Acordo promulgado em fevereiro submete o Brasil a Roma e consagra retrocesso de 120 anos na luta pelo Estado laico. Anulação de casamentos civis pelo Vaticano e ensino confessional católico em escolas públicas são os piores aspectos.
No dia 12 de fevereiro, foi publicado no Diário Oficial o Decreto 7.107, promulgando o chamado “Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”. Assinado em novembro de 2008 e aprovado pelo Congresso mediante o Decreto Legislativo 698 em 2009 ( AND 57), o acordo passa, agora a produzir efeitos práticos. O Brasil entra, portanto, no rol dos países que concedem privilégios legais à Igreja Católica Romana, a exemplo da Argentina e Peru.
Trata-se de um retrocesso de cento e vinte anos. A primeira Constituição republicana do Brasil, datada de 1891, tinha como aspecto mais elogiável a separação — ao menos em âmbito oficial — entre o Estado e a Igreja Católica Romana. Tal separação deu-se não apenas em termos genéricos, mas também por medidas efetivas, como a transferência dos registros de nascimento, casamento, óbito, etc. — até então nas mãos da igreja — para o poder público e a ampliação do controle estatal sobre o ensino, que era quase um monopólio dos padres. A concordata promulgada em fevereiro arremete contra isto.
Cambalacho legal
O atentado à secularização do casamento e dos registros civis está no primeiro parágrafo do artigo 12. De acordo com esse dispositivo, as sentenças proferidas por tribunais eclesiásticos católicos em matéria matrimonial passam a ser reconhecidas pelo Brasil, adotando-se para tanto o procedimento usado para homologação de decisões judiciais estrangeiras. O Vaticano serve-se de seu duplo caráter de Estado e entidade religiosa para perpetrar uma chicana que faria qualquer advogado de porta de cadeia corar.
A Igreja Católica, como se sabe, considera o divórcio um pecado. Qualquer brasileiro pode divorciar-se mas, se for católico, ficará sujeito, no âmbito de sua igreja, a sanções diversas. O máximo que Roma permite a seus seguidores é a separação judicial, esdrúxula figura jurídica imposta ao Estado brasileiro para criar uma situação em que o casamento é desfeito, mas os ex-cônjuges não podem casar-se com outras pessoas.
A seita papista admite, contudo, que casamentos sejam anulados. Essa brecha vem sendo cada vez mais usada por católicos que, desejando contrair nova união e ao mesmo tempo preservar aparências, alegam um motivo qualquer e, valendo-se de padrinhos, dinheiro e influência, obtêm no âmbito da igreja a declaração de invalidade de seu vínculo matrimonial. A diferença entre esse procedimento e um divórcio ou separação é sutil: num caso, é como se o casamento nunca tivesse existido, ao passo que, nos outros dois, admite-se que ele existiu e foi desfeito. Mas é nessa sutileza que reside a possibilidade de casar-se de novo sob as bênçãos de um padre (Cânone 1085, parágrafo 2º).
Ocorre que o direito civil é mais restritivo que o canônico no que toca à anulação de casamentos, o que obrigava muitos católicos a cometer o pecado do divórcio para que suas novas uniões pudessem ter validade legal. De agora em diante, no entanto, eles ficam isentos de submeter-se às leis brasileiras: uma anulação decretada por um tribunal de sua igreja bastará para que sejam considerados oficialmente solteiros.
Doutrinação nas escolas
A concordata traz concessões também quanto a outro objeto de antiga cobiça do clero católico: a educação.
Mesmo sem conseguir — ao contrário de países como Uruguai e México — extirpar o ensino religioso das escolas públicas nem deter a sangria de recursos perdidos a cada ano a título de isenções e subsídios a escolas religiosas, as forças da laicidade e do igualitarismo obtiveram, em 1997, uma expressiva vitória. O artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional passou a garantir o respeito à diversidade cultural e religiosa do país e a proibir “qualquer forma de proselitismo”, transformando a disciplina em questão num conjunto de estudos sobre as diversas religiões.
A concordata reverte essa conquista, prevendo, no primeiro parágrafo de seu artigo 11, a oferta, nas escolas públicas, de “ensino religioso católico”. O Estado brasileiro compromete-se assim, a garantir que uma entidade religiosa possa usar as instalações e recursos de suas escolas como púlpito — e durante o horário letivo.
O ataque à laicidade da educação não se detém aí. Os artigos 9º e 10 prevêem o reconhecimento, pelo Brasil, de diplomas de graduação e pós-graduação expedidos por seminários e “institutos eclesiásticos de formação e cultura”. Embora o texto do acordo diga que esse reconhecimento submete-se à legislação brasileira, o primeiro parágrafo do artigo 10 confere à Igreja Católica o direito de “constituir e administrar” essas instituições sem passar pelo crivo do Ministério da Educação ou qualquer outra instância estatal. Não é difícil antever a ação de “professores” formados nessas instituições: com seus diplomas reconhecidos pelo Estado, poderão dedicar-se a doutrinar crianças em escolas públicas.
Imunidades e privilégios
No mais, o acordo reforça antigos privilégios e cria alguns outros. As imunidades tributárias de instituições católicas de qualquer ramo de atividade são reafirmadas e a igreja ganha o direito de manter trancados a sete chaves os documentos históricos — escritos e materiais — que tem em seu poder. A aplicação das leis trabalhistas às instituições religiosas é fortemente dificultada.
Mesmo os dispositivos que, a princípio, não trariam maiores problemas — como a garantia do exercício das atividades da igreja por parte do Estado — constituem um perigoso e detestável privilégio, na medida em que colocam o catolicismo em posição diferenciada face às outras religiões. Nenhum dos compromissos que o Brasil assume com a Igreja Católica pode ser firmado com outras denominações religiosas, posto que estas não têm uma entidade estatal como o Vaticano para falar em seu nome.