Camponeses organizados na Liga dos Camponeses Pobres ocuparam um latifúndio improdutivo em 2002, na cidade de Perdizes, MG. Um acordo deu a posse da terra aos camponeses e determinou a imediata desapropriação. O latifundiário promoveu um golpe cartorial e o Incra arquivou a desapropriação. Agora os camponeses vêem toda uma vida ameaçada por uma nova reintegração de posse, mas asseguram que não sairão de suas terras.
Em 23 de março de 2002, cerca de 100 famílias camponesas ocuparam a Fazenda Antinha, na cidade de Perdizes, MG. Pela primeira vez, no triângulo mineiro, tremulava a bandeira da Liga dos Camponeses Pobres do Centro-Oeste, ainda respondendo pelo nome de Comissões Camponesas de Luta. Já neste momento, a Liga dos Camponeses Pobres demonstrava sua qualidade distintiva fundamental em relação aos outros 17 movimentos organizados de luta pela terra na região. O acampamento Bandeira Vermelha, em homenagem à histórica luta dos sem-casa de Betim, não se fixou na beira da estrada ou na cerca, apossou-se do latifúndio.
Imediatamente, o latifundiário Moacir Guimarães, suposto proprietário do imóvel, entrou com uma liminar de reintegração de posse da área, concedida em 26 de junho do mesmo ano. Três tentativas de desocupação fracassaram diante da resistência organizada e pacífica dos camponeses pobres, que continuaram na fazenda.
O imóvel foi submetido a uma vistoria técnica pelo Incra, que constatou a improdutividade do latifúndio. Reproduzimos, abaixo alguns trechos do laudo do perito Renato Pinto de Carvalho:
Como o imóvel possui 32,3 módulos fiscais, o mesmo se enquadra na condição de grande propriedade. (…) A Fazenda Antinha se presta para o assentamento. Até o presente, os proprietários não exploram ou exploram mal o imóvel. A maioria das casas estão sem uso. Não visualizei animais de sela, ovinos, caprinos nem bovinos no imóvel.
A perícia classificou o latifúndio como grande propriedade improdutiva, com Grau de Utilização da Terra (GUT) 0% e Grau de Eficiência na Exploração (GEE) 0%. Era, portanto, uma terra abandonada antes que os camponeses dela se apossassem, como são grande parte dos latifúndios em nosso país.
O acordo
A persistência dos camponeses em continuar na terra, o enfrentamento ao aparato policial para impedir a reintegração de posse e a comprovação da improdutividade do latifúndio geraram uma pressão pela desapropriação da fazenda, que obrigou a Vara de conflitos agrários de Belo Horizonte a realizar uma audiência de conciliação. A audiência ocorreu no dia 13 de novembro de 2002, em Belo Horizonte, com a presença dos camponeses, dos representantes do latifundiário Moacir — que sem alternativa foram obrigados a reconhecer o direito dos camponeses — e do Incra-MG. Nesta ocasião, foi firmado um acordo nesses termos:
1 O latifundiário concordava em disponibilizar a área para desapropriação e fins de reforma agrária; manifestava pleno conhecimento do laudo do Incra, que já havia concluído pela improdutividade do imóvel e se comprometia a não contestá-lo administrativamente;
2 O latifundiário, em decorrência do acordo firmado, admitia a permanência dos camponeses na área que já estava ocupada e sendo preparada para o cultivo;
3 O Incra-MG se comprometia a iniciar de imediato o processo de desapropriação da área;
4 Os camponeses se comprometiam a utilizar exclusivamente a área onde o acampamento estava estabelecido e a explorar somente a área que naquela data encontrava-se cercada, preparada para o cultivo e/ou já plantada, que era de 50 hectares ao todo;
O reincidente latifúndio
Apesar da assinatura do acordo, o latifundiário não desistiu de expulsar os camponeses da terra. Utilizou-se de um ato típico no interior do país: a jagunçagem. Todos os dias, a qualquer hora, os camponeses eram importunados por homens desconhecidos que faziam ameaças e muitas vezes atiravam contra o acampamento. O cerco efetuado pelos jagunços durou 90 dias e só não deixou maiores seqüelas devido à extrema organização dos camponeses, que rapidamente prepararam sua autodefesa.
