Revolução Agrária defendida pela Liga dos Camponeses Pobres.
A burguesia sabe bem dar publicidade àquilo que julga necessário e importante visando perpetuar o atual estado de coisas. Exalta seus empreendimentos, suas iniciativas ‘modelo’, às quais dedicam páginas e mais páginas nos milhões de exemplares dos seus jornais e revistas, telejornais, etc. como se fossem arrojados projetos de interesse e orgulho nacional. A imprensa popular e democrática, por sua vez — e disto tivemos comprovação prática no decorrer de todas as atividades de edificação desta ponte —, deve sim dar lugar às realizações e avanços promovidos pelo nosso povo, a iniciativa criadora das massas, como exemplo de trabalho voluntário, uma obra de nova democracia, destinada a todo povo trabalhador.
A democracia das massas
Dona Elizabeth, coordenadora da Associação dos Camponeses do Paraterra I convidou-nos para o almoço. Foram formadas duas filas. Uma de mulheres e crianças, outra para os homens.
— As mulheres são servidas primeiro para alimentar as crianças. Aqui é assim. O Movimento Feminino Popular tem nos ensinado muitas coisas. Entre elas, que as mulheres são metade da classe, e são a metade mais oprimida. Esta luta só pode ser travada se assumirmos a frente e os companheiros nos apoiarem decididamente. — explicou Edna, uma das coordenadoras do MFP presentes.
A inauguração da Ponte da Aliança Operário-Camponesa reuniu centenas de pessoas em festejos que duraram todo o dia
E mais, a democracia nas áreas camponesas serve para todos em seu pleno sentido. Para que ela exista, todos devem se submeter às normas estabelecidas e aprovadas pelo coletivo. A minoria se submete à maioria e todas as decisões são tomadas através do debate franco e aberto, para que a vontade única se materialize de vez.
Os convidados para a inauguração da Ponte, incluindo nossa reportagem, tiveram de cumprir e zelar pelas decisões do coletivo, começando pela alimentação.
E a luta pela produção faz com que se desenvolvam relações superiores, baseadas no companheirismo, e não no individualismo. A democracia nas áreas camponesas é baseada nas decisões do coletivo e fruto da luta pela destruição do latifúndio e construção de novas relações mais avançadas.
As brigadas, por exemplo, se revezavam na edificação e cultivo de seus lotes. José Osmar da Silva, o Mazinho, foi o coordenador político da construção da ponte. Ele tinha que estar presente todos os dias na obra, ficando impossibilitado de cuidar da sua roça. Este problema foi logo solucionado por uma brigada de jovens, que realizou a limpeza do seu lote e o plantio. Sem pedidos, sem queixas, sem barganhas, porque todos reconheciam e trabalhavam ali para o bem comum.
São João da Ponte foi um dos municípios com maior índice de boicote às eleições nos dois últimos processos eleitorais. Isso, sem sombra de dúvida, devido à grande experiência de luta das massas daquele local. Precisamente na localidade onde a ponte foi construída, envolvendo ainda as famílias das outras áreas que trabalharam na obra, houve 100% de boicote às eleições. Ou seja, ninguém foi votar. Afinal de contas, isto não se faz necessário onde são as famílias que decidem. A ponte demonstrou que o povo pode viver muito bem sem dois elementos que só sobrevivem sugando o sangue e o suor dos que trabalham: um é o patrão. O outro são os políticos profissionais que só aparecem quando vão pedir votos.
Presentes todos
A inauguração da ponte, conforme descrevemos anteriormente, envolveu 12 comunidades. Todas estiveram presentes nas atividades, até as crianças. Cada qual da sua forma.
A área foi toda enfeitada com bandeiras vermelhas da Liga dos Camponeses Pobres. Esta tarefa coube a uma brigada que cortou os mastros e distribuiu as bandeiras ao longo do caminho que dá acesso à ponte. Um outro grupo foi destacado para cuidar da cozinha coletiva. Homens e mulheres prepararam os fogareiros e a alimentação para mais de 600 pessoas presentes.
— O mais importante disto tudo — explicou Galego (Denizart de Souza), da Liga dos Camponeses Pobres — é que cada um participa da parte que acha mais importante. Mas todos sabem que sua parte contribui para o resultado final. Veja só: enquanto estamos conversando, os jovens estão disputando um torneio de futebol. Foi o pessoal das áreas que resolveu fazer este torneio para estimular a vinda de todos para a inauguração. Hoje cedo, muitas pessoas vieram para o culto ecumênico. Esse foi um dia muito esperado e nem todo mundo irá participar das atividades. Até as crianças ensaiaram as músicas que irão cantar antes da solenidade.
