Internacionalismos de picadeiro

Internacionalismos de picadeiro

Sendo militante de cultura popular e bastante preocupado com o processo de transformação social no Brasil, feito realmente pelas massas — não para elas, mas com elas, elas como sujeito histórico —, me preocupam bastante certos mitos que a mídia tem veiculado, a exemplo do Fórum Social Mundial e do Fórum Econômico de Davos, apresentados como duas instâncias antagônicas, quando, na verdade, são dois lados da mesma moeda. O Fórum Econômico de Davos é o FMI, o sistema financeiro mundial se dividindo entre a guerra e “novas alternativas” de capitalismo humanitário, uma linha similar às alianças entre o progresso para conter a luta de classes, através do paternalismo, clientelismo e assistencialismo.

Os países do terceiro mundo continuam pagando as dívidas, mas internamente vivendo de esmolas como “renda mínima”, “cesta básica”, “fome zero”, “ajuda humanitária”. E, do outro lado, o Fórum Social Mundial, que se coloca como uma alternativa às injustiças, à guerra, à opressão, é financiado pelo Banco Mundial, com a presença forte da doutrina da Terceira Via, contribuindo para a formação de seus governos, que nós sabemos, contribuíram para invadir Kosovo, participam da OTAN, e, na verdade, não pretendem abolir a exploração do homem pelo homem. De fato, o Fórum Social Mundial é muito mais uma festa, uma grande festa, um grande Woodstock social-democrata, do que uma internacional rebelde.

O imperialismo humanitário

O lema fundamental deveria ser: “Se o capitalismo mata, morte ao capital. Por uma internacional rebelde”. Essa internacional rebelde não pode ser ligada à Terceira Via. Ela não pode ser ligada às ONGs que são aparatos do imperialismo, aparatos neogovernamentais para substituir o “estado mínimo” nas relações sociais. Então, não se coloca a alternativa da internacional rebelde de realmente abolir a exploração do homem pelo homem, e não apontar realmente quem são os sujeitos históricos hoje.

Basicamente, o Fórum Econômico é uma linha de capitalismo humanitário. O Fórum Social Mundial é uma grande frente da Terceira Via de governos burgueses, movimentos sociais reformistas e da presença marcante de uma esquerda legalista eleitoreira, que não vai além da luta nos marcos institucionais. Os verdadeiros rebeldes estão presentes nas ruas onde o G-7 e o Fórum Econômico se reúnem — Davos, Seattle, Gênova —, com as dificuldades que esse setor tem. Outro setor do movimento mundial dos povos, a Agenda Global para os Povos (AGP), que se coloca como alternativa ao imperialismo, como alternativa à guerra, é produto de mais de um movimento: dos ecologistas, anarquistas, grupos de esquerda independentes, etc, sem vínculo, contudo, com a Terceira Via. Mesmo assim, a AGP mantém uma linha muito disfarçada de não-violência ghandista. Eu não sei, até que ponto, quando as massas são exploradas e massacradas pela violência policial militar, pela burguesia, pelo imperialismo, essa não violência ghandista pode acontecer.

Há uma necessidade cada vez maior de discutirmos uma transformação social efetiva, uma cultura não meramente artística, mas, acima de tudo, ampla, inteira, que justifica uma luta ideológica pela transformação revolucionária do mundo e do país em que vivemos e que queremos viver. Mas, ao contrário, o que se observa é a existência de uma grande banda de música, um grande Woodstock reformista que não nos conduz a lugar algum.

Hoje, surpreende o fato de se estabelecer um vínculo entre o Fórum Econômico de Davos e o Fórum Social de Porto Alegre. No entanto, causa surpresa perceber que a moeda tem dois lados? São esses os dois lados da Terceira Via. Lula é membro da Internacional Socialista e todos os que são marxistas sabem o que ela representa como negação da transformação profunda e radical do mundo. Deseja apenas amenizar as causas da opressão e da exploração, e não colocam um projeto claro de ruptura com o imperialismo, mas, um projeto de adaptação, porque de nada serve combater os efeitos, as desgraças causadas pelo capital. Precisamos combater as causas e os causadores, e isso só se consegue por meio de um projeto de ruptura com o imperialismo; não de conciliação. “Somos pela luta. Nosso caminho é o da luta e não o da conciliação”, como aliás explica Lênin.

