Paulo Cesar Pinheiro, Olivia Hime, Luciana Rabello, Kati Almeida
e Maurício Carrilho: novo selo para o samba
Duas das melhores gravadoras brasileiras se unem e lançam um selo de samba repleto de brasilidade, em uma espécie de resistência ao atual mercado de discos no Brasil, dominado pelas transnacionais.
Quelé é o nome do selo de samba lançado por duas das melhores gravadoras brasileiras: Acari e Biscoito Fino. Na direção do selo estão Maurício Carrilho e Luciana Rabello (Acari) e Olívia Hime e Kati Almeida Braga (Biscoito Fino). O nome Quelé homenageia a artista Clementina de Jesus, e o disco de estréia do selo ficou por conta de ninguém menos do que Paulo César Pinheiro, com o Cd de sambas-choro Lamento do samba, contendo músicas e letras somente dele. São 14 composições que interpreta, arranjadas por Maurício Carrilho.
Esse é só o começo: o selo ainda apresentará, nos próximos meses, os Cds de Roque Ferreira, Tem samba no mar, compositor do Recôncavo Baiano, que mostra seus sambas de roda, capoeiras, chulas; da dupla de jovens Alfredo Del Peño e Pedro Paulo Malta, Dois bicudos — nome tirado de um samba de Cartola, “Dois bicudos não se beijam” — trazendo de volta as duplas de samba, comuns na era de ouro do rádio, coisa que, segundo o pessoal do Quelé, não tem nada de saudoso, simplesmente mostra o quanto essa música está viva; de Elton Medeiros, Zicartola, que celebrará os 40 anos do histórico bar e restaurante comandado por Cartola e dona Zica; e também o Cd de Wilson das Neves, mostrando o seu lado compositor. Além dos futuros discos de Maurício Carrilho, Pedro Amorim, Luciana Rabello, Francis Hime, Amélia Rabello, entre outros.
O universo do samba
“Biscoito Fino e Acari se juntando no Quelé não quer dizer que será uma gravadora de samba, mas que devemos gravar músicas do universo do samba. O que estamos tentando no Quelé é prestar atenção e avançar, fazer samba da forma mais moderna possível, mas sem combater o passado. Todas as épocas tiveram uma ligação de samba e choro, essa convivência sempre existiu”, explica Luciana Rabello.
Dados históricos levantados pela Acari, revelam que o choro é muito anterior ao samba e dá bagagem a ele. Mas, nos últimos anos tem havido uma separação entre eles, com perdas. Então, a junção da Biscoito com a Acari, também tem a função de unir novamente os dois. “Gostamos de trabalhar com discos que estão sempre vendendo, porque não é um disco de mercado. Lançamos um Cd e depois de muito tempo ele ainda está vendendo, sinal de que, ao contrário do que parecem pensar as multinacionais, o povo não ‘emburreceu’. A Acari e Biscoito Fino têm um catálogo de respeito”, diz Kati.
A música urbana mais antiga
em atividade no mundo é o choro.
O que estamos fazendo
é nos olharmos no espelho
e vermos nossas qualidades
Maurício Carrilho
“O maior barato da história do Quelé é mostrar que existem pessoas novas desenvolvendo trabalhos de qualidade. Isso acontece porque já estão cansados do que vêem por aí”, comenta Maurício Carrilho.
Segundo o pessoal do Quelé, a partir do golpe militar houve ruptura com o caráter nacional, também no que se refere às manifestações culturais brasileiras, e o Brasil foi entregue ao que de pior havia de estrangeiro, absorvendo ritmos, e padronizou para baixo a música. Quer dizer, ao contrário do que se propaga, a atual “integração”, com dominação política e econômica: não une os povos, mas destrói a cultura de uns em benefício dos grandes monopólios mundiais, geralmente, dos grupos hegemônicos. Nesse contexto, a “globalização” representa a consolidação expressa do imperialismo nos países semicolonizados.
“A música urbana mais antiga em atividade no mundo é o choro. O que estamos fazendo é nos olharmos no espelho e vermos as nossas qualidades. É o Brasil mandando música de qualidade para o mundo. O artista da Acari e Biscoito, por exemplo, quando vai para o exterior, não se transforma para vender um produto, mas leva o seu trabalho, que, geralmente, é muito brasileiro”, diz Maurício.
“Seria maravilhosa uma globalização que beneficiasse todas as nações, mas quando percebemos que para fazer parte dessa atual rede temos que deixar de ser nós mesmos, a coisa muda de figura. Neste caso, ao invés de integrar o mundo, ela desintegra, impondo uma falsificação da identidade de cada povo em nome de uma idéia de integração”, continua Maurício.
Fábrica de artistas
A indústria fonográfica transnacional no Brasil fabrica artistas de baixa qualidade e passa o resultado disso para o público — que, em muitos casos, nada pode fazer — como parte de um minucioso plano de aculturação que visa atingir todos os espaços dos meios de comunicação, principalmente os programas de televisão (auditórios, trilhas sonoras de novelas, etc), revistas e jornais. Essas corporações, geralmente, decretam aquilo que é bom ou ruim, afastando as oportunidades do povo elevar o seu nível de consciência e impô-la no processo de reconstrução da vida nacional, nos planos político, econômico, cultural. O matiz estrangeiro busca se consolidar na vida material e espiritual do povo brasileiro.
