Jorge Perez Brancatto, Jorge Sznaider e Hugo Malozowski
Na noite de sábado, 12 de maio de 1979, um grupo fortemente armado chegou a um prédio localizado em um bairro central de Buenos Aires. Forçaram o porteiro a solicitar que o proprietário de um apartamento os atendesse. Quando o morador abriu a porta foi dominado, assim como os quatro outros jovens que o acompanhavam, e todos foram levados do lugar em vários carros sem identificação. Nunca mais voltariam.
Assim, discretamente, com frieza e absoluta certeza da impunidade, é que atuavam as forças de repressão durante a gerência militar na Argentina. Esse caso (que ficou conhecido como “o grupo do Mariano Acosta”, porque três dos jovens estudavam magistério nesse colégio) ganhou certa notoriedade na época pela ocasião em que ocorreu. A maioria dos mais de 30 mil casos de desaparecimento-assassinato já tinha acontecido entre o golpe de Estado de março de 1976 e as vésperas da realização da Copa do Mundo de futebol de 1978.
Os familiares dos jovens se mobilizaram dentro das escassas possibilidades da época. As autoridades se negavam a saber do caso. A imprensa ou colaborava com os militares ou sofria forte censura e ameaças. Poucos se atreveram a publicar umas linhas. No Uruguai uma rádio localizada na cidade de Colônia transmitia notícias que não eram difundidas nas emissoras de Buenos Aires. Porém, o Uruguai também vivia sob gerência militar. A outra ação dos familiares foi recorrer a governos estrangeiros. O consulado ianque acolheu as denúncias e mandou um pedido formal de explicações à junta militar argentina. Mas foi apenas um puxão de orelha sem maiores consequências.
As únicas instituições que resistiram valentemente, exigindo a verdade e justiça, foram as do povo organizado em grupos como o das Madres de la Plaza de Mayo.
Os familiares, que nunca desistiram dos seus entes queridos e passaram a dedicar sua vida a eles, sofreram muito até lograr resultados. Desesperados, acabaram nas mãos de oportunistas e achacadores: advogados inescrupulosos, falsas testemunhas, políticos e militares que ofereciam informações (que depois se revelariam falsas), em troca de muito dinheiro.
Judeus traídos por Israel
Os familiares do grupo que professavam a religião judaica recorreram à embaixada de Israel e foram ignorados ou maltratados. Um funcionário da embaixada disse-lhes que seus filhos tinham sido “inimigos do Estado de Israel”*.
Em organizações judaicas como a Amia e a Daia, disseram que “os culpados eram os pais, por não terem educado seus filhos dentro do sionismo”*. Eles só intercediam por judeus muito importantes, garotos de classe média suspeitos de pertencer a alguma organização de esquerda não interessavam. Atônitos, os pais correram a demonstrar com fotos e documentos que eram bons judeus, que tinham cumprido com todos os ritos da religião.
Essa pobre gente não entendia o que estava acontecendo. Até hoje muitos se negam a encarar os fatos. O máximo que se atrevem a censurar da atitude de Israel é dizer que foi omisso, quando na realidade teve uma ativa cumplicidade.
Mais de vinte anos depois do acontecido, Israel mandou uma comissão para “investigar” o desaparecimento de judeus. Essa aparente mudança de posicionamento se deve a que os sanguinários militares argentinos eram bons compradores de armas e na época não teria sido bom atrapalhar os negócios com questionamentos indiscretos. Mas a tal comissão não passou de um jogo de cena.
Até hoje a imprensa sionista tenta mudar a história, afirmando que Israel ajudou a Argentina vendendo-lhe armamento para lutar contra a Inglaterra na guerra das Malvinas. Porém, as vendas de armas começaram logo depois do golpe e eram claramente destinadas a reprimir o povo argentino, e, por tabela, àqueles que professavam a religião judaica. E mais, segundo o testemunho de um ex-agente da Polícia Federal argentina arrependido, dentro da embaixada de Israel o ministro conselheiro Herzl Inbar (que depois viraria embaixador) dava aos repressores argentinos “assessoria anti-subversiva”.
Determinação inexorável
O colapso da gerência militar possibilitou a apuração dos fatos. A gestão de Raul Alfonsín promoveu a criação da Conadep (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas) formada por escritores, médicos, professores, jornalistas etc., todas personalidades amplamente reconhecidas e respeitadas pelo povo e que teve ampla liberdade e vontade para investigar.