Unanimidade de colaboracionistas

Precisamos quebrar essa unanimidade, essa “engenharia do consenso”, esse pensamento único e homogêneo da “globalização”. Hoje, quem é contra o Fórum Social é chamado de louco, idiota, imbecil. Na verdade, tudo isso é um disfarce para esconder uma minoria aguerrida, combatente, de verdadeiros lutadores pela revolução.

Então, existem duas coisas muito claras: uma é a questão da cultura da violência, porque hoje quando se fala em cultura da violência, se fala basicamente da violência criminal — erroneamente tida como a principal violência —, como se o crime organizado não tivesse ligações com o sistema financeiro mundial e os serviços secretos de informação. Isso é algo anômalo? Na verdade, não é. A cultura da violência tem o objetivo de alienar as massas, policiar as massas. Faz parte de uma política de extermínio global, de tolerância zero. Da mesma forma, hoje, muito se fala da cultura do terrorismo, do terrorismo de Bin Laden, dos terroristas palestinos, mas não são comentados os terrorismos perpetrados pelo Estado de Israel, o terrorismo do Estado norte-americano, e não se fala do terrorismo de Estado, que é o aparato burocrático policial e militar dos países capitalistas. E esse é o verdadeiro inimigo dos povos.

Não há como ficar falando em paz social entre explorados e exploradores, pacto social, conciliação nacional, sem tocar nestas questões. Até quando nós continuaremos sendo enganados, iludidos e esmagados por este sistema? Não há forma de luta? Pode se questionar, por exemplo (e eu questiono, sem medo de represálias), esse aparato todo de violência policial militar, e esse aparato de terrorismo de Estado, que é o mais grave. Não vou questionar o mérito de terrorista aqui ou acolá, porque contra a opressão qualquer forma de luta é válida — o terrorismo do Estado de Israel, e um ou outro atentado feito pela Palestina —, mas, por que esse Fórum Social Mundial não fala do direito de autodefesa armada das massas contra a opressão? Porque não interessa.

Existe o pessoal do hotel cinco estrelas, que são os grandes estadistas, os grandes intelectualóides, tipo Marta Hanercker, como outros, e eu não vou entrar no mérito aqui, mas que são, na essência, intelectuais reformistas, com algumas exceções, como o Eduardo Galeano. Mas, quando o fórum se reúne, entra numa ambigüidade: aquilo ali é uma grande festa, um grande show, um grande clube de discussão. Não se discutem questões concretas da luta de classes, ou de um processo cultural como modo de produção da existência das massas populares oprimidas e exploradas rumo ao fim da exploração. Mas, não interessa realmente aprofundar as questões. O fórum apresenta diferenças, embora com a imoralidade da falsa esquerda seja difícil localizar coisa séria, mas é muito do marxismo legal, do socialismo catedrático, do socialismo ministerial. Não há nada mais do que isso.

A literatura e a arte devem ser armas do povo

Não vejo a cultura como arte-espetáculo apenas, mas cultura enquanto modo de vida, diante da vida e do mundo. Houve, durante um longo período, uma mistura na política marxista — não falo do marxismo legal, porque esse eu não considero marxismo — e acho engraçado que hoje se fale em marxismo revolucionário, comunismo revolucionário, revolucionário socialista. O marxismo foi tão prostituído, tão deturpado, tão vendido por estes canalhas que patrocinam o fórum, que a gente realmente precisa criar, ter rigor, para denunciar esta cultura oportunista, revisionista, que no Brasil parece ser mais reformista. É legalista eleitoreira, é cortina de fumaça. Fala de Fome Zero e está arreganhado para o FMI.