Com os seus meios de divulgação controlando o público, fazendo o que bem entendem, as corporações estrangeiras lançam trabalhos musicais estritamente comerciais, de vida cada vez mais curta, tal como a vida profissional de seus intérpretes, que aparecem e somem com a mesma intensidade. Por conta disso, muitos artistas enfrentam dificuldades de divulgação nas rádios, não conseguem furar um bloqueio de cartas marcadas. Há um sistema de monopólio de espaços pelas gravadoras transnacionais para divulgar os seus artistas, impedindo a aproximação de qualquer outro não esteja sob o seu domínio.
Acari e o choro
Inconformado com a falta de espaço no mercado, causado por essa invasão das quinquilharias americanas impostas ao público e aos artistas, o violonista e compositor de choro, Maurício Carrilho, com Luciana Rabello, sua antiga companheira dos conjuntos de choro “Os Carioquinhas” e “Camerata Carioca”, nos anos 70/80 — ela toca violão, cavaquinho e também é compositora — e outros músicos de choro, criou, em 1999, a Gravadora Acari. É a única gravadora especializada em choro, e tem realizado um importante trabalho de levantamento da história e repertório do choro, depois transformado em CDs, com álbuns contendo as partituras das músicas.
A idéia surgiu no final dos anos 80. É claro, Maurício sabia que o espaço para gravação do choro estava se fechando de forma insuportável e que artistas e intérpretes, para continuarem a trabalhar, teriam que fazer a vontade das transnacionais, e eles próprios se transformarem em mercadoria estrangeira, perdendo a sua identidade. “Queriam uma música fácil, que apostava na ignorância musical e na falta de sensibilidade do povo. Eles criaram uma grande armadilha, com a qual nos cercaram de maneira a nos impedir de trabalhar dentro do nosso próprio país. Isso nos levou a criar uma gravadora especializada em choro”, desabafa Maurício.
Para construir o estúdio, Maurício escolheu um terraço vazio na casa de seu pai, nas proximidades do bairro carioca de Acari. “Nós mesmos, contando com a ajuda de alguns operários experientes em obras, construímos o estúdio. Carregamos tijolo, cimento e usamos materiais que nós próprios escolhemos nas adaptações acústicas”, lembra. Conta-se que Luciana Rabello, inclusive, quase foi parar no hospital intoxicada com cola e tinta. Ficava tonta, parava, tomava um ar, e voltava ao trabalho.
O resultado surpreendeu toda a equipe: uma excelente qualidade do som. “Os discos que gravamos estão sendo elogiados até no exterior, como é o caso do Japão, onde existe um público fiel”, declara Maurício com orgulho.
O fino da música
Nascida de uma maneira bem diferente, mas com as mesmas intenções, a Gravadora Biscoito Fino, segundo a cantora e compositora Olívia Hime, abre espaço para a riqueza musical brasileira, com sua diversidade de ritmos, entre choro, samba e outros. Aposta na boa música popular brasileira e se dedica a ela, oferecendo uma espécie de antídoto das tendências massacrantes do mercado atual, dando liberdade aos artistas e proporcionando ao público a possibilidade de adquirir aquilo que as grandes corporações proíbem de aparecer nas lojas de disco: a verdadeira música popular brasileira.
A idéia de criar a gravadora surgiu em 2000, com o projeto “Com Passo, Samba e Choro”, desenvolvido por Olívia no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, a convite da empresária Kati Almeida Braga. Entusiasmada com uma série de shows e músicos como Miúcha, Guinga, Yamandu Costa, Cristina Buarque, Zezé Gonzaga e Francis Hime, ela sugeriu a Kati que gravassem os CDs dos espetáculos. E assim fizeram, com sucesso. Mas Kati e Olívia não se contentaram apenas com os CDs. Criaram a Biscoito Fino, gravadora independente que hoje oferece excelentes equipamentos aos seus artistas. “É uma das melhores gravadoras do momento”, elogia Maurício Carrilho.
“A Biscoito mostra que a ‘realidade’ dos cantores barrados por imposições estrangeiras, do exclusivismo do lucro, que resultam na arte comercial e descartável está mudando. Acredito que isso vai continuar acontecendo. Temos vendido cerca de mil discos por semana, e sem pagar jabá“, conta Kati referindo-se ato de pagar para tocar.
Uma curiosidade: Kati esclarece que o nome Biscoito Fino, além de ligado à qualidade musical, faz uma brincadeira com os LPs do passado, chamados de bolachas. Entre os contratados estão Francis Hime, Miúcha, Sérgio Santos, Quarteto Moagani e Maria Bethânia, que recentemente saiu de uma grande gravadora transnacional e optou pela Biscoito Fino, estreando o selo Quitanda com o CD Brasileirinho.
Um dos trabalhos marcantes da gravadora brasileira foi a restauração de 13 mil títulos de quase toda música gravada no Brasil, entre os anos 1902 e 1950, depois doados ao Instituto Moreira Sales para pesquisa pública. Entre os títulos, a gravadora selecionou 400 músicas, lançadas em 15 CDs, numa coleção chamada Memórias Musicais — uma das etapas do trabalho de restauração.
Olívia diz estar muito feliz com os trabalhos da Biscoito, enquanto que os selos têm servido para fazer uma verdadeira renovação no mercado fonográfico, criando novas expectativas para artistas e públicos, e dando liberdade para que cantores, instrumentistas e letristas possam apresentar os seus trabalhos.