Trabalhando desde menina na beira do rio no duro ofício de lavar roupas, nove trabalhadoras correm o Brasil e até alguns países da Europa cantando cantigas de roda, batuques, modinhas e outras, a maioria de domínio público. O coral das lavadeiras cantoras foi formado há 17 anos pelo pesquisador e músico Carlos Faria, em Almenara, no Vale do Jequitinhonha (MG) .
Carlos Faria nasceu em Almenara (MG) e desde criança teve um contato bem próximo com toda a cultura do local, muito rica e cheia de particularidades. Entre outras que chamavam a sua atenção estavam as lavadeiras, que, de forma natural, cantavam canções da cultura popular, enquanto lavavam suas muitas trouxas na beira do rio.
— Aos quatro anos de idade minha mãe me mandava levar o almoço da nossa lavadeira, a Isaura, que lavava no córrego do norte, perto de casa. Ela cantava músicas que eu já conhecia em casa pela minha mãe, que dizia ter aprendido com minha avó e bisavó — lembra.
Anos mais tarde, formado em psicologia em Belo Horizonte, voltou para a região fazendo uma pesquisa de psicologia comunitária, tendo contato novamente com as lavadeiras e suas cantorias.
— Lavamos roupas dos outros para ganhar o pão de cada dia. Não fazemos em casa, porque se fôssemos gastar a nossa água, não aguentaríamos pagar, então vamos para o rio lavar, secar em casa no sol e passar com ferro de brasa para não gastar energia — explica Tiana, uma das componentes do coral que, apesar do sucesso, continua lavando roupas.
— Ainda não dá para largar, mas agora pego menos, já que a coisa melhorou bastante com o coral. Antes lavava para oito famílias, e hoje lavo para quatro, porque também não aguento mais. É muita roupa, muitas trouxas pesadas que lavamos, passamos, engomamos e entregamos — conta Tiana.
Ela diz que as lavadeiras de Almenara, participando do coral ou não, têm histórias parecidas: criadas sem mãe ou tendo que trabalhar para ajudá-las, situação financeira difícil, muitos filhos, pouca ou nenhuma escolaridade, e principalmente ausência de outras possibilidades de emprego.
— Tenho até a quarta série, mas minha filha estudou bem mais e não arrumou emprego, então teve que ir lavar roupa também. É ela quem lava no meu lugar quando eu estou fora — conta Tiana, que tem outros cinco filhos, todos morando fora de Almenara.
— Fui criada sem mãe e comecei a lavar roupa com dez anos de idade. Meu esposo é aposentado como pedreiro da prefeitura, e nunca conseguimos sobreviver só com o que ele ganha e tive que ajudar. Mas têm outras lavadeiras que trabalham duro para sustentar os filhos sozinhas — acrescenta.
— Do grupo, só a Adélia tem a vida um pouco diferente: ficou viúva com um ano de casada, o marido era canoeiro e morreu afogado, e então lavava roupas somente para o seu sustento. Hoje, com mais de setenta anos, está só trabalhando no coral — diz, acrescentando que as lavadeiras do coral têm de 40 a 72 anos de idade.
Há 17 anos foi construída uma lavanderia na cidade e elas passaram a lavar lá, e usar o ferro elétrico. No rio só lavam as suas próprias roupas nos finais de semana.
— Continuamos cantando da mesma forma, porque a música é para poder aguentar a vida. E é um monte de mulher cantando músicas de amor, sofrimento e o que surgir na hora. Uma canta uma parte e deixa o resto para outras, além dos causos, e quando vemos já acabamos o trabalho — conta Tiana.
— Muitas dessas cantigas são brincadeiras de rodas, músicas de trabalho: 'usando o pilão, pisando o milho, limpando o mato, cortando a bananeira'. São batuques, sambas de roda, modinhas portuguesas, mistura de sincretismo e brincadeiras, canções de domínio público — fala Carlos.
— Tem também muita trava-língua, que são construções poéticas que desafiam a quem canta. Misturas de aliterações, recursos linguísticos que o povo faz naturalmente sem obedecer nenhuma regra. Tudo isso está nos discos e shows das lavadeiras — acrescenta.
O coral
Foi na lavanderia que surgiu o coral, quando certa vez Carlos fez uma visita com seu violão, e depois, em uma grande 'farra', o prefeito o convidou para ensaiar as lavadeiras em um coral que comemoraria o aniversário da cidade.
— A partir daí passamos a nos apresentar em shows. Inicialmente participavam cerca de cinquenta lavadeiras, depois foi diminuindo, por ser inviável viajar com um grupo tão grande — explica Carlos.
O grupo das lavadeiras cantoras acabou ficando com nove componentes, que gravaram dois CDs e viajam para shows.
— Costumo começar os shows cantando umas duas canções sozinho, então elas entram cantando, ou uma delas entra sozinha e declama um poema, porque são artistas mesmo. Além de cantar,elas compõem, escrevem alguns esquetes, poesias e declamam — conta Carlos.
Segundo Tiana, o coral mudou a vida de todas, que antes viviam de casa para o trabalho e vice-versa, sem expectativas de dias melhores.
— Conhecemos muita gente e sentimos mais liberdade na vida. Posso dizer que renascemos. E enquanto conhecemos um mundo que não imaginávamos que existisse, mostramos a nossa realidade, a nossa cultura — declara Tiana.
Carlos diz que com esse trabalho se está incorporando ao patrimônio cultural brasileiro algumas manifestações que estavam somente na memória das pessoas, e ao mesmo tempo têm causado a geração de empregos.
— Existe toda uma cadeia de pessoas envolvidas. Além das lavadeiras, que ganham um dinheirinho a mais, têm os músicos e produtores. E outros grupos de Minas e mais estados do Brasil estão se formandos na esteira do nosso trabalho — conta.
— E ainda tem a questão da alegria e identidade, porque elas encontraram na chamada terceira idade uma grande alegria, que nunca imaginaram que aquelas 'musiquinhas', como falam, poderiam trazer para elas — acrescenta.
— Também geraram documentários, CDs, DVDs, dissertações, teses, monografias e outros. É um trabalho atemporal que fazemos com muita dificuldade, porque grupos como o nosso não têm poder de enfrentar a força da indústria do disco, sendo que um dos nossos aliados é a internet, por ter democratizado um pouco o acesso às informações — expõe Carlos.
Em agosto elas estiveram na Espanha, onde participaram da Expo Internacional de Zaragoza, que acontece de cinco em cinco anos, este com o tema: 'Água e desenvolvimento sustentável'.
— Apresentamos o nosso espetáculo Batendo roupa, cantando a vida e fizemos uma cerimônia ecológica chamada Benção das águas, no rio Ebro, depois de uma palestra com o público, onde falaram da vida — finaliza Carlos.