Na questão da Alca, chega a ser engraçado o quanto há de cretinismo eleitoreiro parlamentar, o quanto esse legalismo eleitoreiro é forte. Eles não querem falar em Alca, integração latino-americana e sul-americana, incluindo Cuba. Querem criar parlamento latino-americano para discutir a Alca, assim como discutir o Mercosul e a integração dos governos para resistir ao imperialismo. Mas, não são discutidas linhas mundiais e intercontinentais de lutas de massa, dos camponeses, do movimento sindical, dos movimentos juvenis, dos movimentos de verdadeira cultura popular contra a Alca.

Eu, como profissional de cultura, fui militante do teatro popular. Mas não dá para discutir a Alca, se não se discute integração cultural afro-latino-ameríndio, a cultura, como modo de ser, de produção de uma existência mais vital, consciente e criadora dos artistas com as massas na América Latina. Não basta apenas falar e viver de arte. Temos que aprender a cultivar melhor a arte de viver. Não é fazer cultura para as massas, mas, com as massas populares, sendo elas realmente sujeito histórico do processo de transformação social do Continente. Essa é uma questão, na discussão sobre a Alca, que não está sendo discutida nesse ângulo. Está sendo discutida no ângulo de “sou contra a Alca, pelo Mercosul e pelo parlamento” quando, na verdade, a questão é: que estado é esse, que parlamentos são esses?

As massas devem acreditar que a única forma de estado existente é o estado parlamentar burguês? Porque, hoje em dia, o PT defende a salvação do capitalismo, a reestruturação da exploração da mais-valia no Brasil e a defesa do “estado democrático de direito”, mas não revela que defende um estado democrático de direito burguês. Não se fala em estado dos trabalhadores, em democracia operária e camponesa e democracia proletária, como se a democracia burguesa fosse a única forma de estado existente. E a gente sabe que historicamente isso não é fato.

Essa não é uma situação do Oriente Médio, é uma situação mundial. Nós temos que entender claramente o que representa o nazi-sionismo e essa propaganda a favor de Israel, que coloca o palestino como terrorista. Na verdade, quem é o terrorista? Quem chega com os tanques, e quem se defende com paus e pedras?

Qual é a política cultural e estratégica da chamada “globalização” para resolver os grandes problemas que afetam a humanidade, como fome, miséria, desemprego, injustiça? Não é outra senão a política do extermínio através da fome, da miséria, das epidemias e do crime organizado que faz parte dessa violência militar sistemática contra as populações.

Existem grandes espaços territoriais com demografia baixa, como é o caso da Amazônia e da África, que teve 50% de sua população exterminada, após anos de guerra do imperialismo contra as lutas de libertação nacional e na época do apartheid, dentro do Oriente Médio, da África islâmica, etc. É doloroso perceber que hoje nossa juventude não lembra dos grandes líderes revolucionários africanos, quando temos uma população negra no Brasil representativa, mas que não tem a herança quilombola revolucionária de Agostinho Neto e Amílcar Cabral. Será que Benedita da Silva é uma herança rebelde ou uma herança conformista de uma Cinderela deslumbrada, após ter virado burguesa? Essa aristocracia operária, essa esquerda legalista corrompida, vendida, prostituída, é tão míope que não enxerga essas questões. Ela quer combater os efeitos imediatos da criminalidade, mas não vê a violência estatal que está acontecendo em todo o mundo, inclusive com grandes países da Terceira Via que apóiam esse tipo de coisa.

Não se faz libertação pelo conformismo. Hoje, mais do que nunca, precisamos colocar a política de estar e agir no mundo, fomentando a rebeldia necessária operário-camponesa, lutando pelo poder popular. Qualquer outra coisa que se faça é permanecer sob o domínio burguês.


Sérgio Moraes é teatrólogo e agente cultural comunitário
Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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