O Dr. Nilo Batista professor, titular de direito penal da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é um dos mais eminentes criminologistas do Brasil. Foi também secretário de Estado de Justiça durante o governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro e é diretor do Instituto Carioca de Criminologia.
Ele concedeu à AND uma entrevista a respeito do recente recrudescimento de ações armadas contra o povo, em São Paulo, que chegou a atingir o Paraná e Mato Grosso do Sul. Do seu escritório — no alto do bairro de Santa Teresa, com vista para a Baía de Guanabara —, Dr. Nilo falou sobre vários aspectos dos últimos acontecimentos, inclusive apontando as causas das dezenas de revoltas nos presídios.
— O mais espantoso, não para mim, é o papel da imprensa, porque ela ciosamente mantém invisível, calada, toda opinião que possa dissentir desse senso comum — que ela estimula, alavanca, repercute, produz -no sentido de olhar aquilo unicamente a partir da visão infracional, que empobrece um fenômeno tão rico como esse e que aponta apenas para a intensificação das medidas que produziram aquilo. É como se nós tivéssemos um paciente sendo envenenado por arsênico e a resposta fosse mais arsênico.
Para se ter uma idéia, a Vera [Malaguti, Dra], que é uma das mais destacadas professoras de criminologia do Rio de Janeiro e do país, deu uma entrevista para um jornal argentino [Página 12] e no dia seguinte nossa vida ficou um inferno, porque às 6:00 tocava o telefone e era a primeira das seis rádios argentinas que iriam repercutir esta entrevista.
Aqui no Brasil nada. Só tem voz quem estiver referendando as interpretações mais delirantes e, de uma forma geral, encaminhando tudo para onde os meios de comunicação, com seu fantástico poder, apontam.
— Estamos com um processo de encarceramento, que é claramente vinculado à expansão deste capitalismo de barbárie. Só é explicado assim, porque ele começa com a expansão do modelo. Não é um fenômeno só da periferia, mas também dos países centrais, como o USA, que ainda outro dia, era apresentado pela Globo como padrão de segurança.
Tem gente presa em container, no Brasil, em Vitória, Espírito Santo.
No estado de São Paulo, todo mês entram 700 condenados. Tinha que haver mais duas penitenciárias por mês. Além disso, querem prender usando a mesma mentalidade das prisões em ilhas marítimas do século XIX, que ainda estão no imaginário, como Alcatraz e Ilha Grande — que Brizola implodiu, e eu estava junto, ajudei a apertar o botão (quando me perguntam o que eu fiz como secretário de justiça, eu digo que foi pouca coisa, mas implodi uma prisão). A mesma mentalidade quer tirar a penitenciária do centro do Rio de Janeiro, na Frei Caneca, e jogar para a periferia, porque penitenciária é uma coisa suja.
— Tudo que eu vejo proposto está errado. Tem que ser exatamente o contrário. É preciso acabar com a idiotice — também um idiotismo jurídico — dos “crimes hediondos”, que foi crescendo ao sabor de interesses privados, de dores que são respeitáveis enquanto pessoais, mas quando se transformam em políticas criminais é desastroso.
Metade das pessoas presas, hoje, poderia sair. É um absurdo que um garoto condenado por tráfico de drogas ou associação ao tráfico, que foi preso sem uma arma na mão, tenha que se submeter ao mesmo regime de alguém que estava armado ou cometeu crimes gravíssimos. Isso só é possível com esse fetiche que criaram do traficante, uma coisa “fantasmática”, que leva a uma situação constrangedora. Quando a grande rede de controle ideológico e cultural do país mostrou aquela coisa do Falcão, meninos do tráfico, eles diziam o seguinte: “Esses são os meninos explorados pelos traficantes.” Não! Aqueles são os traficantes. O que durar mais ali vai conquistar uma posição de destaque nos grupos que se dedicam ao comércio de varejo das drogas ilícitas.
