Em 1963, o intelectual Alberto Passos Guimarães afirmava, em Quatro Séculos de Latifúndio, que o problema agrário brasileiro não se resumia a uma operação aritmética de divisão de terras, nem tampouco significava uma reparação de injustiças ou medida de assistência social. Uma mudança democrática no campo importaria em acabar com o sistema de latifúndios, o que significava "romper e extirpar, simultaneamente, as relações semicoloniais de dependência ao imperialismo e os vínculos semifeudais de subordinação ao poder extra-econômico, político e ‘jurídico’ da classe latifundiária".
É certo que os termos utilizados pelo autor precisam ser esclarecidos face à realidade atual. Ao falar de "semifeudalidade", o autor se referia ao debate sobre o modo de produção predominante no país, marcado por relações de produção precárias, especialmente no campo, mas irradiando-se para as cidades, mostrando que o problema agrário é essencial para a situação de atraso e dependência externa do país.
Com seus estudos, Guimarães atacava as teses de que o Brasil havia passado por uma "revolução agrícola e industrial", deixando de ser um país agrário para se tornar um país capitalista industrializado. Essas teses deturpadas tiveram grave influência sobre direções dos movimentos populares, que afirmavam uma contradição entre agrarismo e industrialismo, e pregavam a aliança com frações da grande burguesia, erroneamente consideradas uma burguesia nacional.
Já no final da década de 90, a doutrina do desenvolvimento agrário ganhou uma nova roupagem, o agronegócio. Era como se, numa nova situação, a estrutura agrária tivesse sido alterada e o problema se reduzisse a uma contradição entre agronegócio e agricultura familiar, quando, na verdade, ambos fazem parte das mesmas estruturas sociais de exploração da força de trabalho camponesa. Direções de movimentos como o MST entraram nesse discurso, para, hoje, chegarem ao ponto de negar práticas como as ocupações de terras como estratégia de atuação.
Em agosto de 2002, o jornal A Nova Democracia, em seu primeiro número, trazia a tese A mistificação burguesa do campo e a atualidade da revolução agrária, um documento fundamental sobre o problema agrário brasileiro. Primeiro, reitera a crítica aos critérios usados pelo IBGE para classificar a população brasileira em "rural" ou "urbana", já elaborada pelo pesquisador José Eli da Veiga (este afirma categoricamente a existência "Cidades Imaginárias", que distorcem a configuração do território brasileiro, e, consequentemente, as políticas públicas aplicadas em seu âmbito). Depois, (a) reafirma o caráter "semifeudal" das relações de produção e circulação ainda vigentes no Brasil; (b) conceitua o capitalismo burocrático; (c) mostra a "reforma agrária" do Estado como instrumento de corrupção, capitalização de latifundiários, endividamento de camponeses, e repressão sistemática às suas manifestações; (e) afirma um programa agrário de transformação radical no campo, envolvendo como tarefas a superação do sistema latifundiário, ruptura com as relações de produção "semifeudais" e desenvolvimento das forças produtivas no campo, poder político pelos camponeses.
No dia 01/04/2010, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), fundação pública vinculada ao governo federal, divulgou suas primeiras análises sobre a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) de 2008. Mesmo se baseando nos dados de população urbana e rural tomados pelos já questionados critérios, e nos dados do Censo Agropecuário de 2006, cujos limites foram bem apontados pelo geógrafo Ariovaldo Umbelino, o IPEA demonstra que os problemas sociais nas cidades se explicam a partir do problema agrário.
O IPEA afirma que o discurso que nega a demanda por uma transformação estrutural no campo é o mesmo que apóia a criminalização de movimentos populares, através dos quais essa demanda se torna mais explícita, e conclui que "a persistência de uma estrutura fundiária fortemente concentradora continua sendo problema grave no Brasil". Tal afirmação justifica-se ainda em conclusões dos próprios mecanismos estatais atestando inércia nos índices de concentração fundiária como o Índice de Gini, que permaneceu praticamente intocado nos últimos vinte anos, o que é, no mínimo, um contra-senso às medidas dos diversos governos que apontavam para uma maior democratização da propriedade da terra, através de instrumentos como desapropriações, aquisições e arrecadação de terras, crédito rural, entre outros.
Num momento em que o governo utiliza dados maquiados para sustentar um crescimento econômico "nunca visto na história desse país", os dados do PNAD 2008 e a análise do IPEA e de outras instituições respaldam a idéia de "semifeudalidade" mencionada por Alberto Passos Guimarães, e, mostram como a proposta de uma transformação estrutural no campo continua atual, mesmo remetendo a um problema com raízes no século XVI .
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Notas
Júlio da Silveira Moreira é professor do curso de Direito das Faculdades Alfa, mestrando pela PUC Goiás, advogado e Vice-Presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo.
Leandro de Lima Santos é professor de Economia Política na Faculdade Unicaldas, mestrando pela UFG, economista e servidor na área de crédito fundiário na Secretaria de Agricultura do Estado de Goiás.