Mais um crime premeditado contra a cultura e a educação nacionais
Em um país em que suas classes dominantes não valorizam sua própria história, nada mais simbólico do que a destruição de um importante e valiosíssimo museu. O incêndio que atingiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro tem várias causas, mas a principal delas é o criminoso projeto de destruição da educação pública e da cultura nacional, elaborado pelo imperialismo ianque e avalizado pela oligarquia de grandes burgueses e latifundiários que dominam a nação.
Em seus 200 anos de história – completados em junho deste ano – o Museu Nacional construiu a reputação de ser um dos mais importantes museus de história natural e de antropologia das Américas. Com um acervo de mais de 20 milhões de itens (o maior da América Latina), ele era um avançado centro de pesquisa para a cultura e a ciência brasileira, guardando verdadeiras relíquias como o crânio de Luzia (o mais antigo fóssil humano já encontrado no continente, estimado entre 12.500 e 13 mil anos), objetos da Antiguidade greco-romana e a maior coleção de história egípcia da América Latina (com múmias de até dois mil anos). Isso sem falar nos milhares de artefatos dos povos indígenas do Brasil, e objetos de povos africanos e do Pacífico.
A perda de 90% de todo esse acervo é uma verdadeira tragédia para pesquisa científica no país, e não existe a menor possibilidade de recuperá-los. No dia seguinte ao incêndio que destruiu o museu, a Historiadora e Antropóloga Adriana Facina, Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, falou sobre essa situação à imprensa: “Nossa biblioteca era uma das mais importantes na área de Ciências Sociais da América Latina. Reunimos um inigualável acervo de pesquisas sobre populações indígenas, camponeses, migrantes, entre outros temas, resultado de décadas de trabalho de nossos pesquisadores mais velhos, nossos mestres. Qual a história que poderemos contar a partir de hoje? Que narrativas se perderam para sempre? É uma perda irreparável. Como se houvéssemos sido bombardeados numa guerra”.
Corte de verbas e falta de políticas públicas
A destruição do Museu Nacional é mais um capítulo na sequência de tragédias que atingem as instituições culturais e científicas do país. Os incêndios ocorridos no Instituto Butantan (2010), Memorial da América Latina (2013), e o Museu da Língua Portuguesa (2016) são exemplos de como o descaso do poder público compromete de maneira irreversível o desenvolvimento das futuras gerações. Apesar de estar vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 1946, o Museu Nacional sempre precisou da boa vontade do governo federal para poder funcionar. No entanto, nos últimos anos ele não vinha recebendo integralmente a verba (irrisória) anual de R$ 520 mil destinada à sua conservação. Inclusive, no início do ano a universidade fez uma campanha de financiamento coletivo na internet, a “vaquinha virtual”, para tentar restaurar uma das salas que estava infestada de cupins.
Mas se o incêndio no Museu Nacional causou grande comoção na sociedade, para o governo federal e parte da grande mídia ele está servindo de mote para a difamação dos serviços públicos, particularmente as universidades federais. Logo após o acidente, o Ministro da Cultura, Sergio Sá Leitão, não se furtou em acusar os gerenciamentos anteriores e a própria UFRJ pela tragédia. “De dois anos para cá, repasses foram reduzidos em várias áreas porque os governos anteriores quebraram o Brasil. Agora, é importante dizer que quem determinava quanto ia ao Museu Nacional era a UFRJ, não era o governo federal nem o Ministério da Educação.”, disse o ministro em entrevista à BBC News Brasil. No dia 5 de setembro, dois dias após o incêndio, a manchete do jornal O Globo era a seguinte: “87% do orçamento da UFRJ vão para pagamento de pessoal”. Para rebater as acusações, o diretor do museu, Alexander Kellner, afirmou que o museu sofre há anos com a falta de verbas, e seria necessário o investimento de R$ 300 milhões para executar o seu Plano Diretor ao longo de uma década.
Um museu popular
O Museu Nacional era um dos museus mais conhecidos do país, e seguramente o mais popular do Rio de Janeiro. Criado em 1818 por Dom João VI, e instalado desde 1892 no palácio imperial de São Cristóvão, o antigo palacete de estilo neoclássico que abrigou a família real na época da monarquia, ficava dentro da Quinta da Boa Vista, um dos raros espaços de lazer destinado à população carioca. Para muitas famílias brasileiras, principalmente das “classes médias” e do proletariado, visitar o Museu Nacional fazia parte de um passeio que incluía a própria Quinta da Boa Vista e o Jardim Zoológico da cidade, situado no mesmo local. Para essas famílias, principalmente da periferia, o “Museu da Quinta da Boa Vista” era provavelmente o único museu que visitaram em toda a vida. E o seu acervo, repleto de meteoros, dinossauros, múmias e diversas espécies de animais, era o que aproximava e encantava as pessoas, principalmente as crianças. Apesar dos problemas operacionais, o museu recebeu a visita de 192 mil pessoas em 2017.
Para a Museóloga e Doutora em Memória Social, Pamela Pereira, a singularidade do acervo do Museu Nacional acentua ainda mais a tragédia: “O Brasil possui outros – poucos – Museus de Ciência constituídos aos moldes do Museu Nacional, entre eles destaco o Museu Paraense Emilio Goeldi. Entretanto, o MN, herdeiro do primeiro museu do país conhecido como Casa dos Pássaros, reuniu ao longo de seus duzentos anos coleções das mais diversas que ali foram conservadas e pesquisadas, relacionadas a diferentes campos disciplinares desde Etnologia, Arqueologia a Mineralogia e Zoologia, entre outros. Nesse sentido, o MN era único, tendo seu acervo sido identificado como um dos maiores e mais importantes da América Latina”.
Nas últimas décadas, enquanto o Museu Nacional definhava, o Brasil assistiu à criação de diversos centros culturais e museus sem acervo, quase todos criados ou administrados por bancos, seguradoras, empresas de telefonia, grupo Globo… num claro objetivo de apropriação privada de verbas públicas ou renúncia fiscal, além da usurpação de patrimônios culturais e históricos de nosso povo. Um projeto intencional, criminoso, como o incêndio no Museu Nacional, visa justamente apagar da memória coletiva todos os elementos e manifestações responsáveis pela construção da nossa identidade nacional.