Mas a cerimônia de inauguração foi aberta com um ato político. Participaram os camponeses das áreas, os operários que trabalharam nas obras da ponte e os convidados. Os representantes de todas as áreas envolvidas na construção foram chamados para ir à frente e fizeram seus discursos.
— Esta ponte é a primeira, a mais preciosa, que vai ser o molde para muitas outras daqui em diante. Gostaria de ressaltar que foram muitos dias de trabalho, muita luta. Provamos que podemos fazer tudo! Conseguimos o material, fizemos o projeto; tudo com as nossas mãos. Esta ponte foi erguida sem a ocorrência de nenhum acidente de trabalho! Este é o resultado de um trabalho organizado e da iniciativa independente do povo e temos muito orgulho de poder participar disto — emocionou-se o operário Joaquim Pereira, que foi se lembrando de todos que trabalharam na ponte, citando nome por nome os mais atuantes.
Os camponeses foram unânimes ao fazerem menção a um fato, que ficou estampado na colocação do Adão, um dos coordenadores da área Paraterra I:
— Duvidavam que a gente seria capaz de levantar esta ponte. Não foram só os políticos. Tinha gente nossa mesmo que duvidava das nossas forças e da nossa competência. E o que temos hoje aqui? Temos a ponte! Esta ponte que vai servir a todos que quiserem passar por ela. Queremos agradecer os que estão presentes aqui e que acreditaram no nosso trabalho. Uma vez, quando fomos nos reunir com o prefeito de Varzelândia, ele perguntou o que a Liga tinha nos dado para construirmos a ponte. Ele queria dizer que a Liga não tinha dado nada de material, e justificar a não entrega de materiais por parte da prefeitura. E um companheiro disse: ‘a Liga deu organização, e o senhor, o que vai dar?’. O prefeito não teve o que responder.
A representante do Movimento Feminino Popular destacou o grande número de mulheres naquele ato e o papel desempenhado pelas camponesas na construção da ponte e em todas as atividades da Liga. Era uma grande verdade, todos acenaram com a cabeça.
— As camponesas com a sua organização conseguiram cumprir com uma reivindicação que faziam desde o começo das obras. Trabalhar na obra como operárias por um dia que fosse. E trabalharam! Amassaram o cimento. Foram as companheiras que fizeram o acabamento da Ponte e colocaram a última colher de massa!
Momento esperado
O momento mais esperado da noite era o uso da ponte. Todos já a haviam admirado. Ela foi toda decorada com bandeiras vermelhas, interditada até o momento de cortar a fita. Numa das extremidades da ponte, uma grande faixa dizia: Obra construída em aliança operária e camponesa.
Os operários que projetaram e coordenaram as obras não podiam ser encontrados tão facilmente desde a nossa chegada. Espalharam-se pelas casas dos camponeses, ou estavam rodeados de amigos e dificilmente diferenciaríamos uns dos outros. Durante os meses de trabalho na ponte, os elos da aliança entre esses representantes das duas classes fizeram-se estreitos. Todos estavam orgulhosos e satisfeitos.
Um sinal convencionado e o pavio foi aceso. O ribombar dos foguetes foi acompanhado por uma salva de palmas. Uma placa encarnada com letras douradas foi descoberta e a fita vermelha cortada. Todos ocuparam a ponte, emocionados e felizes. Uma tarefa cumprida, com o trabalho de todos.
Na sequência, um bingo sorteou um bode assado e dois frangos. O dinheiro arrecadado com a venda das cartelas foi imediatamente destinado para cobrir os gastos com as obras. Um forró animado entrou madrugada afora.
Até breve!
No dia seguinte todos se preparavam para partir. Os coordenadores das áreas realizaram durante a manhã uma reunião para debater e planejar as atividades da Liga dos Camponeses até o próximo encontro. Enquanto isto, a Frente Cultural de Belo Horizonte começou uma pequena roda. Os sons do violão e do batuque foram crescendo. Os adultos se aproximaram e um coro se fez ouvir. Alguns instrumentos de percussão foram distribuídos e conformou-se uma banda. As crianças, que observavam tímidas, se animaram e tudo virou uma grande festa. Músicas populares, cantigas de roda, canções da luta do povo. E a roda se abriu com jovens e crianças.
Almoçamos todos juntos. A hora de partir foi anunciada com os trovões. A chuva, tão desejada no Norte de Minas Gerais pelos camponeses para o plantio, tem castigado duramente as rodovias e os veículos. Decidimos partir logo.
Agradecemos o convite e a acolhedora recepção de nossos amigos camponeses, colaboradores de tantas matérias. Na despedida prometemos breve retorno para documentar outros momentos de suas lutas.