Catilina, Catilina, até quando abusarás de nossa paciência
Cícero (30 anos a.C.)
Brasil (2.004 d.C.) — situação paradoxal — aposentados, pensionistas e assalariados estão sendo penalizados com tributos confiscatórios por receberem atrasados seus direitos a aposentadorias, pensões e salários. Tal situação não tem a mínima lógica, fere totalmente o princípio da isonomia tributária, bem como da dignidade humana, ambos garantidos constitucionalmente, mas de forma cruel negado, nos distintos governos.
No governo José Sarney foi sancionada a Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988, que preconiza em seu artigo 12 o seguinte:
No caso de rendimentos recebidos acumuladamente, o imposto incidirá, no mês do recebimento ou crédito, sobre o total dos rendimentos, diminuídos do valor das despesas com ação judicial necessárias ao seu recebimento, inclusive de advogados, se tiverem sido pagas pelo contribuinte, sem indenização.
O dispositivo citado traz em seu bojo uma injustiça profunda, ferindo o direito natural, os princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal), da construção de uma sociedade justa e solidária (artigo 3º, inciso I, da CF), da isonomia tributária (artigo 150, inciso II, da CF), e por fim, tal aberração jurídica também passa por cima do artigo 5º, da CF, que assegura: todos são iguais perante a lei.
Eis como na prática vem sendo aplicado o famigerado dispositivo:
Um trabalhador A tem um salário mensal de R$ 500,00, sendo que tal quantia é isenta do Imposto de Renda. Entretanto, este trabalhador, há seis meses, não recebe um centavo. Quando chega às suas mãos o dinheiro que lhe é de direito, ele é pago de forma acumulada. Por essa única razão, o total do que tem a receber é tributado em 27,5%.
Ocorre uma flagrante inversão de valores, uma vez que o recebente — no caso, o trabalhador — é penalizado, enquanto o empregador, que se recusava pagar seu empregado, bem como o governo, são beneficiados. O segundo incorre em inadimplência, e o terceiro se beneficia de uma arrecadação ilícita sobre somatórios que jamais deveriam ser fatos geradores de tributos. Como tal aberração jurídica sobrevive em um Estado que se declara democrático e de "direito"? Por outro lado, verifica-se claramente que, além de ferir todos os princípios constitucionais citados, o Estado brasileiro penaliza o trabalhador como se este fosse o responsável pelo atraso de seu próprio salário, pensão ou aposentadoria.
À luz do princípio da isonomia tributária e, ainda, o de que todos são iguais perante a lei surge o seguinte quadro:
O cidadão A está sendo penalizado por receber atrasado, ao passo que outro cidadão, B, recebe o mesmo valor, R$ 500,00 por mês, com pontualidade, o que lhe deixa isento de qualquer tributação; ou seja, a mesma situação, porém tratamentos diferentes.
No governo Itamar Franco foi sancionada a Lei nº 8.541, de 23 de dezembro de 1992, que amplia o maquiavelismo arrecadatório em detrimento também dos aposentados, pensionistas e trabalhadores, seguindo o mesmo instinto voraz de arrecadação da Lei nº 7.713, já citada.
A Lei nº 8.541, que arrecada sob qualquer pretexto — mesmo ferindo os princípios morais, legais e constitucionais -, traz o seguinte dispositivo:
Art. 46 — O imposto sobre a renda incidente sobre os rendimentos pagos em cumprimento de decisão judicial será retido na fonte pessoa física ou jurídica obrigada ao pagamento, no momento em que, por qualquer forma, o rendimento se torne disponível para o beneficiário.
§ 2º — Quando se tratar de rendimento sujeito à aplicação da tabela progressiva, deverá ser utilizada a tabela vigente no mês de pagamento. (grifamos).
A matéria tributária é insípida e de difícil entendimento, mas é preciso conhecê-la, porque através dela o governo chega ao bolso do trabalhador, às vezes de forma injusta, como no caso das referidas leis.
No caso da lei sancionada pelo sr. Itamar Franco, a arbitrariedade foi mais gritante, uma vez que permite confiscar do somatório — de parcelas isentas, pelas vias judiciais, onde os processos levam por vezes mais de 10 anos (!) — parte considerável a que faz jus os trabalhadores na ativa, aposentados e pensionistas. O Estado, portanto, passa a ter uma vultosa renda ilícita, em detrimento dos assalariados e, até mesmo, dos pensionistas e aposentados isentos de tributação. E essa situação injusta e confiscatória sobrevive no mundo jurídico há mais de 16 anos.
Um deputado, que atualmente não mais pertence ao PT, o sr. Milton Temer, tentando parcialmente corrigir a aberração, elaborou os Projetos de Lei nºs 2.862 e 2.711, ambos de 2000. O primeiro visava tirar o pesado fardo dos trabalhadores na relação empregado x empregador; o segundo, de igual forma, tentava tirar dos ombros dos trabalhadores ativos e inativos o peso da tributação injusta, quando recorressem às vias judiciais. Ambos os Projetos foram aprovados por unanimidade na Câmara de Deputados, sendo que o de nº 2.862 já passou, inclusive, pelo crivo do Senado Federal, também por unanimidade. Na verdade, o Projeto não estava fazendo nenhuma redução de tributos, mas corrigia uma profunda injustiça. Pois bem, o projeto foi vetado pelo governo de transição do senhor presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através da Mensagem nº 1.219, de 27 de novembro de 2002!
Claramente fica demonstrado que nem mesmo o ranço do absolutismo e autoritarismo dos períodos ditatoriais foi abolido. Como, então, acreditar na palavra do Estado que promete renda mínima, se ele veta Projeto de Lei que libera os isentos de qualquer taxação?
*Antônio Carlos Aires de Almeida é advogado