No voto da desembargadora Márcia Milanez, em que indefere o pedido de habeas corpus pedido pelos advogados dos camponeses, é alegado que “a causa é complexa, transcendendo a seara criminal ao envolver questões ideológicas, para cujo trato se exige ponderação e cautela, pelo que considero precipitada a concessão da medida liminar…”. Mesmo reconhecendo a existência de farta documentação anexada ao processo, disse que “não verificou ser possível vislumbrar constrangimento ilegal” contra os camponeses e que “a urgência, necessidade e relevância da medida não se mostrou evidenciada”. O despacho da desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, relatora do processo contra os camponeses pobres de Patrocínio, proferido no último dia 4 de novembro, é bem esclarecedor sobre a motivação política que norteia as decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais contra os trabalhadores.
Sobre a violência policial, desatada contra os camponeses de Patrocínio, a juíza Márcia Milanez não se pronunciou. Segundo os advogados do Núcleo dos Advogados do Povo de MG e denúncias feitas pelos camponeses na Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do estado e na Promotoria de Defesa dos Direitos Humanos, na tarde do dia 19 de agosto, uma tropa de 250 policiais, fortemente armados de escopetas, bombas, cachorros, atacou de surpresa o Acampamento Salitre/Floresta, em Patrocínio, onde 80 famílias lutavam pela posse da terra.
Os policiais deram tiros de bala de borracha e coronhadas nos homens e mulheres, empurraram idosos e arrastaram crianças pelo cabelo. De um helicóptero, a polícia despejou um pó químico sobre o acampamento que causou queimaduras nos lábios, sangramentos no nariz e desmaios de crianças. Com um trator de esteira destruíram as barracas de lona, pertences dos camponeses e a lavoura de milho, arroz, feijão, mandioca e abóbora. A polícia também matou porcos e galinhas que os camponeses criavam.
Após o contingente policial ter causado toda essa destruição, prenderam 41 homens e 2 mulheres, que foram algemados e no final da noite levados para a delegacia. Antes, a polícia separou alguns camponeses do grupo e os torturou para que dissessem que havia armas no acampamento e denunciassem nomes de lideranças. Na delegacia, os camponeses passaram a noite com fome e algemados em dupla. O camponês Manoel foi torturado com sessões de afogamento.
No dia seguinte, à noite, 37 camponeses foram soltos. Outros dois camponeses ficaram mais duas semanas presos e outros quatro ficaram presos ilegalmente durante quase três meses.
Os camponeses de Patrocínio, Gervásio Vilaça da Silva, Osair Pinto de Oliveira, Rosivaldo Oliveira Domingos e Vanir Pires de Oliveira ficaram arbitrariamente encarcerados 85 dias no Presídio Sebastião Sátiro, na cidade de Patos de Minas. A juíza Milanez brandiu o envolvimento de “questões ideológicas” e uso de “ponderação e cautela” para manter trancafiados quatro honestos trabalhadores, pais de família, cujo crime foi lutar por um pedaço de terra para trabalhar e poder criar seus filhos com dignidade.
Segundo nota de protesto da Liga de Camponeses do Centro-Oeste, o Tribunal agiu dessa forma porque se tratavam de camponeses pobres, como tantos outros pobres que exclusivamente abarrotam as prisões do país. Nos casos envolvendo ricos, como Antério Mânica, Sérgio Naya, Fernando Collor, Maluf, etc, a postura dos Tribunais é completamente diferente, como foi no caso da recente libertação do latifundiário Antério Mânica, apontado como um dos mandantes da chacina de Unaí.
Candidato pelo PSDB a prefeito daquela cidade, ele contou com o apoio do governador Aécio Neves e do vice-presidente José Alencar. O PT coligou-se com o PSDB em Unaí e deu apoio à eleição do latifundiário. Após sua libertação, Mânica tripudiou e mostrou a arrogância do latifúndio, comemorando em restaurante de luxo de Belo Horizonte, viajando em jatinho fretado e desfilando em carro aberto em Unaí, inclusive sob a proteção da PM.
Segundo lideranças da Liga de Camponeses, “a decisão do Tribunal de Justiça de Minas deixa claro que para a justiça desse Estado de grandes burgueses e latifundiários o clamor de terra para quem nela trabalha é questão ideológica complexa e todo rigor da lei será utilizado para tentar aplastar a luta pela justiça social. Tanto é, que o juiz de Patrocínio, Tenório Silva Santos só mandou libertar os quatro camponeses após condená-los à pena de 2 anos e dois meses de reclusão”. Pena que foi transformada em prestação de serviços por sete horas semanais durante esse período e multa de meio salário mínimo, alegando “crime de resistência e porte de arma de fogo”. O juíz desconheceu totalmente as contradições apontadas pelos advogados dos camponeses e aceitou como verdades as mentiras forjadas pelos policiais no inquérito obtido sob torturas.
A Liga dos Camponeses Pobres do Centro-Oeste realizou várias manifestações públicas de protesto contra a injusta e arbitrária prisão dos quatro camponeses (passeatas, colagens de cartaz, distribuição de panfletos, denúncias na rádio, denúncias na Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, Promotoria de Direitos Humanos, pressão no Incra, ITER — Instituto de Terras de Minas Gerais—, fax enviados para a imprensa, cartas de entidades enviadas para as autoridades, pressão na porta do fórum, etc). Também ocorreu uma intensa atuação dos Advogados do Povo.
Segundo o Doutor Bruno Coelho, membro do Núcleo dos Advogados do Povo, os camponeses sofreram “uma condenação totalmente absurda, baseada em provas totalmente contraditórias e inexistentes”. Segundo ele, “houve um comprometimento da juíza com questões que fogem a área criminal, pois a questão criminal era muito simples, os réus eram trabalhadores primários de bom antecedentes, portanto tinham direito à liberdade provisória. A decisão da juíza mostrou como ela foi parcial e se mostrou totalmente favorável aos latifundiários”. Afirmou ainda que, “se ela queria prudência e cautela, deveria primeiro ter colocado os réus em liberdade, para depois agir como agiu”. Essa decisão portanto fere a constituição (que garante a liberdade de pensamento e de expressão), remontando aos tempos da ditadura.
O Núcleo dos Advogados do Povo irá apelar da decisão, e buscará provar para a justiça as contradições existentes na sentença. “Também vamos cobrar das autoridades competentes a punição dos policiais. Se houve algum crime, esse crime foi cometido pela polícia, uma ação violenta e truculenta sobre mulheres, criança e idosos”, finaliza Coelho.