— Junto com o modelo econômico que nos é imposto, vem também uma política criminal. Como essa política criminal não é ingênua perante o capital…
Lavagem de dinheiro é uma coisa importante para o capital especulativo financeiro transnacional, porque quando ele estiver quebrando um país em alguma parte, não vai aparecer na outra ponta um capital que ele desconhece. Em criminologia crítica o nosso interesse é sobre os crimes do dinheiro, em geral, porque dinheiro limpo…
— A criminalização da imigração agora começa a ganhar contornos dramáticos, quando o Calígula do século XXI quer criminalizar o “ser” imigrante. Ponha Bush criminalizando os imigrantes e Hitler criminalizando os judeus. Qual é a diferença? Qualquer estudante de direito penal, que não seja excepcionalmente retardado, sabe que é proibido criminalizar o “ser”, embora na sociedade de classes nós saibamos que é o “ser” que vai definir a seletividade do sistema penal.
Essa coisa da pirataria é a criminalização de uma estratégia de sobrevivência na pobreza. Uma pessoa que, no subúrbio, pega umas bolsas e imita uns motivos da Louis Vuitton. Parece que existe uma coisa entre a Polícia Federal e a família Louis Vuitton, porque é uma espécie de vanguarda da família. Isto é para expandir o capital monopolista. Endurecer com os devedores fiscais é ótimo para as grandes transnacionais, que não têm problemas para pagar seus impostos.
Para o capital brasileiro, para a burguesia nacional, o pessoal que deveria ser um parceiro na construção de um projeto nacional, e ainda pode ser, para eles é um desastre. Entre um grande fabricante internacional que se sustenta em vários mercados e um que está aqui disputando, quem é que vai dever ao fisco? É o brasileiro.
Finalmente, há o controle dos contingentes humanos que foram marginalizados pela destruição de parques industriais inteiros, pela abertura de fronteiras para as mercadorias, mas fechadas para os produtores diretos. Imigrante não pode, mas mercadoria que o imigrante fez pode. Há também o cancelamento dos programas assistenciais públicos, substituídos pela caridade cidadã neoliberal, pela esmola institucional.
— A imprensa expõe os policiais e os funcionários do sistema penal, que ficam mais vulneráveis. A Globo estimulou completamente a dureza, “tem que matar e ir para o confronto”, o que ocasiona uma chacina como a que houve em São Paulo. Agora eles dizem: “Execução não pode!”
Aos dias de irracionalidade dos presos, seguem-se dias de irracionalidade pública, porque a polícia está sendo lançada ao confronto. Só isso é permitido.
— Essa discussão sobre negociação é ridícula. Por que não se negocia? Quando eu fui secretário de justiça, para entrar guaraná em Bangu I eu tive que despachar. O Desip não resolveu esse problema. Quando eu senti o “grande problema de consciência” que isso estava causando eu pedi o processo e despachei.
Por que preso não pode ver televisão? Eu vi o “bonequinho” da Globo dizendo “eles receberam um sonoro não” [quando pediram a instalação de televisores no presídio para assistir aos jogos da Copa do Mundo de futebol]. Ele estava satisfeito e orgulhoso. Os presos não vão ver a Copa do Mundo? O que é isso? Em que lei está isso?
O fascismo está entrando no Brasil pela questão criminal, não tenho dúvida disso. Nós temos que interromper este processo.
Temos que entender que é lícito os presos se organizarem como grupo social, hoje expressivo. Organizados, é preciso ter um diálogo, sim. Ouvi-los.
Em 1994, haviam 100 mil presos, hoje aproximadamente 370 mil e as previsões do Ministério da Justiça são de 500 mil em 2007. Esse número significa que temos o dobro disso sob algum sistema de vigilância [livramento condicional, prisão albergue, etc]. Essas pessoas não podem se organizar?
