Que o futebol brasileiro vem atravessando uma péssima fase na sua administração, refletida dentro de campo, ninguém duvida. A crise é pública e notória. Equipes de grande importância no cenário nacional operam no mercado do rebaixamento e dos desastres financeiros, e se alimentam do atraso dos pagamentos de seus atletas e funcionários. Muito se fala na falta de profissionalismo dos dirigentes dos clubes, expondo jogadores ao apetite das grandes corporações que manobram o mercado da Europa, sem se preocupar com a saúde financeira da instituição, mas com o seu saldo bancário.
Imensos são os motivos para tamanha degradação dos clubes brasileiros, mas a principal são as conexões do lucro máximo. E não são apenas os atletas profissionais que estão sendo negociados para o exterior. A ação desenfreada dos chamados empresários nas divisões de base dos clubes vem aumentando descontroladamente nos últimos anos.
Agentes sempre existiram, os conhecidos “olheiros”. Mas o sistema de compra-venda-revenda não ia tão longe, de forma que eles deviam se preocupar realmente em descobrir novos talentos para seus clubes. O volume de dinheiro apurado nas antigas negociações era ainda modesto, e a exploração de jogadores não tão cruel quanto hoje, de forma a trazer a impressão de que aquele era um tempo romântico do futebol. Hoje, pouco se vê a emoção no esporte — a não ser nas acomodações em que se concentra a massa proletária, de humor inconfundível, de uma paixão incorruptível.
O dinheiro, atualmente, exerce um papel decisivo em tudo no esporte. Em função disso, os clubes estão fechando os olhos para a presença, nos treinos dos juniores, desses medíocres exploradores de gente que, por não fazer outra coisa na vida mas disporem de algum capital, denominam-se empresários. Muitos não passam de prestadores de serviço, sem vínculo empregatício, para as grandes corporações que exploram o ramo.
Aproveitando-se de fatos como a falta de assistência profissional do clube e da origem humilde da grande maioria dos atletas, esses agentes fisgam os inocentes e os transformam em verdadeiros escravos para o resto da vida. Ao jogador e à sua família são feitas promessas fantásticas. Contratos vergonhosos que dão o direito ao empresário a até 60 por cento do que o atleta venha a faturar enquanto durar sua curta carreira.
Em outros tempos, muito se falava em amor à camisa e ao clube pelo qual se jogava, mas até isso os tais empresários acabaram tirando dos jovens talentos, quase sempre humildes e sem muita instrução. São usados como marionetes e, com o tempo, cristalizada a consciência da submissão, passam a tratar com desrespeito até mesmo tudo que o tenha projetado.
Negócio livre
No Rio de Janeiro, o Clube de Regatas Flamengo vem sendo usado como trampolim por vários empresários gananciosos. Como eles mesmo (cinicamente) dizem, o “bom da vida” está lá fora. Ano a ano a mesma novela: jovens revelações nos campeonatos, acumulando fama, valorizados, ganhando dinheiro de forma rápida e se transferindo para o exterior na temporada seguinte. Tornou-se muito comum o jogador se deixar seduzir pela máquina de publicidade e se considerar maior que o próprio clube, seguindo conselhos de seus maliciosos agentes.
O jornalista José Neves Cabral, do Jornal do Commercio, tem uma tese muito interessante sobre o assunto:
— Nessa hora, entra a responsabilidade dos nossos clubes, que deveriam fazer um trabalho de conscientização com as suas divisões de base. Para começar, ensinando aos seus jovens aonde eles estão pisando, mostrando as tradições do time, seus títulos, sua história Airton Santiago, um dos fundadores da Federação Paulista de Futebol, também tem sua opinião formada sobre os agentes:
— Hoje há muita gente, como urubus, sobrevoando os clubes para retirar deles as suas revelações Para Santiago a reclamação maior é a falta de entendimento entre os clubes na questão das transferências de jogadores:
— Parece que muito dirigente prefere negociar com empresários, em vez de ter um contato direto com o clube. Eu sei que onde há dinheiro a situação fica complicada. É lamentável termos que admitir a existência de informantes para empresários a respeito dos novos jogadores dentro dos clubes. Negociando com os empresários diretamente ou com o clube, a especulação desenfreada que toma conta do país traz sempre maiores e nocivas consequências para o futebol. O caminho reivindicado, para não mudar o essencial, é a renovação de elenco, com as chamadas pratas da casa, o que já vem acontecendo. Mas se não for interrompida a ação dos empresários vampiros, num prazo médio de três anos haverá a completa extinção de jogadores de categoria para suprir a necessidade dos clubes. Há quem advogue que deva ser estimulada a proteção dos clubes que revelam atletas promissores e suas divisões de base. Há muito o que ser feito para proteger o esporte e os clubes. Todas as modalidades esportivas, como natação, atletismo, basquete, vôlei, nasceram e cresceram nos clubes.