Após a verificação da improdutividade, o latifundiário tentou "fazer de conta" que produzia alguma coisa no imóvel, colocando gado e arando a terra. Iniciou também uma campanha de difamação contra os camponeses. Qualquer fato servia como pretexto para difamá-los. Certa vez, após verificar que um de seus tratores estava danificado, lançou-se levianamente a acusar os camponeses de o terem estragado.
Além da jagunçagem e da difamação, o latifundiário também tentou cooptar as famílias camponesas. Ofereceu dinheiro a várias famílias para que deixassem o acampamento e pagou camponeses que haviam sido expulsos do acampamento, por infringir as normas internas de organização e boa convivência, para que fomentassem desordens e intrigas no acampamento e na cidade.
Camponeses persistem
Apesar de todas as tentativas do latifundiário e das dificuldades enfrentadas pelos camponeses, eles permaneceram na terra e produziram todos os anos. O acordo (celebrado em novembro, sete meses após a entrada na terra) deu aos camponeses 50 hectares para viver, plantar e colher.
Os camponeses do acampamento Bandeira Vermelha conseguiram transpor as barreiras que se impõem aos trabalhadores pobres do campo, pela ausência de meios de produção como máquinas e armazéns, com a combinação de formas in dividuais e formas cooperadas de produção, como os grupos de ajuda mútua. Uma grande vitória foi ter conseguido junto à prefeitura do município o empréstimo de um trator, fato que só se concretizou devido à pressão exercida pelos camponeses. Em todo o período — quatro anos — também construíram pequenas granjas de porcos e galinhas e criaram algumas vacas.
Golpe cartorial
O latifundiário Moacir jamais desistiu de expulsar os camponeses da Fazenda Antinha. Ele só aceitou o acordo para desmobilizar os camponeses, diminuir a pressão e ter tempo para arquitetar um plano que lhe garantisse a posse da terra. Em 2004, ele solicitou que o acordo fosse revisto, uma vez que ele não estava presente à audiência e não concordava com a desapropriação. A argumentação do latifundiário foi rejeitada pelo Ministério Público (MP) porque ele deu plenos poderes aos procuradores que o representaram.
Os camponeses denunciam que o Incra, o latifundiário e o pelego sindicato dos "trabalhadores rurais" de Araxá celebraram um acordo (entre eles) para emperrar o processo de desapropriação. Nesse conchavo, o Incra desistiria da desapropriação da Fazenda Antinha pelo da fazenda Bom Sucesso — um outro latifúndio de Moacir-, ocupada por camponeses que, por coincidência, estão sob a tutela do sindicato pelego.
Em março de 2004 veio à tona o golpe planejado pelo latifundiário. Naquele mês, ele registrou no cartório de Araxá a doação da Fazenda Antinha aos seus dois filhos e à esposa, ficando assim a antiga fazenda dividida em três "novas" propriedades. O latifundiário, em todo o decorrer do processo, jamais mencionou a divisão, que só foi descoberta em setembro de 2004, quando um perito federal visitou a propriedade para um novo relatório agronômico.
No início de 2005, o processo de desapropriação, que estava parado, foi reiniciado e, rapidamente, o superintendente do Incra-MG, Marcos Helênio, o arquivou. A justificativa foi que com a divisão, a desapropriação tornou-se impossível por não mais se tratar de uma grande propriedade, mas de médias propriedades inferiores ao módulo de desapropriação. Nem a Liga dos Camponeses Pobres do Centro-Oeste, nem seus advogados foram comunicados do arquivamento do processo.
A resposta camponesa veio em junho.
Ocuparam a sede do latifúndio, que estava abandonada,
e passaram a exercer a posse sobre toda a propriedade
A divisão da Fazenda Antinha foi apenas uma medida de cartório, um verdadeiro golpe cartorial. Não há qualquer demarcação que indique que se tratam de três propriedades. Além disso, não se verificam modificações na posse da fazenda, ela continua tão abandonada quanto antes, não fossem os camponeses trabalharem a área acordada. Legalmente tudo isso está fora de cogitação.