Ninguém é, por natureza, criminoso. As pessoas cometem um crime e são responsabilizadas por ele. Criminoso não é classe social nem classe natural, como num certo momento do século XIX se imaginou. Todo homem pode, eventualmente, praticar uma infração e ser responsabilizado por isso. No momento em que ele cumpre a sua pena está tudo certo, zerou.
— Em qualquer lugar do país, quando aparece uma liderança, você negocia com ela. Basta o fato objetivo da liderança, de se ter um número considerável de pessoas que observam a sua opinião e que seguem os caminhos de reivindicação que você propõe, para imediatamente isso ter uma significação política. As lideranças prisionais são um fenômeno universal desde que se criaram as prisões no capitalismo. Em todos os estudos, descrições e relatórios de prisões (temos mais de duzentos anos disso) a liderança existe. Em algum momento vai se instituir o “xerife” da cela naturalmente. Por vários critérios, é um erro e um preconceito ridículo, achar que é a força que gera a liderança (preconceito próprio dessas oligarquias que animalizam as pessoas). Por que essas lideranças, ao invés de serem objeto de um diálogo, são punidas por serem lideranças?
Isso não tem lógica, a menos que se queira realizar, como política penitenciária, os preconceitos da clientela da Daslu.
Dentro do campo da legalidade demarcada há um conjunto enorme de decisões, encaminhamentos, é possível haver uma interlocução com as lideranças. Por que isso só pode ser imposto? Sociedade escravocrata! Só enxergam a coisa de cima para baixo, vertical. Levaram um susto.
A proposta é a única coisa que eles conhecem: o chicote. O chicote do feitor na charqueada, no engenho…
— Uma prisão que tem comunicação é invariavelmente muito mais calma do que uma cadeia de isolamento. Uma restrição absoluta à comunicação não está na lei de execução penal. Pode ser aplicada como sanção disciplinar, mas não como medida genérica. Antigamente, na penitenciária Lemos Brito, tinha um orelhão no pátio, que nunca quebrava. Para dois ou três que vão querer arquitetar um crime lá de dentro, tem trezentos que só vão ter notícias da família. Não seria mais inteligente liberar a comunicação e monitorar as ligações suspeitas? Isso me parece mais racional do que esse faz-de-conta, porque de alguma forma a comunicação vai ser conseguida.
Salvo se a opção for produzir doenças mentais através da “surda”, é apenas uma crueldade o isolamento completo, isso está se transformando num Estado policial fascista. Preconceitos das oligarquias e seus porta-vozes, e também da burrice deles, porque eles mesmos serão os alvos.
— A “esquerda” [refere-se à falsa esquerda] vai jogar a responsabilidade sobre esses compatriotas infelicitados, a partir da situação dramática em que o povo vive desde que as riquezas nacionais começaram a ser vendidas? Não vamos conversar com centenas de milhares de brasileiros, que legitimamente podem se organizar a partir de uma situação dramática, que é essencialmente política?
Enquanto esses ignorantes que opinam, que relatam e que fazem a crônica diária estiverem aí, só vai piorar.
— É completamente lamentável que todas as pessoas tenham sido mortas, mas houve uma explosão. Ninguém fala dos abusos e crueldades que acontecem nas prisões brasileiras. Não estou justificando um conjunto de depredações, de homicídios, mas estou tentando compreender para que, a partir disso, se possa fazer efetivamente alguma coisa que signifique ir para outra direção. Na linha do confronto, da guerra, que eles tanto apreciam na sua insensibilidade e ignorância, esse episódio é uma coisa que pode voltar a acontecer.
— Na minha opinião houve alguns dias de cólera, que já foram aproveitados, reciclados para intensificar o discurso e agravar as condições que produziram a hecatombe.
Se voltarem essas leis duras, o que acontecer é responsabilidade direta desses parlamentares, que não procuraram se informar junto à comunidade acadêmica como um todo, não apenas os que sempre aparecem. A opinião da criminologia crítica, que é importante na Argentina, por exemplo, aqui não é.
Historicamente o discurso do medo é sempre usado para a imposição de práticas de controle autoritárias.