Pois bem, mas que clubes? Porque, para tanto é preciso reformulá-los ou criar outros — assim como os seus negócios. No futebol há rendas fabulosas, mas os clubes se declaram falidos. Alguns percorrem todo um campeonato conquistando taças e bilheterias na promoção desse esporte de alto rendimento. Súbito, todo o plantel foi vendido e o campeonato seguinte é decepcionante. Afinal, quem pergunta se há consciência de que a prática do esporte é ou não necessária é a população.
Claro que a prática esportiva deve ser apoiada. E isto é uma obrigação do Estado. Como ativar o esporte no ensino primário, médio e universitário, escolhendo um outro caminho vantajoso para fortalecer a prática esportiva?
E de que tipo de clube o povo precisa?
Poucos sonhos, grandes pesadelos
No Brasil, onde os meninos são incentivados pelos próprios pais a se tornarem futuros candidatos a integrantes da seleção brasileira de futebol, esse projeto tão sonhado quase sempre se transforma em pesadelo. Para se tornarem jogadores de futebol, os meninos devem passar por um processo seletivo denominado peneira. Em todo território nacional acontecem, a cada dia, milhares de peneiras, com o objetivo de revelar novos craques mas, uma vez aprovados, nem todos chegam a atuar por um clube profissional. Quem chega lá é por que se dedicou ao máximo e contou com o indispensável fator sorte, ou tem um “padrinho” bem forte.
Exagero? O capitão da seleção brasileira, Cafu, foi reprovado na peneira de vários clubes, diversas vezes, até no próprio São Paulo — que mais tarde o revelou para o Brasil e para o mundo. Outro exemplo é o atacante Deivid, artilheiro da Copa do Brasil em 2002, que começou sua vida esportiva nos gramados do Nova Iguaçu e hoje, em seu currículo, já tem passagem pelo futebol europeu. Existem também aqueles que por influência de “padrinhos”, que indicam seus nomes, mostram o seu valor e enriquecem o bolso de seus agentes. Todo ano são mais de 10 mil jovens que passam pela peneira em cada clube. No geral, nem 1 por cento é aproveitado.
Essa maioria esmagadora de excedentes ainda busca sua última alternativa de se profissionalizar, muitas vezes com o custo de deixar sua família para se aventurar num mar de incertezas em terras distantes. Foi o que aconteceu com o jovem carioca Carlos Eduardo de Lima, de 20 anos. Durante toda a sua adolescência, Carlos Eduardo viveu em função do futebol, passou por várias peneiras em clubes grandes e pequenos. Elogios ao seu desempenho não faltaram, mas a preferência na escolha nunca era a sua. Sempre o menino que estava acompanhado do “pai-empresário” leva a melhor.
— Cheguei a me apresentar em vários testes no América (RJ). Eu e outros garotos sempre jogávamos bem, mas nunca éramos os escolhidos. Começamos a perceber que nos faltava Q.I. (quem indica), pois tínhamos um futebol melhor entre os que eram escolhidos. No fim dos testes, era sempre a mesma coisa: agradeciam e pediam para voltarmos nos próximos que, com certeza, seríamos aproveitados. Cansado e irritado com tantas promessas, Carlos Eduardo e um amigo resolveram aceitar uma proposta que parecia irrecusável. Apenas era preciso pagar uma taxa relativa a “papéis”, burocracias com contratos, passagens e passaportes.
Ultimamente, muitos empresários estão conseguindo arranjar testes em equipes do exterior, especialmente na Europa. Não é novidade e até a imprensa já noticiou fatos de passaportes e documentos de identidade falsos, tendo como alvo, inclusive, grandes estrelas do nosso futebol, como o goleiro Dida. Inegavelmente, um crime de “falsidade ideológica”.
Com passagem de ida e garantia de estadia, enquanto durarem os testes, muitos jovens acabam caindo numa verdadeira cilada. Os não aprovados acabam abandonados pelos especuladores e traficantes de gente, impiedosamente. Sem dinheiro para voltar ou para se manter em um país estranho, muitos jovens se vêem na obrigação de pedir esmolas para sobreviver. Com Carlos Eduardo e seu amigo aconteceu uma história parecida.