O mais impressionante em todo o processo de desapropriação da Fazenda Antinha é a aparente ambiguidade do Incra. Enquanto o latifundiário Moacir Guimarães e seus filhos "arranjavam" as medidas para obstruir a desapropriação, o tal Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária — Incra, simplesmente fechou os olhos para as falcatruas e engavetou o processo. As doações só foram reveladas no processo do Incra seis meses após. Por que o Incra não se manifestou nesse período? O mais grave é que o instituto de "reforma agrária", diante do golpe cartorial, numa canetada só, arquivou o processo dizendo que nada podia ser feito.
Existia e ainda existem medidas legais a serem (porque devem!) adotadas pelo Incra-MG para anular essa fraude. A propriedade era objeto de um acordo celebrado entre as partes, o processo de desapropriação já deveria estar concluído (não fosse a enrolação do Incra) e os camponeses exerciam legalmente a posse do imóvel. Tratava-se, portanto, do que a Constituição chama de direito adquirido e coisa julgada. O latifundiário, a seu bel-prazer, não pode voltar atrás (e se volta é problema dele) e descumprir o acordo firmado em juízo. Ao instituto de "reforma agrária" bastava solicitar judicialmente a anulação do registro cartorial, mas preferiu colocar-se a serviço do latifúndio.
Com o arquivamento do processo de desapropriação, surge um novo pedido de liminar de reintegração de posse em janeiro deste ano. O Ministério Público não aprovou a reintegração e sugeriu uma nova audiência de conciliação entre as partes. Segundo os camponeses, o juiz responsável pelo caso chegou a visitar a área camponesa no dia anterior à audiência — diga-se de passagem, a visita estava marcada para as 13 horas, mas o juiz só chegou ao acampamento às 18 horas -, onde distribuiu seu ar arrogante, mas fez questão de afirmar aos camponeses que não concederia a reintegração de posse.
A audiência deveria ter sido realizada no dia 26 de fevereiro de 2006, mas com a morte do latifundiário Moacir sua família solicitou que uma nova data fosse marcada.
Resposta camponesa
Os camponeses que tinham a posse assegurada por um acordo, viram a possibilidade de ter ceifada suas plantações, suas criações, enfim, uma vida construída em quatro anos num verdadeiro chão camponês, por um golpe cartorial com a anuência do tal instituto e da justiça.
Assim, a resposta camponesa veio em junho. Ocuparam a sede da Fazenda Antinha, que estava abandonada, e passaram a exercer a posse sobre toda a propriedade. Como o instituto de "reforma" agrária em Minas, mesmo com todas as possibilidades legais, não desapropriou a fazenda e garantiu-lhes a posse, os trabalhadores decidiram exercer sua autoridade, porque o povo deste país é autoridade. Ao se delegar poderes a pessoas e instituições, elas se esquecem a quem devem obediência e o devido respeito. Da estrada que leva ao povoado Sapecado é possível visualizar a bandeira da LCP-CO, colocada ao alto de uma árvore. Bloqueando a entrada que levava à sede da fazenda, as bandeiras do movimento camponês foram colocadas sobre máquinas de terraplenagem antigas, usadas como um símbolo da posse da fazenda e para evitar que estranhos tenham acesso à área.
Com a ousada e pronta ação camponesa, os filhos do falecido Moacir — que trataram de ocupar o lugar do pai no sistema latifundiário — reforçaram a pressão sobre Vara de Conflitos Agrários para que a liminar de reintegração de posse fosse concedida. O juiz Fernando Humberto dos Santos autorizou a ilegal expulsão dos camponeses no dia 27 de junho e, ainda, sem realizar audiência de conciliação, conforme a sugestão do Ministério Público.
Na realidade, não há mais nada para conciliar, porque já houve uma decisão legal. O que as falsas autoridades chamam de conciliação não passa de protelação sempre que está em jogo os interesses do povo trabalhador, ao mesmo tempo em que providenciam rapidamente os recursos do opressor.
Rapidamente, os advogados dos camponeses, demonstrando toda a ilegalidade desta liminar, recorreram ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais e conseguiram, por enquanto, a suspensão da reintegração de posse.
As famílias camponesas continuam ameaçadas por uma nova reviravolta no processo, mas prometem que não deixarão a Fazenda Antinha. Atualmente estão produzindo leite, queijo e têm uma bela horta. Em agosto iniciaram a preparação da terra para o plantio, que deverá ocorrer em novembro, nem que para isso tenham — como em 2002 — que impedir a polícia de efetuar a reintegração de posse.