Os militares reagiram às investigações e fizeram reiteradas ameaças de um novo golpe de Estado. O povo deu amplo apoio a Alfonsín enfrentando de peito aberto os militares, mas mesmo assim Alfonsín capitulou e quis colocar limites no alcance da justiça.
Muito pior foi a gestão de Carlos Menem, que tratou de inocentar todos os militares.
Sucederam-se a lei do ponto final, anistias e perdões presidenciais. Algo tão imoral e ilegítimo quanto no Brasil com a “lei da anistia”, com os mesmos argumentos pífios da pacificação e da reconciliação de todos.
Mas o povo argentino não aceitou as diversas tentativas de esquecimento e perdão, deixando isso bem claro com frequentes manifestações multitudinárias, além das ações batizadas de “escrachos” contra civis e militares co-partícipes do regime militar.
A partir do governo de Nestor Kirchner e continuando no de Cristina Kirchner, a apuração e o julgamento dos crimes do regime militar tomaram um grande impulso.
Depois de tantos anos era difícil apurar o acontecido e levantar provas para levar os repressores à justiça.
O crime e a justiça
Foi possível reconstituir boa parte do que aconteceu com aqueles jovens do Mariano Acosta:
“Uma semana antes um jovem foi detido na sua residência pela polícia e levado até uma delegacia onde foi interrogado por dois dias. Ao ser liberado, a poucos metros da porta da delegacia, era aguardado por um grupo armado sem identificação que o sequestrou. Os captores eram policiais diretamente vinculados ao exército. Num centro clandestino foi torturado por vários dias. Os interrogadores queriam saber o endereço da sua irmã e a procedência de uns livros que tinham sido achados na sua casa. A sua irmã tinha sido namorada de um militante que há mais de um ano já tinha sido sequestrado e estava desaparecido. O jovem não conseguiu resistir e acabou falando o que eles queriam. Logo pegaram a sua irmã, que pertencia a uma oficina literária que se reunia aos finais de semana no apartamento de um deles. Os livros também pertenciam ao grupo e ele deu o endereço onde aconteciam os encontros. O grupo repressivo foi ao apartamento e sequestrou os jovens. Ele foi liberado dias depois. Sua irmã e os amigos do grupo nunca mais voltariam. Foram levados ao quartel de Campo de Mayo, que tinha sido convertido em campo de concentração e possivelmente ali assassinados.”
E a persistência já deu frutos. O que pouco tempo atrás parecia impossível para amigos e familiares, aconteceu. Depois de 33 anos do sequestro e desaparição dos jovens do Mariano Acosta, saiu a primeira sentença: dois delegados foram diretamente para a cadeia comum, um deverá ficar 19 anos preso e o outro 9 anos. Um militar que iria ser julgado na mesma data teve um AVC. O caso ainda continua. Certamente outros militares mais cairão, até por que são acusados de diversos assassinatos, e como os crimes são de lesa-humanidade, nunca prescreverão.
Os bons filhos
Jorge Perez Brancatto, 20 anos, Jorge Sznaider, 19, e Hugo Malozowski, 20, estudavam magistério na Escola Mariano Acosta. Junto com Noemi Beitone, 25, e seus professores de literatura, o casal Mirta Silber de Pérez, 35, e Carlos Alberto Pérez, 33, conformavam a oficina literária Horacio Quiroga. Para os íntimos, tinham confidenciado que pretendiam viajar até a Espanha para lançar um livro denunciando as atrocidades que estavam sendo cometidas pela gerência militar argentina.
Na capital portenha, assim como nas cidades brasileiras, numerosos nomes de praças e ruas homenageiam militares e políticos, que, se pesquisarmos em um bom livro de história, ficaremos sabendo que seus maiores feitos consistiram em assassinar índios, camponeses ou operários.
Em Buenos Aires tem surgido uma excelente maneira de relembrar os bons filhos da pátria. Lousas com seus nomes são instaladas em calçadas pelas quais eles frequentemente transitavam. Os jovens do Mariano Acosta também foram homenageados com lousas na escola em que estudavam.
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*Testemunho dos familiares para a comissão de Israel, disponível na internet.