Ambos receberam uma proposta de um suposto empresário, que disse haver pessoas em Miami que precisavam de talentosos jogadores para atuar em uma equipe de futebol da cidade. Os dois jovens conseguiram com familiares o dinheiro das passagens e da “simbólica” taxa cobrada pelo empresário, e partiram em busca do sonho. Lá, permaneceram horas no aeroporto esperando algum representante do clube para recebê-los. Ninguém apareceu. Ao ligar para o seu suposto empresário, que ficou no Brasil, Carlos Eduardo ouviu o cordial conselho:
— Se virem!
Por seis meses os dois aspirantes a jogadores profissionais passaram por diversos empregos e funções: manobristas, entregadores de pizzas, garçons — nenhum deles relacionados ao esporte tão amado. Seis meses, foi o quanto durou a vida no inferno de Miami, para que os dois juntassem o dinheiro das passagens e pudessem retornar ao Brasil.
Rotina desagradável
O objetivo principal das divisões de base nos clubes é formar atletas profissionais e não campeões juniores, segundo o coordenador de divisões de base do Fluminense, André Medeiros.
— O trabalho é feito no sentido de render atletas para o profissional do clube. A gente compete, tem as vitórias, mas o objetivo principal não é ser campeão nas divisões de base, e sim, formar atletas, dispor de vários deles jogando no profissional do Fluminense.
Devido a sempre “desfavorável situação econômica” em que se encontra a maioria dos times, o jogador recém formado dura pouco tempo no time titular; chega logo o ponto em que o clube se vê obrigado a negociar o atleta.
Por mês, o Fluminense recebe, em média, 400 a 500 meninos interessados em uma vaga nas cinco categorias de base do clube. Deste total, apenas 2% são aproveitados nas diversas equipes tricolores, produto da grande concorrência que fazem entre si, além de um grande número de exigências. Chegam meninos de todos os lados, fazendo ou não uso de transportes, muitos sozinhos, outros acompanhados dos pais. O objetivo maior é se tornar uma estrela do esporte.
Sentados no gramado, a garotada recebe as instruções. Tem início a famosa peneira; o garimpo. Meninos de 12 e 13 anos estão sendo observados, revela André Medeiros. O potencial elevado dos meninos facilita na seleção:
— Hoje, a gente é muito procurado, muitos atletas nos procuram para jogar no Fluminense. Quando você tem um bom material humano para início de processo, o resto fica mais fácil.
Mas e os 98% de meninos dispensados? Como lidar com essa situação. Para o ex-zagueiro tricolor e atual treinador da equipe mirim, Edgard, a pior parte é ter que dispensar 50 meninos e o discurso é sempre o mesmo.
— Infelizmente as notícias não são boas. O Fluminense agradece por terem vindo, mas vocês estão liberados para tentarem a sorte em outro clube, e o que eu posso dizer para vocês é: não desanimem. Depois, difícil é segurar os especuladores de abordar os meninos aprovados.
No São Paulo, o conhecido tricolor paulista, as divisões de base têm como coordenador o ex-goleiro Júlio Moraes que confessa não poder controlar totalmente a ação dos agentes. Proibir a entrada de empresários no clube é impossível, apesar da sua ação ser controlada. Esporadicamente são chamados para participar de reuniões..
— Aqui nós não podemos proibir os empresários, como em qualquer outro lugar. Mas estamos sempre atentos e limitando a ação deles.
Segundo Júlio, outro método utilizado pelo clube é a continuidade do trabalho desenvolvido. Trocam-se as diretorias, mas o trabalho permanece nas administrações seguintes.
— Nosso trabalho é planificado, tem continuidade, pois muda o presidente, muda a diretoria, mas a estrutura permanece a mesma.
Fica aqui a dúvida de quais os meios realmente válidos que podem ser usados a favor dos garotos. Lutar contra a ação dos especuladores é lutar também contra o esvaziamento do futebol brasileiro, que a cada dia exporta mais e mais jogadores. Hoje são clubes falidos, sem capital para buscar novos craques e não conseguindo segurar os seus novos talentos, que poderiam ser a solução. O futebol nacional precisa se proteger contra esses urubus que andam sobrevoando os treinamentos de juvenis e juniores.